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Sandra Lilienthal

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Artur Benchimol

Artur Benchimol

ALÉM DE UM JUDAÍSMO PEDIÁTRICO

Temos que repensar se é válido mantermos a praxe de limitar o ensino bíblico ao Chumash estudado apenas com base no texto e em comentários de Rashi, acrescidos de alguns midrashim. Por que não incluirmos no programa de estudo os Salmos, os Provérbios, Rute e Ester?

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Sandra Lilienthal

Resta pouca dúvida de que nós, educadores judaicos, temos tido alto grau de sucesso no que tange à educação de crianças. Ainda me lembro bem da primeira vez que, como jovem professora, vi um membro da comunidade cantando Daienu e Ma Nishtaná com perfeição – o menino tinha apenas três anos de idade. Também não há dúvida de que, quando lidamos com crianças dos primeiros anos do Ensino Fundamental, a prioridade seja compartilhar com elas o que ocorreu nos primórdios do nosso povo. Elas se encantam com as histórias sobre os patriarcas e matriarcas, a escravidão no Egito, o encontro com Deus no Monte Sinai, os quarenta anos no deserto. Conseguimos até transmitir-lhes os relatos da conquista da terra de Israel, dos juízes e profetas, dos reis, da destruição dos Templos. A maioria das crianças expostas desde cedo a tais ensinamentos, seja em escola judaica ou em programas suplementares oferecidos pelas sinagogas, chega à adolescência já familiarizada com muitas das narrativas da nossa Bíblia.

Mas, à medida que estas crianças se tornam adolescentes, será que continuamos tendo sucesso quanto à sua educação judaica? Eu ousaria dizer que não. Mesmo nos casos em que pensamos estar sendo bem-sucedidos, poderíamos alcançar resultados ainda melhores se mudássemos o enfoque do ensino de textos bíblicos. Curiosamente, nenhum de nós tem dificuldade em fazer esta transição quando se trata de histórias infantis ou fábulas como a da Cigarra e da Formiga, entre tantas outras. Para crianças pequenas, contamos a história em si, do jeito mais básico em que ela foi escrita. Conforme as crianças vão crescendo, passa-

mos a discutir o que a história realmente significa, que lições aprendemos com ela.

Pode parecer brincadeira, mas não é: universidades como Princeton, uma das melhores do mundo, oferecem cursos de literatura e ética com base em histórias escritas por Walt Disney e outros. E os alunos intelectuais que frequentam estas faculdades lotam as salas para assistir a tais aulas. Eles não dizem “Histórias de Disney? Eu não! Isso é para crianças.” Eles entendem que existe uma dimensão metafórica nas historinhas que lhes foram contadas na infância e que, olhando além do básico, veem-se muitos ensinamentos a serem extraídos destes contos. Por que será que não conseguimos fazer esta transição quando se trata das histórias da Bíblia, que vêm sendo transmitidas há milhares de anos em nossa tradição?

O problema, a meu ver, tem diversas faces e requer alguns passos nossos para tentar resolvê-lo. Primeiro, definir com clareza qual o nosso objetivo quando ensinamos a Bíblia aos jovens. Segundo, dar maior peso aos valores inerentes às histórias do que às histórias em si. Terceiro, ir além do texto bíblico, mostrando aos jovens que há centenas de camadas em cada narrativa (como dizem alguns, as histórias são como cebolas, cada vez que tiramos uma camada, aparecem as outras que estavam escondidas). Quarto, e talvez o mais importante, deixar os jovens à vontade para questionar, lembrando a eles que questionamentos fazem parte do judaísmo.

A pergunta que precisamos fazer antes de decidir o que e como ensinar é a seguinte: qual o nosso objetivo quando ensinamos a Bíblia a adolescentes? Dependendo da meta que queremos alcançar, temos que repensar se é válido mantermos a praxe de limitar o ensino bíblico ao Chumash — os cinco primeiros livros da Bíblia —, estudado apenas com base no texto e em comentários de Rashi1, vez ou outra acrescidos de alguns midrashim (interpretações rabínicas). Por que não incluirmos no programa de estudo os Salmos, os Provérbios, Rute e Ester?

Quem sabe, ao invés de insistirmos em ensinar os mesmos livros, numa determinada ordem, como se tudo fos-

Muitos dos problemas se linear, devêssemos inverter o processo descritos na Bíblia são os mesmos de hoje: e primeiro nos perguntarmos que valores queremos ensinar. A partir da resposta a esta pergunta poderemos estudar passafavoritismo paterno, gens bíblicas que abordem o tópico. Sorivalidade entre irmãos, mente se tivermos em mente aonde quecompetição pela remos chegar, poderemos escolher qual o liderança, dificuldade caminho mais eficaz a seguir! Quando lidamos com adolescentes, é de tomar decisões de necessário estabelecer um currículo cenordem ética e moral. trado em valores, em ideias mestras que

Mas talvez tenhamos queremos transmitir, e depois buscar os mais sucesso se textos bíblicos que exemplifiquem esinstigarmos nossos tes respectivos valores (ou que mostrem as consequências de não ter tais valores alunos a recriarem como diretrizes). Este tem sido nos últina imaginação aquela mos anos o mantra da maioria dos edusociedade tão diferente cadores judaicos nos Estados Unidos: a da nossa, onde tantas destas histórias se chave para tirar os jovens do seu estado complacente é mostrar a eles quão relevante o texto biblico é para nossa vida inserem. aqui e agora. Há quem discorde desta ênfase na relevância; são poucos, mas existem. O rabino Eric Grossman, diretor da escola ortodoxa Frankel Jewish Academy em West Bloomfield, Michigan, diz que é exatamente a falta de relevância que atrai o interesse dos jovens.2 Ele dá como exemplo o fascínio que os dinossauros exercem sobre as crianças. É comum elas serem capazes de citar os nomes de várias espécies de dinossauros, não porque seja um tópico relevante na vida delas, mas precisamente porque a total falta de relevância torna o estudo dos dinossauros um prazer em si mesmo. Torá Lishmá (o estudo da Torá pelo simples prazer de estudar) em sua mais pura forma! Se quisermos insistir na relevância, certamente temos argumentos para embasar esta posição. Afinal, muitos dos problemas descritos na Bíblia são os mesmos de hoje: favoritismo paterno, rivalidade entre irmãos, competição pela liderança, dificuldade de tomar decisões de ordem ética e moral. Mas talvez tenhamos mais sucesso se instigarmos nossos alunos a recriarem na imaginação aquela sociedade tão diferente da nossa, onde tantas destas histórias se inserem. Permitindo a nossos alunos lerem a Bíblia como um grande clássico faz com que a mensagem de relevância de hoje não se perca amanhã. Transportar nossos alunos

para tempos antigos estimula-os a conceber como seria um mundo bem diferente deste em que vivemos. E este é um fator que pode atrair a atenção dos nossos jovens.

Acredito que os dois pontos de vista sejam válidos. No entanto, depois de 25 anos trabalhando como educadora, tenho tido muito mais sucesso colocando ênfase no fato de que, embora as histórias bíblicas relatem acontecimentos de outras épocas, outras culturas, outras sociedades, sua mensagem é universal e atemporal. Quando trabalho com jovens ou adultos, cada vez que analisamos o texto bíblico eu o faço como se estivesse lendo um clássico da literatura mundial: comparando e contrastando passagens, discutindo as inconsistências do texto, fazendo uma análise do mundo em que estas histórias se inserem socialmente, culturalmente, antropologicamente.

Que mensagens estas narrativas trazem? Por que foram colocadas ali? É óbvio que nem todos os relatos sobre o povo judeu são mencionados na Bíblia. Por que justo estes foram escolhidos (por Deus, para aqueles que acreditam ser Ele o autor do texto, ou pelos editores, para aqueles que acreditam ser a Bíblia um documento escrito por seres humanos, inspirados pelo Divino)?

Especialmente quando lidamos com adolescentes ou adultos, o ensino literal do texto bíblico é problemático. Enquanto as crianças pequenas aceitam a narrativa ao pé da letra, ao redor do 8º e 9º anos os adolescentes questionam as histórias bíblicas.3 Como aceitar que o mundo foi criado em sete dias quando temos dados científicos que falam de bilhões de anos? Se Adão e Eva estavam sozinhos no mundo com seus três filhos (ou filhos e filhas, de acordo com alguns midrashim), de onde veio o restante da humanidade? De relações incestuosas? É tambem nesta fase que os alunos afirmam que não acreditam em Deus e não acreditam na Bíblia. Podemos martelar na cabeça deles que estão errados, que Deus existe sim, que aquelas histórias aconteceram de verdade, mas qual será o resultado disso? Possivelmente uma convicção ainda maior de que tudo aquilo é uma bobagem inventada por adultos de séculos atrás.

Todos concordamos que a Bíblia é o texto primordial do judaísmo. Mas o conteúdo bíblico não pode ser visto isoladamente (a não ser que estejamos falando dos caraítas). O texto judaico evoluiu e continua evoluindo. Há um desenvolvimento constante do texto em si, que é complemen-

tado pelas opiniões rabínicas do Talmud, pelos midrashim, pela legislação de códigos como o Shulchan Aruch, por releituras cabalísticas do Zohar e por um corpus imenso de outros textos mais recentes.

Para aqueles que já são capazes de fazer abstração do texto e de entender o ambiente em que surgiu cada grupo de comentários, a metodologia de desdobramento textual é profundamente intrigante e relevante. Entender como o judaísmo construiu seus textos a partir do alicerce da Bíblia significa entender quão dinâmicos são o processo de interpretação e a evolução do texto, resultantes em um judaísmo vivo que atravessa os séculos.4

No judaísmo liberal, afirma-se que o texto do Chumash não foi necessariamente escrito por Moisés. Entretanto, ao fazermos a hagbaá, quando erguemos o rolo da Torá para que todos possam vê-lo, cantamos a plena voz: “Esta é a Torá que Moisés deu aos Filhos de Israel, pela boca de Deus.” Temos que tomar cuidado para não passar aos jovens mensagens conflitantes. Os educadores liberais optam por um meio-termo – ensinamos que a Torá é um documento sagrado que reflete a influência de Deus sobre a humanidade. Até nisso, podemos mostrar aos jovens como nem sempre o que lemos ou dizemos deve ser entendido de uma forma estritamente literal.

E talvez aqui entre o elemento mais importante: além de mostrar aos jovens os valores impregnados nas histórias bíblicas, além de direcionar a atenção de nossos alunos para a relevância do texto, precisamos permitir – mais ainda, incentivar – o questionamento. Faz parte da estrutura interna de um adolescente questionar tudo aquilo que veio antes dele e tudo aquilo que o cerca. É frequente professores e rabinos passarem a impressão de que há somente duas opções: ser um bom judeu e aceitar o texto bíblico sem discussão ou então ser um “mau judeu” que rejeita toda a nossa tradição. Além de contraproducente, este tipo de visão distorce a própria natureza do judaísmo.

Cito aqui uma passagem de Ibn Ezra, rabino que viveu na Espanha no século XII: “Em todo coração existe sabedoria plantada pelo Eterno... O raciocínio é o alicerce (da real compreensão da Torá). Não era a intenção de Deus dar a Torá àqueles que não tivessem a capacidade de raciocinar. O emissário entre a pessoa e Deus é exatamente seu intelecto”.5

Ibn Ezra nos oferece uma terceira opção – a opção de nos envolvermos com o texto, de lermos e relermos, de compreendermos o contexto, de procurarmos seu significado e relevância para a vida de cada um de nós. Ou seja, o texto esta aí, em nossas mãos, para que possamos nos confrontar com ele. Afinal de contas, toda a nossa identidade se baseia nesta contenda com Deus e Seus ensinamentos. A palavra Israel, nome pelo qual somos conhecidos, significa “aquele que se debate com Deus”.

Em Pirkei Avot 5:24 lemos: “Ben Bag-Bag disse: ‘Leia e releia [a Torá], pois tudo está nela contido. Estude-a

minuciosamente, envelheça e amadureça nela, e não se afaste dela, pois não existe melhor padrão do que ela.’” De fato, o que os rabinos nos dizem com esta injunção é que, não importa quantas vezes já tenhamos lido uma passagem bíblica e estudado o seu significado, há sempre alguma novidade à nossa espera. O sentido literal do texto (p’shat) não muda. O que muda é a nossa internalizacao do texto: o que veremos agora nas entrelinhas será diferente do que vimos anos atrás. A diferença entre as crianças menores e os adolescentes não é a fonte, não é o conhecimento, mas sim o fato de que, ao amadurecerem, os jovens estão prontos para ir mais a fundo na tentativa de ouvir a sabedoria daqueles que vieram antes deles, tanto para poderem entender a complexidade do texto – e, por que não dizer, da vida –, quanto para poderem encontrar respostas às suas perguntas.6

É fundamental que cada professor de Bíblia passe para os alunos a mensagem milenar de que o texto está ali para que possamos torná-lo nosso, no mais profundo sentido. O texto bíblico está disponível e é relevante para todos os judeus – independentemente de sua prática ritual, de seu grau de observância, até mesmo do que cada um acredita. Se apresentarmos esta ideia para os jovens, e se realmente permitirmos que eles questionem as passagens difíceis e questionem valores que lhes parecem ser antiquados, os jovens terão uma experiência profundamente enriquecedora.

Recomendo fortemente a leitura do livro Reclaiming our Legacy, do Dr. Steven Brown, editado por Stephen Garfinkel em 1986. Apesar de ter sido escrito trinta anos atrás, o livro continua dando ótimas dicas aos jovens (e àqueles que são responsáveis por ensinar-lhes a Bíblia) de como tornar esta experiência gratificante. Questionar, diz o Dr. Brown, é parte fundamental do processo. Questionar a natureza de Deus, a autoridade Divina, até mesmo a existência de Deus, promove interação com uma tradição milenar. A presença de muitas perguntas e a ausência de respostas faz parte desta busca! Se permitirmos aos nossos jovens compreender que a expressão de dúvidas e ques-

O que queremos é tionamentos sobre a fonte de autoridade levar nossos alunos a sentirem um enorme não os isola do povo judeu – ao contrário, o enfrentamento destes questionamentos através do estudo da Bíblia os coloca bem prazer quando estão no meio de tudo aquilo que é tradicionalcom o texto bíblico mente judaico –, seremos mais bem-suceem suas mãos. didos em nossa tarefa de transmitir os en-

A combinação de sinamentos das histórias da Bíblia. Em última instância, o que queremos diferentes formas de é levar nossos alunos a sentirem um enorabordar o texto gera me prazer quando estão com o texto bíperguntas e discussões, blico em suas mãos.7 E para que possamos fazendo com que cada chegar a este ponto, é necessário apresenaluno sinta que o texto tarmos primeiro o texto em si, p’shat. Depois disso, trazemos para a mesa comenbíblico lhe pertence, tários diferentes, tanto do Talmud quanque o texto fala com ele to de Rashi e mais modernos como o da – com cada um de nós grande dama de estudos bíblicos em Is– num diálogo infinito. rael, Nehama Leibowitz (z’l). Completada esta fase, introduzimos comentários recentes de estudiosos de Bíblia, que fazem uma análise estrutural e literária do texto. A combinação destas diferentes formas de abordar o texto gera perguntas e discussões, fazendo com que cada aluno sinta que o texto bíblico lhe pertence, que o texto fala com ele – com cada um de nós – num diálogo infinito. Sandra Lilienthal é educadora com doutorado no Gratz College, Filadélfia, EUA. Ela é especializada em formação de currículos judaicos e educação judaica para adultos e crianças. Em 2015, Sandra ganhou o prestigioso prêmio Convenant Award por excelência em educação judaica. Ela é professora associada no Gratz College, instrutora do Florence Melton School of Adult Learning da Universidade Hebraica de Jerusalem, e desenvolve curriculos para o Orloff Central Agency para educação judaica em Broward County, USA.

Notas

1 Holtz, Barry. “What’s Worth Learning: Te Bible and the Curriculum of Jewish Education Today”. Revista Sh’ma, Tevet 5764. 2 Grossman, Eric. “Te Torah of Relevance: A Dinosaur Deserving Extinction”. Revista HaYidion, Verão 2012. 3 Sagal, Doug. “Teaching Torah”. Revista Sh’ma, October 1997. 4 Woocher, Meredith. “Teaching More Tan the Source”. Revista Sh’ma, Tevet 5764. 5 Ibn Ezra, HaDerech HaShlishit, Introdução. 6 Brown, Steven; Reclaiming Our Legacy; United Synagogue of America – Department of Youth Activities; 1986. 7 Levenson, Alan. Transversing the World of Jewish Studies. Association for Jewish Studies; Fall/Winter 2002.

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