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Paulo Geiger

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Fábio Koifman

Fábio Koifman

israel: estado Judaico e democrático paulo Geiger

1. Conceito: o que é, ou deveria ser

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Ogoverno de Israel quer saber, e está perguntando, qual é a opinião do judaísmo mundial sobre uma questão crucial para a concepção, o modelo e o futuro do país em relação a si mesmo como Estado, em relação à sua sociedade (em todos os seus cortes), ao judaísmo mundial e ao mundo em geral. A questão se resume em quatro palavras que formam ao mesmo tempo uma afirmação e uma pergunta: Estado judeu e democrático. Ou, na leitura de muitos: Estado judeu e democrático? (ou seja: isso é possível? Como?)

A ideia, o conceito, a questão, a afirmação não têm nada de novo. Se alguém se deu o trabalho de ler a primeira descrição programática do ideal do sionismo moderno, O Estado Judeu, de Theodor Herzl, vai achar lá os fundamentos da visão do sionismo moderno: um Estado do e para o povo judeu calcado nos modelos de Estado que os líderes sionistas da Europa Ocidental conheciam, ou propugnavam: Estados nacionais e democráticos.

Verdade que esses modelos e ideais eram de uma Europa, um mundo, um tempo imediatamente posterior à Emancipação e aos conceitos de direitos humanos e direitos dos povos e anterior à Revolução Soviética, a duas guerras mundiais, ao nazismo e ao Holocausto, que redesenharam a Europa, o povo judeu, o Oriente Médio e o mundo. Mas esse modelo resistiu, é a referência para o mundo contemporâneo globalizado, e é o que prevalece hoje, como realidade ou como rótulo.

Assim, a ideia de um Estado nacional E democrático é hoje lugarcomum, é a regra que faz sobressaírem as exceções (regimes totalitários, de várias cores ideológicas e até religiosas, que resultaram [ou não] em tragédias nacionais ou mundiais), exceções que ainda grassam no mundo contemporâneo. Mas o Estado nacional e democrático é o modelo onipresente no mundo, e foi ele que inspirou os edificadores do sionismo moderno e os judeus idealistas que dedicaram suas vidas ao ‘sionismo realizador’, construindo num quase deserto as bases de um país e de uma sociedade, inspirados na visão nacionalpolítica de Herzl – um Estado moderno, Estadonação de um povo (como direito político, e não mais só uma aspiração religiosa, mística, escatológica) e ao mesmo tempo o Estado de todos os seus cidadãos (como todo Estado moderno democrático) – e na visão social dos profetas e dos pioneiros chalutzim, de uma sociedade equânime e justa. Apesar de se ter criado na voragem de um conflito que já dura um século, e de todas as suas consequências, nada precisaria impedir esse Estado em embrião de ser nacional E democrático, como decidiu ser e promulgou em sua Declaração de Independência; nada precisa impedir o Estado judaico de sêlo ainda hoje.

(Continuação)

Então, por que se levanta a questão? Se o Brasil pode ser brasileiro (do povo brasileiro) e democrático, se a França pode ser francesa (do povo francês) e democrática, por que (supostamente) não pode Israel ser judaico (do povo judeu) e democrático, e, segundo alguns, nunca poderia ser, tendo de escolher entre um e outro?

A aparente contradição conceitual (este artigo só vai tratar do ‘conceito’, a questão da prática será abordada na sequência) entre ‘judaico’ e ‘democrático’ decorre de vários erros de interpretação de conceitos e de fatos. O primeiro é atribuir ao ‘judaico’, no caso, o sentido de ‘religião judaica’. A origem desse erro é simples, os desavisados o cometem, mas muitos avisados o exploram intencionalmente: o único povo no mundo que adota uma única religião é o povo judeu, daí essa religião ser chamada de ‘judaísmo’. Poderia ser ‘mosaísmo’, e se assim fosse o termo ‘Estado judaico’ (do povo judeu) não seria sinônimo de ‘Estado mosaico’, e nenhuma confusão ou pretexto daí adviria.

O que o sionismo moderno criou (leiam o livro de Herzl!) foi exatamente a ideia de um Estado judaico (Estadonação do povo judeu) nos moldes dos Estadosnação modernos, onde ‘judaico’ é análogo a ‘brasileiro’ (e o termo ‘brasileiro’ não tem a ver com ‘cristão’ ou outro adjetivo relativo a uma religião praticada no Brasil, seja esmagadoramente majoritária ou não). ‘Iraniano’ não é a mesma coisa que ‘islâmico’, apesar de, nas circunstâncias atuais, esse Estado se reger pela shariá. Ou seja, a condição de Estado judaico (Estadonação do povo judeu) de Israel não contradiz conceitualmente que ele seja um Estado com liberdade total de culto para todas as religiões (como efetivamente é, e ninguém pode negar isso), como consta na cartilha dos Estados nacionais e democráticos.

Mas para que isso se confirme não só como conceito, mas também como modelo de futuro, é preciso que a sociedade israelense reveja seriamente os processos de radicalização por que tem passado recentemente, inclusive dentro do próprio judaísmo. A não contradição conceitual pode se transformar em contradição real neste processo de radicalização. A democracia de um Estado judaico – no qual a religião e as formas de culto devem ser escolhas pessoais de cada cidadão – está na visão fundamental do sionismo, mas em preocupante processo de radicalização, em parte religioso, em parte ideológico.

Outra confusão desavisada ou intencional é a ideia de que a condição de Estadonação do povo judeu (Estado judaico) transforma Israel automaticamente em Estado não democrático em relação a suas minorias (para não mencionar termos como ‘de apartheid’, ‘opressor’ etc.). Israel não é o único Estadonação que conta com minorias nacionais em sua sociedade. Mas nem todos garantem – como faz Israel – a suas minorias todos os direitos de cidadania que cabem aos cidadãos de um Estado democrático. O que acontece é que a difícil questão de ‘como ser ao mesmo tempo um Estado do povo judeu e um Estado de seus cidadãos’ é agravada pelo conflito com Estados, povos e movimentos religiosos (islâmicos) que se opuseram, e muitos ainda se opõem, à existência do único Estadonação do povo judeu no único lugar do mundo em que pode existir. O Estado de conflito tem contaminado a percepção de ameaça existencial que esses opositores representam para a sociedade judaica e o caráter judaico (o ‘judaico’ nacional, não o religioso) do Estado. Como se uma minoria nacional ou religiosa não pudesse conviver em paz e com todos os direitos de cidadania garantidos, como acontece em todo o mundo, num Estado nacional (de outro povo) e democrático (como são quase todos no mundo).

Resumindo: nada, nem na visão sionista moderna de um Estado nacional judaico e democrático, o Estado do povo judeu e de todos os seus cidadãos, nem a possibilidade conceitual de realizar essa visão, justificam a opção excludente de OU judaico OU democrático. O Estado de Israel foi pensado como, e deve encarar seu futuro, como um Estado judaico E democrático.

No entanto, esse futuro será determinado pelo caminho a ser seguido hoje, e os mesmos processos de radicalização na questão religiosa começam a se agravar na área ideológica e política. Democracia não se expressa apenas no direito que a maioria outorga a seus representantes, mas também aos direitos das minorias. A verdadeira pergunta a ser feita não é SE Israel pode ser judaico e democrático, mas sim O QUE fazer e COMO fazer para que o seja. A resposta não passa por um radicalismo que transforma todo judeu que não seja charedi ou ortodoxo não só num ‘não judeu’, mas até mesmo numa ameaça ao judaísmo ainda pior do que a dos aiatolás; não passa pela ideia de que as fronteiras de um Israel judaico e democrático devem abranger milhões de palestinos (isso sim resultaria num Israel antidemocrático se uma eventual minoria judaica se impusesse a uma eventual maioria palestina, ou não judaica, se uma eventual maioria palestina desse futuro ‘grande Israel’ se impusesse como tal). Pelo futuro judaico e democrático de Israel, a hora de decisão é agora. Ela incorre em risco, mas para os riscos da segurança existencial do Estado e de sua sociedade Israel dispõe de poderosas armas de defesa. Do risco da perda de sua própria identidade, a de um Estado judaico e democrático, só as decisões corretas podem defendêlo.

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