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Rabino Sérgio R. Margulies
diálogo com BuBer: Bereshit recriado
rabino sérgio r. margulies
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Há 50 anos, no dia 13 de julho, em Jerusalém, falecia o filósofo Martin Buber. Seu pensamento influenciou o modo de atuar no mundo e de transmitir valores. Estudioso do judaísmo, deixou um legado de várias obras, sendo a mais conhecida o livro intitulado Eu e Tu. Seus escritos e palestras, bem como os encontros com alunos e mestres, propiciaram outras obras. Buber incentiva o pensar e questionar, o refletir e ponderar, o atuar e agir. Sua mensagem não cessa em si mesma, e por isso é sempre presente. O que escreveu, ensinou e disse continua conversando com cada leitor, pupilo e ouvinte. O texto que segue é um pedaço do diálogo que este autor estabelece com Buber. É uma recriação de passagens de Bereshit – a narrativa bíblica da criação.
“No início criou Deus o céu e a terra.” (Bereshit/Gênesis 1:1)
No início. Toda a vida é um encontro. É o relacionamento que marca o início da vida. Sem diálogo não há vida. Talvez sobrevivência, mas não vida. Diálogo é o início e também a continuidade. Sem diálogo, o que prossegue é o vínculo moldado pelo interesse. A relação sustentada pelo interesse não percebe o outro como uma pessoa inteira, e sim como uma ferramenta que fornece algo. Ser pessoa inteira é criar relacionamentos genuínos que possibilitem diálogos verdadeiros. Este é o início, esta é a criação.
Criou Deus. O criador também precisa ser encontrado, mas não numa troca em que Deus é dirigido para atender nossos interesses. Se assim fosse, a espiritualidade cederia ao anseio de manipulação que torna Deus em objeto a ser possuído. O encontro com Deus acontece através do vínculo humano. “Ame O imediatismo é o brilho fugaz de uma luz que se esvairá. Conhecimento é a luz duradoura na construção das vidas erguidas através de valores.

o próximo como a ti mesmo”, ensina a Torá. A interpretação chassídica sugere o complemento da mensagem divina: “Em seu amor ao próximo Me achará”. Quem é o próximo? Todo aquele que encontramos na jornada da vida.
O céu e a terra. Não são lá e aqui, distantes entre si. O céu, lugar simbólico dos ideais sublimes, deve ser próximo da terra onde ocorre a vivência diária. A separação escraviza: abraçar a utopia irrealizável de uma vida celestial é ser escravo do fanatismo; se resignar às injustiças terrenas é ser escravo da inércia. A espiritualidade é terrestre, integrada com a vida.
“A terra era sem forma e vazia.” (Bereshit/Gênesis 1:2)
A espiritualidade é terrestre: compromete-se com a realidade deste mundo. Quando tudo ou muito está sem forma ou vazio, como uma travessia em tempos tragicamente difíceis, urge a afirmação dos valores da vida.
Responsabilidade é responder às necessidades que surgem nas diversas situações do dia a dia, sobretudo as mais inesperadas e assustadoras. A responsabilidade é de cada um, não transferível e não delegável. Não é alguém que decide por nós. Responsabilidade é rejeitar o conforto de evadir-se da decisão deixando alguém ou um grupo impor sua visão fracionada.
“E Deus disse: ‘Haja luz!’ e houve luz.” (Bereshit/ Gênesis 1:3)
Religiosidade é evitar a intoxicação da alma diante da imutabilidade das visões e “E Deus viu que a luz era boa.” (Bereshit/ concepções. Gênesis 1:4) Pode a luz não ser boa? Certa vez foi solicitado a Buber participar de um encontro que promoveria a paz. Ele concordou desde que não houvesse a presença da mídia. Qual era a finalidade: gerar condições efetivas que levassem a uma paz genuína ou fazer do encontro um espetáculo que criaria um artificial efeito de luzes para iludir plateias? Quantos espetáculos são montados na vida social, religiosa e política preocupados com as aparências sem que seja dada relevância à essência? Queremos transformar a vida numa performática apresentação substituindo relacionamentos por palcos montados sob a luz de imaginárias ribaltas? O livro bíblico dos Provérbios (6:23) afirma: “Torá é a luz”. Pode a luz/Torá não ser boa? A luz/Torá pode iluminar. Igualmente pode queimar. Depende do uso que fazemos dela. Depende de como se desenvolve o relacionamento entre Sua mensagem e nossas vidas. Depende se a luz/Torá é fonte de aprendizado ou instrumento que justifica dogmas. Depende se a luz/Torá é energia que dá propulsão ao questionamento ou se nos encapsula em regras insignificantes ditas como absolutas. Depende se a luz/ Torá é usada para promover uma visão religiosa utilitarista, como se os desígnios divinos pudessem ser manipulados ou se nos convida a contemplar o mistério.
Da palavra surge a ação. O enunciado estabelece um compromisso com o ato a fim de adquirir significado. Em complemento, as ações devem ser guiadas pelo conhecimento que as palavras transmitem para que tenham propósito.
Quando é citada a explicação do sábio Hillel (século1 a.e.c.) sobre a essência do judaísmo: “Não faças ao outro o que é o odioso para você. O resto é comentário”, frequentemente é esquecido o complemento da mensagem: “Agora vá e estude”. Sem o estudo a ação torna-se cega às consequências. Afoga-se no abismo do momento. É uma ação focada nas vantagens temporárias. Buber alerta para o perigo de sucumbirmos ao imediatismo e relegarmos a permanente busca do conhecimento. O imediatismo é o brilho fugaz de uma luz que se esvairá. Conhecimento é a luz duradoura na construção das vidas erguidas através de valores.
“E foi tarde e foi manhã, dia um.” (Bereshit/Gênesis 1:5)
Após o dia um, o relato bíblico da criação segue: segundo dia, terceiro dia, quarto dia, quinto dia, sexto dia até o último dia da semana: Shabat. Somente o dia um é número absoluto, depois a contagem é ordinal. Um é unidade. É inteiro. O empenho judaico é lutar pela integridade da pessoa, da sociedade e da nação. A missão é integrar os vários aspectos da vida rompendo o que nos divide. Ser integro é romper a hipocrisia entre o que proclamamos ser e a forma como agimos.
Integrados conosco próprios integramo-nos com os outros. Quem está separado de si próprio, separa as pesso-
as umas das outras através de rótulos e estigmas. Integrados conosco próprios somos os mesmos com os vários outros. A existência íntegra pavimenta caminhos de autenticidade.
“E Deus fez duas grandes luzes.” (Bereshit/Gênesis 1:16)
Se a ideia é buscar a integração por que dois? Um não bastaria? Unidade não é anulação das partes que compõem o todo. Em acréscimo, diferentes reivindicações devem buscar uma forma de convivência. O desafio é acabar com os antagonismos que fomentam ódios e promovem a excludente postura “ou eu ou você”, “ou nós ou eles”.
O judaísmo propõe a unidade dos elementos numa visão integradora do ‘e’. Enquanto na matemática [A] se opõe a [–A], na convivência espiritual os opostos interagem, coexistem e trabalham juntos. O que impede esta convivência é a arrogância. A arrogância gera a idolatria de si e desdenha o outro.
“E assim foram acabados os céus, a terra...” (Bereshit/ Gênesis 2:1)
Sagrado é considerado como o inacessível e o intocável. Atingir “E Deus abençoou o sétimo dia e o sagrado é adquirir santificou-o.” (Bereshit/Gênesis 2:3) uma condição de proteção e segurança. Somente o dia do Shabat é santificado? Diferentemente, Buber Se somente um tempo específico é santificado é possível deduzir que somente um sugere que o sagrado determinado lugar é santificado? Cada dia confere a insegurança. carrega centelhas do sagrado. Cada lugar Sagrado é o rompimento pode emanar sacralidade. O sagrado emerda falsa segurança ge do convívio e do encontro. Assim, cada que ilusórias verdades tempo de convívio e cada lugar de encontros genuínos são sagrados. O Shabat não prometem. é sagrado por si, torna-se sagrado pelo potencial do encontro vivenciado neste dia. Sagrado é considerado como o inacessível e o intocável. Atingir o sagrado é adquirir uma condição de proteção e segurança. Diferentemente, Buber sugere que o sagrado confere a insegurança. Sagrado é o rompimento da falsa segurança que ilusórias verdades prometem. Sagrado é o estremecimento das estruturas erguidas pelos dogmas de aparente firmeza, mas que relevam grande fragilidade diante dos desafios que a vida impõe. Reconhecer a insegurança é parte da vida. Não reconhecê-la é não viver enquanto anos de vida nos são facultados.
Ao término de uma etapa do processo da criação outra se abre. É o contínuo desenrolar da vida que se renova e que está em constante descoberta. O comprometimento judaico é de reconhecer a incompletude dos processos da vida. Aceitar o término definitivo da busca da verdade engessa a mente, sufoca o espírito e fecha os caminhos de novas descobertas. Se aceitarmos uma verdade como definitiva nada mais há para ser buscado e descoberto. Isto acontece quando um dogma apresentado como verdade inabalável é imposto sobre o indivíduo.
Religiosidade é evitar a intoxicação da alma diante da imutabilidade das visões e concepções. A expressão religiosa renova-se com novos significados como se fossem revelados a cada geração novamente. Nenhuma geração cessa em si mesmo. Cada geração torna-se transicional: cria uma transição entre os feitos de hoje e as realizações que continuarão com novas respostas às antigas perguntas e com perguntas até então não pensadas. O ímpeto renovador não cessa.
“E o Eterno chamou o homem e lhe disse: ‘onde estás’?” (Bereshit/Gênesis 3:9)
Frequentemente os contatos são mascarados por conversas superficiais. São esquivadas as colocações mais profundas. Mesmo quando há abertura para perguntas, as respostas são envoltas de cuidados excessivos a fim de esconder um posicionamento mais firme. Existem, no entanto, passos ainda mais contundentes: além de responder com autenticidade às perguntas feitas, preocupar-se em responder aos questionamentos não formulados. É o diálogo genuíno que não receia confrontar-se com a indagação inesperada. É o diálogo empenhado em superar a superficialidade que nos afasta uns dos outros e cada um de si.
Sérgio R. Margulies é Rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

