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Vittorio Corinaldi

minhas memórias de ben-Gurion, o “b.G.”

Tive algumas ocasiões de me sentar à mesa do refeitório do kibutz (um elementar barracão de madeira despido de mínimo luxo) próximo a Ben Gurion e sua esposa, Pola. Meu acanhamento de jovem “olé” foi o obstáculo no desejo de iniciar conversa com a legendária figura.

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David BenGurion, com o retrato de Theodor Herz ao fundo, em fotografia de 1948.

Vittorio corinaldi

Cheguei a Israel no início de 1956, alguns meses antes do oitavo aniversário da Independência do Estado.

As condições eram das mais precárias: ainda estava em vigor o regime de “Tzena”, o rigoroso racionamento de víveres e mercadorias a que estava sujeita a população, que havia triplicado naqueles poucos anos. O nascente Estado, se não bastassem os prementes problemas da mais imediata segurança a que fazia frente o ainda embrionário Exército de Defesa, viu-se às voltas com dificílimos problemas de habitação que se traduziram na implantação de numerosas “maabarot”, os improvisados campos de absorção da “Aliá” 1 de massas: frustrantes aglomerados de tendas e cabanas desprovidos de recursos sanitários e incapazes de proteger devidamente das intempéries. Os transportes públicos, estruturados com uma reduzida frota de veículos de elementar construção para atender aos 600 mil habitantes judeus do “Ishuv”2 pré-Estado, desmoronaram sob o peso da grande imigração, e ainda permanece viva em mim a imagem de verdadeira batalha que constituía o conseguir embarcar num ônibus.

Igualmente, a economia do país não tinha instrumentos suficientes para prover as necessidades, não tendo tido nem o tempo nem os meios de construir uma infraestrutura apropriada. Grande parte da nova população teve que recorrer a empregos governamentais organizados de urgência para uma força de trabalho sem preparo profissional.

Todo o quadro era então desesperadamente cinzento. Era preciso ter uma considerável dose de esperança e otimismo para encarar o futuro, e uma imaginação que beirava a ingenuidade para visualizar a nação forte e variada que veio a se constituir nas décadas seguintes.

Pode-se creditar o cultivo desse otimismo a diversos fatores: à ilimitada dedicação da jovem geração do “Ishuv”, a cujo espírito de lacônica fé, disciplina e sacrifício se devem à inverossímil vitória sobre forças inimigas muito superiores; à paradoxal sensação de realização inspirada na secular crença religiosa dos “olim”3 dos países árabes e do Oriente, cujo fervor pela chegada à terra dos antepassados os encorajava a suportar os dissabores de sua difícil absorção; à arraigada tradição do movimento sionista, que se põe como um sólido alicerce assentado no solo de uma cultura milenar; à traumática e muito recente experiência da Shoá.

Mas, acima de tudo coloca-se no centro deste inigualável momento histórico a figura dominante de David Ben Gurion.

Não sou historiador e seria presunçoso de minha parte abordar essa figura pelo lado da pesquisa acadêmica ou da descrição literária. Também não teria motivo de concorrer (mesmo se tivesse as qualidades para tanto) com autores mais acreditados para esta tarefa. Nunca cheguei a ter um contato pessoal com Ben Gurion. Mas ter vivido “ao lado” dele, ter presenciado de perto sua gigantesca capacidade de liderança, ter respirado a atmosfera de coragem, confiança, perseverança que emanavam de sua pessoa – é um privilégio de que poucos podem se gabar. E eu gostaria de saber transmitir essa sensação a outros que não foram testemunhas da epopeia que ele conduziu, e que talvez por isso não saibam avaliar seu âmbito e sua profundidade, consequentemente furtando-se à identificação integral com a causa sionista de que ele foi o incontestado líder.

Hoje, há 404 anos de seu falecimento, e na era da subcultura dos programas “reality” da TV, ou do culto pagão aos poderes milagrosos de corruptos “rabanim”5 e de suas interpretações “eruditas” de anacrônicas e irrelevantes normas rituais, presenciamos também as manifestações de total ignorância sobre a pessoa de Ben Gurion: ignorância

Também, depois do que se estende às condições históricas que ocaso (circunstancial ou definitivo?) do levaram à criação do Estado, e também a outros personagens que completavam a admirável equipe daquela liderança. E movimento trabalhista paira a ameaça de legar ao esquecimento israelense, e com a e ao desprezo a página gloriosa desse pasconsolidação da direita sado ainda tão próximo e tão vivo. na política local, não Também, depois do ocaso (circunstancial ou definitivo?) do movimento faltam tentativas de trabalhista israelense, e com a consolidaofuscar a absoluta ção da direita na política local, não faltam superioridade de visão tentativas de ofuscar a absoluta superiopolítica, mas ao mesmo ridade de visão política, mas ao mesmo tempo cultural e ética, tempo cultural e ética, de Ben Gurion. Não há dúvida que Menachem Begin de Ben Gurion. conseguiu atingir uma posição de semelhante prestígio e importância, demonstrando nos momentos cruciais saber se elevar acima das correntes politiqueiras e populistas de sua facção partidária. Mas há que reconhecer que daquela facção partiram numerosos esforços de falsificação histórica contestando a comprovada hegemonia da corrente de centro-esquerda encabeçada por Ben Gurion no estabelecimento do Estado, para pôr a atividade clandestina do “Etzel” (iniciais de “Irgun Tzvaí Leumí” – Organização Militar Nacional – de formação ideológica revisionista comandada por Begin, que atuou no final do Mandato Britânico) numa luz de heroísmo e ousadia, desproporcional seja à composição numérica da organização, seja aos resultados práticos de sua ação no contexto da independência de Israel. Neste contexto surge à lembrança o sabido episódio do navio “Altalena”. Já depois da proclamação do Estado, no período da primeira trégua dos combates, o “Irgun” fez chegar naquele navio um carregamento de armas especificamente destinadas ao grupo dissidente, em flagrante desrespeito da disciplina que Ben Gurion queria introduzir no quadro do novo exército, à qual deveriam se submeter todas as formações militares que atuavam até o momento da Independência. Os armamentos eram urgentemente necessários na desigual luta que vinha se travando contra os exércitos árabes invasores. Mas era inaceitável para Ben Gurion e para sua concepção de suprema preponderância do fator interesse nacional que uma milícia alheia ao comando do exército agisse com decisões próprias. Ordenou, portanto,

BenGurion lê a declaração de Independência de Israel em 14 de maio de 1948 (à esq.) e em reunião durante a guerra de Independência (à. dir.).

que o navio, ostensivamente ancorado ao largo da praia de Tel Aviv, fosse bombardeado, perdendo-se assim a preciosa carga, mas salvando o jovem país do perigo de formação de grupos políticos armados – fenômeno que se tornou comum nos instáveis regimes dos países vizinhos.

Depois da reviravolta política que elevou o “Likud”6 (continuador do “Herut” e do “Etzel”) ao poder, tenta-se subverter os fatos daquele episódio, e rodear os participantes de uma imagem de altos méritos na história nacional. Ter chegado no “Altalena” e lutado nas fileiras do “Irgun” é tido hoje como um atestado de supremo valor.

Fato é, porém, que o “Irgun”, após o sensacional episódio, cessou sua atividade autônoma e se juntou ao exército nacional. E hoje não há formação mais ferrenhamente defensora do “Tzahal”7 do que o Likud…

Sintomática da opinião de Ben Gurion sobre esta vital questão é a atitude que ele adotou com relação à “Palmach”, a elitista tropa de choque da “Haganá”8, o legítimo precursor do exército de defesa junto ao “Ishuv”. Contrariamente ao “Irgun”, esta era a força militar dependente da direção política eleita e sempre atuou em conformidade com a linha ditada por esta. Sendo constituída pela quase totalidade da juventude de então, gozava de unânime prestígio e de um “folclore” largamente apreciado dentro da nascente cultura israelense.

Apesar desta geral simpatia, Ben Gurion dissolveu também esta formação, coerente com sua indobrável decisão de não permitir a presença de manifestações estranhas dentro da estrutura militar: ato de coragem, que até hoje garante a estabilidade democrática e parlamentar do país.

A visão histórica de Ben Gurion ganha uma dimensão particular na insistência com que – contra a oposição de alguns dos partidos que compunham a direção do “Ishuv” – sustentou a necessidade de declarar a fundação do Estado no momento da cessação do Mandato inglês. E sua pragmática aceitação da Partilha da Palestina (em contraste com a retórica declarativa da “Grande Israel em ambas as margens do Jordão”, enunciada pela ala revisionista) demonstra igualmente sua interpretação equilibrada da realidade e sua convicção da necessidade inadiável de uma decisão concreta e realista, não desperdiçando a conjuntura única que se apresentava.

No decorrer dos anos de minha atividade profissional como arquiteto do movimento kibutziano, vim a desenvolver uma ligação muito íntima e amistosa com o Kibutz Sdé Boker no deserto do Neguev.

Acompanhei este Kibutz em seu desenvolvimento físico desde os seus primórdios. E foi neste começo que pude lá observar Ben Gurion. Ele havia se associado ao kibutz (então situado em desolador isolamento em região completamente árida e inóspita) num momento em que circunstâncias políticas o impeliram a abandonar o cargo de primeiro ministro.

Com gesto eminentemente demonstrativo de sua vi-

são do Neguev como a reserva territorial mais importante do país, para a qual se deveria orientar a juventude e o máximo esforço de desenvolvimento agrícola e industrial, ele foi morar no kibutz nas modestíssimas condições que ele oferecia então, trabalhando como pastor de ovelhas.

Nessa época, o afastamento das funções de governo não o impedia, porém, de atrair ao longínquo kibutz visitantes do país e do exterior, que, no desejo de ouvir sua opinião ou seu conselho, tinham que se conformar ao excêntrico ambiente e à total falta de etiqueta protocolar.

Exemplo típico foi uma visita do Secretário-Geral da ONU, Dag Hammerskjold. O colóquio deste com Ben Gurion se deu durante a cotidiana caminhada em passo vigoroso, que era parte dos hábitos do “velho”. E o diplomata sueco teve que coordenar seu próprio passo com o enérgico andar do singular personagem de baixa estatura, seguidos ambos ao longo dos empoeirados caminhos da redondeza do Kibutz por alguns seguranças ofegantes.

Tive algumas ocasiões de me sentar à mesa do refeitório do kibutz (um elementar barracão de madeira despido de mínimo luxo) próximo a Ben Gurion e sua esposa, Pola.

Meu acanhamento de jovem “olé” ainda pouco familiarizado com os grosseiros costumes dos “sabras” me foi o obstáculo no desejo de iniciar conversa com a legendária figura. E fico desde então com a sensação de perda de uma experiência única, e com a admiração e o respeito pela extrema modéstia e absoluta honestidade nos hábitos pessoais de tão grande líder.

Sua impressionante fisionomia, sua autoridade apoiada no exemplo pessoal e no não compromisso em questões de destino do país e do povo, sua fé na renovação do judaísmo contida na realização sionista, e que se exprimia, por exemplo, na insistência do uso do hebraico e contrariedade ao recurso a línguas e dialetos forjados em longos anos de Diáspora, sua obsessiva exigência de “hebraizar” os nomes próprios trazidos do Galut, seu encorajamento ao estudo do Tanach à luz do novo enfoque que a acessibilidade geográfica e a “familiaridade” dos personagens agora possibilitavam – tudo isto o coloca em paralelo com as maio-

Ao assinalar os 40 anos res personalidades da história judaica de de seu falecimento, vêm à tona as comparações todos os tempos. Não se pode ignorar a intransigência que exibia para com adversários polítiinevitáveis com a cos (ficou gravada a exclamação: “Sem o presente cena política Herut e sem o Maki” com a qual repede Israel. A falta de uma tidamente excluía o Partido Revisionista liderança corajosa da e o Comunista de qualquer hipótese de coalisão na Knesset9), nem o rude ostraestatura de Ben Gurion cismo em que procurava isolar objetores ecoa tragicamente de sua liderança (é sabida a divergência na linha que o país de visão entre ele e Moshe Sharet, o culvem mantendo desde tivado formador do Serviço Diplomátialgumas décadas, numa co Externo, e substituto de Ben Gurion na chefia do governo durante o parênteinsustentável ocupação se de Sdé Boker). de território palestino. Sua forte vontade de dar preponderância aos interesses nacionais sobre as considerações que ele definia como partidárias e eleitoreiras o impeliram a posições às vezes extremas e obstinadas, como foi a chamada “Parashá” – o caso de uma fracassada ação da inteligência israelense no Egito, levada a cabo sem suas instruções. Este caso o pôs em aberta divergência com a maioria da direção do Mapai10, culminando com seu patético abandono das fileiras do partido que era a sede de todo o seu fazer público. Seria lícito usar da comparação com Moisés arremessando ao chão as Tábuas da Lei recebidas no Monte Sinai? Pois me parece não ser absurdo olhar para Ben Gurion com a mesma aura de grande condutor, dotado das imensas qualidades, mas também dos defeitos e caprichos que acentuam sua humanidade ao lado da magnitude de sua figura perante o povo. Ao assinalar os 40 anos de seu falecimento, vêm à tona as comparações inevitáveis com a presente cena política de Israel. A falta de uma liderança corajosa da estatura de Ben Gurion ecoa tragicamente na incongruente linha que o país vem mantendo desde algumas décadas, numa insustentável ocupação de território palestino e numa condenável tolerância por manifestações fanáticas e revoltantes do setor messiânico ortodoxo, orientado e fomentado pela irresponsável incitação de pseudorrabinos extremistas. Estes incutem com claro teor de preconceito uma suposta vontade divina da presença judaica em meio a populações árabes a que se nega o pleno direito de sua identidade e propriedade.

Leitura da Proclamação da Independência de Israel em encontro realizado no Museu de Tel Aviv, em 14 de maio de 1948.

Ben Gurion está sepultado em lugar adjacente ao Kibutz Sdé Boker. Seu túmulo, caracterizado pela mesma modéstia e austeridade que eram próprias do homem, situa-se, porém, em dramática e majestosa posição, dominando um largo panorama do Neguev, que ele enxergava como a grande promessa no futuro de Israel.

O ato derradeiro que o imortaliza conserva a mesma coerência que foi a linha mestra de toda sua vida de completa dedicação. O sóbrio bom gosto da implantação de seu túmulo dá uma lição de honestidade de que tanto necessitam a nação e o povo judeus, na angustiada expectativa pelo líder que os reconduza à sua vocação de paz e de fé. 40 anos errou o povo pelo deserto, até se tornar capaz da autonomia que Moisés lhe ensinou. 40 anos vem Israel errando pelo deserto político que ele próprio criou, privado do ensinamento de um novo Ben Gurion.

É chegada a hora em que um sopro de bom senso se faça sentir, e Israel readquira sua autêntica imagem: não de “potência” bélica ou tecnológica de que hoje tanto nos ufanamos, mas de “luz para os povos”, numa releitura do desafio moral e humano que Ben Gurion nos transmitiu.

Notas

1. Nota do Editor: literalmente, “subida” significa a imigração de judeus ao Estado de Israel. 2. N.E.: literalmente, “assentamento” significa a sociedade israelense no território do

Mandato Britânico. 3. N.E.: pessoas que fazem “Aliá”, que imigram para o Estado de Israel. Singular: “olé”. 4. N.E.: Ben Gurion faleceu em 01 de dezembro de 1973 – este texto foi escrito no fim de novembro de 2013. 5. N.E.: significa “rabinos” em hebraico. 6. N.E.: “Likud” é um dos atuais partidos políticos de Israel, que sucedeu ao partido denominado “Herut”. 7. N.E.: acrônimo de “Tzavá Haganat LeIsrael” – “Exército de Defesa de Israel”. 8. N.E.: literalmente, “defesa”, nome da organização paramilitar pré-estado do Ishuv. 9. N.E.: o parlamento do Estado de Israel. 10. N.E.: partido político ao qual pertenceu Ben Gurion – acrônimo de “Mifleguet

Poalei Eretz Israel” – Partido dos Trabalhadores da Terra de Israel.

Vittorio Corinaldi, arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), vive em Israel desde 1956. Durante 40 anos foi membro do Kibutz Bror Chail. Atualmente vive em Tel Aviv. Atuou como arquiteto no quadro do escritório central de planejamento da organização dos Kibutzim, tendo sido seu arquitetochefe por dez anos. Executou numerosos projetos em dezenas de kibutzim, e trabalhou também em questões de planejamento rural, mais especificamente aquelas ligadas ao movimento kibutziano.

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