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Rabino Dario Bialer
Ética e torá É a mesma coisa?
rabino dario bialer
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“613 mitsvot foram dadas a Moshé, 365 negativas, correspondendo aos dias do ano, e 248 positivas, correspondendo às partes do corpo humano.” O midrash prossegue mostrando que em cada geração elas foram reduzidas a um número menor de princípios básicos: Michá veio e as condensou em três: “Foi dito a ti, ó homem, o que é bom e o que o Eterno requer de ti – apenas que faças justiça, que ames a compaixão e que caminhes humildemente com o teu Deus” (6:8). Isaías veio e as condensou em duas: “Mantenha a justiça e a retidão” (56:1). Amós veio e a condensou em uma: “Me procure e viva!” (5:4). (Talmud Makot, 24a)
Pouco tempo atrás recebi de presente o livro A Revolução da Torá. As 14 verdades que mudaram o mundo. Bom título para um bestseller, pensei. Assim, comecei a ler não tanto pelo tom marqueteiro do título, mas porque conhecia o autor. Tínhamos frequentado as mesmas Assembleias Rabínicas algumas vezes. Reuven Hammer, um renomado rabino americano.
Cheguei à terceira verdade revolucionária: #3 A moralidade é a demanda suprema para todos os seres humanos. O ritual é secundário para uma conduta íntegra.
Deixou-me pensando o rabino Hammer.
Quem é que demanda aos seres humanos? Deus? Deus é sempre ético? Torá e ética são a mesma coisa? São idênticos os caminhos para uma vida moral e a halachá? Quem é que demanda aos seres humanos? Deus? Deus é sempre ético? Torá e ética são a mesma coisa? São idênticos os caminhos para uma vida moral e a halachá?
Essas perguntas são as que guiaram o desenvolvimento deste texto.
Para começar, devo dizer que é indiscutível que o relato bíblico está cheio de exemplos em que a ética faz parte dos desígnios Divinos, desde a criação do mundo, passando pelos patriarcas, Moisés e os profetas de Israel.
Alguns poucos (bem poucos) exemplos: o cuidado com os mais vulneráveis numa sociedade na qual é preciso permitir que os mais vulneráveis colham livremente nas bordas dos campos e o conceito do shabat avedá, isto é, a obrigação de que se alguém achou um animal perdido no caminho tem que cuidar dele e fazer o impossível para achar o seu dono. Mas, repito, estes são apenas poucos exemplos de um imenso arcabouço de uma rede de cuidados aos próximos e de comportamento ético prescrito na Torá. Para muitos estudiosos, Existe um impulso natural de querer a submissão de demonstrar como o judaísmo e o Deus de Israel são éticos. Por exemplo, no TalAbrão na akedá é o mud da Babilônia vemos: [o que significa] paradigma que domina Andar pelos caminhos de Deus? Assim como a vida e o pensamento Deus veste aos despidos, vocês devem vestir religiosos. Para eles, aos despidos, assim como Deus visita os doa sobrevivência e entes, vocês também devem visitar os doentes, assim como Deus conforta os enlutados, a continuidade da vocês devem fazer o mesmo (Sotá 14 a). tradição requerem Por outro lado, existem ideias de entrega incondicional, pessoas destacadas, como o professor sacrificando o intelecto e a intuição ética. Yeshaiau Leibowitz, radicalmente no contraponto: Há os que louvam o slogan da moralidade da profecia judaica. Contudo, o Judaísmo é revelado através da religião e isto inibe a existência da “moralidade judaica”. A fé religiosa revelada na Torá e nos mandamentos não é uma categorização moral; não requer consciência humanitária. Não por coincidência, nenhum dos 48 profetas e sete profetizas de
Israel jamais apelaram para a consciência do ser humano.
Leibowitz pensa que a moral como valor supremo é uma categoria do mundo secular. Em suas próprias palavras: “Kant foi um grande moralista, porque para ele o homem é Deus”, e esse não é caminho para o homem religioso.
Mas vamos começar desde o início, Bereshit, desde o gênesis da história dos seres humanos dialogando com Deus, o Soberano do Universo, que procura um homem para que seja seu sócio. Não funciona com Adão, tampouco com Caim, não funciona com Noé, até que chegamos a Abrão.
Com ele Deus consegue dialogar e o que sucede são duas histórias emblemáticas que nos proporcionam imagens completamente dissímiles de Deus. Dois modelos antagônicos de consciência religiosa.
O primeiro relato é a decisão de Abrão, diante do decreto Divino de destruir a cidade de Sodoma. Abrão não corre para a biblioteca à procura de um livro que justifique ou desabone a decisão divina. Ele reage prontamente, numa reação automática: “Destruirás também o justo junto com o mau?! Talvez haja 50 justos dentro da cidade. Também destruirás e não perdoarás ao lugar pelos 50 justos que há dentro dela?” (Bereshit 18:23-24)
Abrão parece se sentir “obrigado” a discutir com Deus, algo não só infrequente como também prematuro. Ainda não tinham um vínculo de tanta confiança que justificasse tamanha ousadia. Parece que Abrão não escolhe discutir com Deus. Parece que ele não consegue evitar a explosão emocional por não tolerar a injustiça.
Há um impulso natural sobre o que é decente e justo. Devemos permitir que este impulso aflore em nosso sistema religioso em vez de desprezá-lo.
Abrão, nesse relato, se apresenta como um ser ético e profundamente religioso. E o Deus que ele venera não pode deixar de agir dessa forma. “Deus não pode ser imoral!”, parece estar nos dizendo o patriarca. Portanto, ele se sente no direito de responder com uma grandíssima autonomia moral, gritando com todas as suas forças: “O juiz de toda a terra não haverá de fazer justiça?” (Bereshit/Gênesis 18:25) Isto é de uma convicção que só quem se sabe moralmente certo pode sentir.
O segundo relato é tão conhecido e ainda mais proble-
Não é justificativa dizer mático do que o primeiro, quando, de-
‘Deus me ordenou a fazer isto ou aquilo’. pois de lhe ter prometido descendência, Deus, sem explicação nenhuma, lhe exige que sacrifique seu filho no Monte Mo-
É sempre decisão de riá, no episódio conhecido como “akedá cada um estabelecer de Isaac”. Dessa vez Abrão permanece no limites éticos diante das mais absoluto silêncio, acorda cedo e leva demandas que Deus ou Isaac ao sacrifício. Acaso essa ordem não viola as intuições morais de Abrão? O a religião nos faz. senso de ética do patriarca admite matar seu próprio filho? Para muitos estudiosos, a submissão de Abrão na akedá é o paradigma que domina a vida e o pensamento religiosos. Para eles, a sobrevivência e a continuidade da tradição requerem entrega incondicional, sacrificando o intelecto e a intuição ética. Se no exemplo de Sodoma interpretamos que o judaísmo se edifica com um metavalor ético-moral, que autoriza a questionar ao próprio Deus, a akedá parece querer dizer que a religião judaica deve ser fundada na obediência, sem importar se o mandamento contraria a moral. Que a ética, a justiça e o livre arbítrio dos homens, tudo está subordinado a Deus. O dilema de Abrão, no momento em que sua intuição moral interior conflita com a tradição, é se o caminho prescrito a partir de uma perspectiva religiosa seria questionar a intuição e acatar a tradição ou se seria o oposto. E esse questionamento semeia a dúvida: Pode a religião nos desafiar a abandonar nossas convicções morais básicas? O rabino David Hartman diz em seu livro A God who hates lies que “o pacto estabelecido entre Deus e o povo judeu não foi apenas um acordo de obediência incondicional; foi igualmente um acordo de transferência de poder e uma afirmação na capacidade humana”. Quer dizer, não é justificativa dizer ‘Deus me ordenou a fazer isto ou aquilo’. É sempre decisão de cada um estabelecer limites éticos diante das demandas que Deus ou a religião nos faz. Por isso existe a halachá no judaísmo. Porque é uma tradição interpretativa que, independentemente do que está escrito no livro sagrado, se permite criar comentários que autorizem a possibilidade de contornar e mudar a lei existente, bem como criar leis novas. Não devemos nos confundir e, quando ouvirmos o termo halachá, pensar num código fechado que não admi-
te nos distanciar nem um metro à direita ou à esquerda da norma.
Reduzir a halachá a aspectos mecânicos, ignorando sua função enquanto relação entre as pessoas a despoja de suas bases éticas. Esse comportamento desconhece que a função principal da halachá é ser um instrumento para efetuar mudanças e não um fim em si mesma. Sem isso, cria-se um abismo entre o judaísmo e sua halachá, seu processo vital de existência.
O mesmo problema teve Maimônides quando criou o monumental Mishnê Torá. Ele aspirava facilitar aos que quisessem conhecer a halachá do Talmud, fazendo com que não precisassem se embrenhar em suas discussões, nem perder tempo com suas hagadot. Mas fracassou porque passou por cima de uma importante realidade; quando separamos a lei da hagadá, seu fundamento ético e ideológico, o resultado é um conceito errôneo e uma compreensão distorcida da natureza e da realidade.
Como diz o rabino Gordis: Separar a halachá do substrato dialético do Talmud e dos códigos ocasiona uma apreciação inadequada do caráter haláchico e sua incidência no processo de princípio unificador na vida do povo1 .
Uma conclusão preliminar poderia ser a seguinte: Considerações éticas devem ser aplicadas ao procedimento haláchico, pois a halachá não pode ser imoral, embora a halachá e a ética não sejam a mesma coisa, pois pertencem a duas classes diferentes de expressão. A halachá representa um complexo específico de leis e costumes; a ética se refere a uma disciplina filosófica preocupada com uma conduta moral que pretende ser universal.
Em sentido estrito, os termos não são comparáveis. Portanto, se não são iguais e se concordamos que a mensagem judaica não pode ser imoral, será que os rabinos aplicaram na sua atividade legislativa um critério ético externo à halachá? Será a halachá independente? Deveria ser independente de juízos morais estabelecidos sobre bases não haláchicas?
Eu obviamente considero que sim. Que há valores judaicos surgidos de outras fontes, outras culturas e tradições, que são incorporados ao corpo de normas haláchicas. O judeu moderno não vai aderir ao judaísmo por
Reduzir a halachá a ser milenar. Não se abraça uma tradição aspectos mecânicos, ignorando sua função por causa de sua antiguidade, mas porque contém ideias valiosas às quais se anseia subscrever. enquanto relação entre Se existe um abismo entre a halachá e as pessoas a despoja boa parte do povo judeu, esse vazio não de suas bases éticas. será preenchido por uma halachá que não
Esse comportamento os represente, que não seja a mais elevada manifestação do espírito humano. Por desconhece que a isso, o sistema de normas da halachá defunção principal da veria ser reformulado desde seus princíhalachá é ser um pios mais básicos. instrumento para efetuar Sabem isso, que habitualmente se esmudanças e não um fim cuta dizer, que a observância da lei é fundamental para que o judaísmo seja preserem si mesma. vado? Aí é que está: o judaísmo não deve ser preservado! Deve se mover, progredir. Utilizar toda a sua potencialidade de desenvolvimento e aplicar isso no sistema da halachá, que não é outra coisa senão a interação de Deus e os homens no tempo. Mais do que o conteúdo literal da revelação de Deus no Sinai, deve-se aceitar o papel ativo do homem no desenvolvimento criativo da lei. Diz Gordis: Isso significa a aceitação da possibilidade de existir erros nessa tradição legal, e a necessidade de progresso em níveis mais altos de sensibilidade ética (...), pois nada menos do que as normas éticas mais elevadas podem ser admitidas como o resultado da interação do ser humano com o Divino (...). Os defeitos humanos não devem ser nem canonizados nem tampouco pode-se atribuir a eles a pretensão de imutabilidade 2 . Devemos nos valer de todos os recursos que estão em nossas mãos. Da nossa sensibilidade, de nossos conhecimentos e de nossa inteligência para que a tradição continue sendo um instrumento que realce a qualidade da existência humana. A halachá é humana. Criada, pensada, sentida e discutida pelos homens. Desde o Talmud até o Shulchan Aruch, durante mil anos, os rabinos edificaram um sistema de leis para viver nelas. Os judeus não vivem a moral que Deus manda e sim a que escolhem. Isso lhes dá caráter de sagrado. As tentativas de identificar a halachá com o Sinai são meramente folclóricas. Mas, como na história de Abrão, existem relatos que tendem a destacar a independência criativa dos rabinos, e
outros que subordinam toda lei (seja da Torá, seja do Talmud ou posterior) à Revelação a Moisés no Sinai. Vejam que interessantes as ideias encontradas nestes midrashim:
Bendito seja o Nome do Rei. Rei dos Reis que elegeu a Israel dentre setenta nações como está escrito: “Mas, a parte de Deus foi Seu próprio povo, Jacó foi sua porção designada e Ele nos deu a Torá escrita contendo indícios sobre assuntos encobertos e ocultos, e os explica na lei oral que revelou a Israel”. (Midrash Tanhuma, Noach, 3)
“Estes são os estatutos, os juízos e as leis que estabeleceu Deus entre Ele e os filhos de Israel.” (Levítico 26:46) “Os estatutos – são as interpretações. Os juízos – estas são as leis; e os ensinamentos (Torot) – esses ensinam que a Israel se deram as Torot, uma escrita e a outra oral.” (Sifra, Bechukotai, 8)
O Talmud Yerushalmi vai além e interpreta que absolutamente qualquer ensinamento de Torá e interpretação de qualquer lei em qualquer momento histórico, tudo já foi revelado no Monte Sinai. O versículo em questão é Deuteronômio 9:10: “E Deus me deu as tábuas de pedra escritas com o dedo de Deus e sobre elas estavam escritas todas as palavras que Deus falou no monte no meio do fogo, no dia da Assembleia” . O rabino Joshua ben Levi disse: “Todas as palavras”. Umas palavras são a Torá, e as outras palavras são a Mishná, Talmud e Agadá. Até mesmo o que o estudioso avançado está destinado a ensinar na presença de seu professor foi dito a Moshé já no Sinai. (Peah 2,4)
Mas nem todos os rabinos se contentavam em descrever sua função como meros copiadores de textos e reprodutores de uma revelação já consumada no passado. Eles não estavam para repetir, mas para criar, e entendiam sua função como uma ação recíproca: por um lado recebiam e transmitiam uma tradição, e por outro lado as autoridades rabínicas eram perfeitamente cientes de ter um papel criador, que assumiam com muita sensibilidade e genial criatividade.
“E Ele deu a Moshé” (Exôdo 31:8) (o anônimo autor midráshico pergunta retoricamente): Estudou Moshé realmente toda a Torá? Está escrito: “Sua dimensão é mais ampla que o mar” (Jó 11:9), e Moshé estudou (tudo) em quarenta dias? O Santo, Bendito Seja, ensinou a Moshé princípios gerais. (Êxodo Raba 41,6)
Esse outro midrash, em oposição aos anteriores, tenta harmonizar entre o lugar destacado que a tradição guarda a Moisés e, ao mesmo tempo, assume a responsabilidade
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sobre que seriam eles, os rabinos, os responsáveis por legislar, interpretar e criar as halachot que iriam conduzir a vida de milhões de judeus ao longo dos séculos.
O certo é que não apenas o Midrash tem opiniões antagônicas do que aconteceu no Sinai, mas a própria Torá também não deixa isto claro. Leiam com atenção a parashá Yitro no livro de Êxodo. No momento sublime da entrega dos dez mandamentos, Moisés não recebe duas tábuas. Ele desce do monte e fala os mandamentos que escutou de Deus, mas sem as tábuas. Já no capítulo 24 versículo 4 do mesmo livro podemos ver que Deus não as escreveu, mas que foi Moisés: “E escreveu Moisés todas as palavras do Eterno”. Algumas linhas depois (versículo 12) Deus ordena: “Sobe a Mim, ao monte, e fica ali; e dar-te-ei as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinar”. Mas como? Não era que Moisés já havia escrito e agora Deus diz que ele vai escrever e entregar? De qualquer forma, Deus ainda não entrega nada e só no capítulo 31 versículo 18 deu a Moisés “duas tábuas de testemunho, tábuas de pedra escritas com o dedo de Deus”.
Com todos esses exemplos eu pretendo evidenciar a tensão que existe numa tradição que por um lado quer venerar o passado e, por outro, quer continuar andando. É preciso entender que toda a legitimidade emana de Deus e também que a lei dos homens é obra dos homens. Querer manter vivo o Sinai e ao mesmo tempo compreender que se vamos depender dos critérios éticos que foram de-
Sabem isso, que cisivos no passado para que determinem habitualmente se escuta dizer, que a observância o presente e o futuro, isso não será viável. Venerar a tradição tem que ser o ponto de partida e nunca o final do procesda lei é fundamental so. O processo haláchico corretamente para que o judaísmo entendido pressupõe uma tensão criatiseja preservado? va entre a tradição que foi recebida (Si-
Aí é que está: o nai) e os critérios próprios da comunidade haláchica, que, além de se nutrir da judaísmo não deve ser tradição e do religioso, deve considerar preservado! Deve se também os aspectos éticos, psicológicos, mover, progredir. sociológicos, políticos e econômicos do seu contexto particular, para que todas essas palavras, as da Torá e o Talmud, as da ética e a moral, a literatura profética e rabínica, os costumes de cada lugar, bem como os novos ensinamentos da modernidade e tudo o que for relevante para o ser humano, que todas essas palavras se constituam em ferramentas de transmissão e transformação, e fundamentalmente em valores vivos e presentes, com a possibilidade concreta de fazer diferença real na vida das pessoas.
Notas
1. Gordis, David. Halachá as Process: The Jewish Path to the Good Life, University of Judaism, 1983. 2. Idem. O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém, Israel.

