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Nathalia C. B. Sacks

a pele de auschwitz

A importância da comunidade no suporte ao insuportável na obra de Charlotte delbo

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O que caracteriza as mulheres francesas que apoiaram e ajudaram a Resistência? Algumas eram idealistas. Outras eram forasteiras e talvez até revolucionárias. Assim como na resistência masculina, elas eram uma minoria entre a população. Todos os que participaram da resistência eram indivíduos corajosos com muito caráter.

nathalia c. b. sacks

OHolocausto é normalmente retratado pelos olhos dos judeus sobreviventes, refletindo a dor e o sofrimento destes durante o período mais terrível da história mundial. No entanto, entre os estimados 11 milhões de pessoas que morreram nas mãos dos nazistas entre 1933 e 1945, cerca de cinco milhões pertenciam a grupos que ou recusaram a reconhecer a liderança de Adolf Hitler ou de quem o Führer alemão não gostava – oponentes políticos em particular.

Um dos maiores filósofos do século 20, Nietzsche, fez a seguinte pergunta: “O que é melhor: ser mais monstruoso que o monstro ou ser devorado em silêncio?” Em outras palavras, é melhor lutar contra um monstro, mesmo que por meios ainda mais monstruosos, ou se deixar consumir por ele? A resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial é um exemplo perfeito de como não se deixar consumir pelo monstro, os nazistas neste caso. A resistência lutou energicamente, usando todos os recursos disponíveis para vencê-los. Neste texto, vou explorar e analisar esta horrível experiência através dos olhos femininos da resistência francesa. Embora elas não tivessem necessariamente descendência judaica, elas lutaram pela sobrevivência e pela resistência à ocupação nazista com tanto ódio como os judeus.

Não importa quantas vezes eu releia Um Trem no Inverno, de Caroline Moorehead, O Comboio de 24 de Janeiro, de Charlotte Delbo, e Irmãs na Resistência, de Margaret Collins Weitz, o sentimento de comunidade e de solidariedade

que foi formado entre as mulheres, não só na resistência, mas também nos campos de concentração, não deixa de me surpreender. Portanto, estes pedaços de literatura são o ponto de partida para o meu texto, servindo como plano de fundo para entender e decifrar os extraordinários destaques literários que são encontrados em Auschwitz e Depois, escrito pela résistante Charlotte Delbo.

Em 1940, foram aprovadas na França medidas para evitar que as mulheres casadas saíssem para trabalhar. Em julho, poucos dias antes da criação do regime de Vichy, o governo de Pétain disse aos prefeitos que providenciassem nas empresas de suas municipalidades a demissão de todas as mulheres cujos maridos haviam sido desmobilizados pelo exército, inclusive nos casos em que o marido estava desempregado e a família dependia somente do salário da esposa.

Isto disparou uma forte discriminação no local de trabalho contra as mulheres, cujos salários começaram a mostrar uma enorme desigualdade quando comparados com os dos homens. Enquanto isto, na área de educação, os examinadores foram orientados a “passar” menos meninas do que meninos no exame de bacharelado. Essas ações foram estimuladas pelos “três K” da doutrina de Hitler, Kinder, Küche, Kirche (iniciais das palavras em alemão que restringem as mulheres à maternidade, à cozinha e à igreja) e foi neste contexto que muitas mulheres francesas se recusaram a aceitar primeiro o regime Vichy e, depois, o regime nazista que se instaurou sem disfarces na França.

O general Charles de Gaulle, um desconhecido na época, transmitiu uma forte mensagem condenando tanto a passividade para com os nazistas como a colaboração com eles. Suas mensagens eram transmitidas pela BBC e geralmente giravam em torno do mesmo tema: Era um crime os cidadãos franceses seguirem ordens dos ocupantes e era uma honra desafiá-los. “Em algum lugar deve brilhar e queimar a chama da resistência francesa!” Esta frase ecoou

fortemente, inspirando muitos franceses a não ceder aos alemães e criou a faísca necessária para o surgimento da resistência. A ocupação alemã tornou possível tanto para as mulheres como para os homens tomar parte ativa na guerra de maneiras não tradicionais, sendo uma delas a resistência subterrânea. Neste recém-definido campo de batalha as mulheres foram capazes de tomar a decisão pessoal de se juntar à luta, assumindo todos os riscos associados: lesões, prisão, tortura e morte.

O que caracteriza as mulheres francesas que apoiaram e ajudaram a Resistência? Algumas eram idealistas. Outras eram forasteiras e talvez até revolucionárias. Assim como na resistência masculina, elas eram uma minoria entre a população. Em minha opinião, todos – homens e mulheres – os que participaram da resistência eram indivíduos corajosos com muito caráter. E Vichy com certeza queria esmagar o individualismo. A resistência transcendeu barreiras sociais, reunindo pessoas de todos os tipos de condições econômicas. Havia atrizes famosas, mas também pequenos biscateiros. Alguns altamente intelectualizados e outros que mal sabiam ler. Era realmente uma mistura extraordinária.

Paul Celan, um judeu nascido na Romênia e sobrevivente de um campo de concentração, em seu poema Fuga da Morte, faz uma oposição ambígua entre Margareta e Sulamita: “Seu cabelo dourado Margareta / seu cabelo de cinzas Sulamita”. Com o contraste entre uma mórbida aparência judaica e uma vívida aparência ariana, ele evoca a discriminação tóxica do Terceiro Reich. Por outro lado, as 230 corajosas mulheres de Um Trem no Inverno excederam especificamente essas diferenças, entre muitas outras, fazendo uma única causa contra a Alemanha nazista. Professoras, escritoras, estudantes e donas de casa, uma atriz, uma parteira e uma dentista. Loira e morena, jovem e idosa, judia e católica. Estas mulheres espalharam panfletos antinazistas, esconderam resistentes, transportaram armas e levaram mensagens secretas. Desconhecidas umas às outras, essas mulheres corajosas estavam unidas por seu compromisso comum com a Resistência.

Houve várias maravilhosas figuras femininas na resis-

Em seu absolutamente tência francesa; demais para caber neste realista e comovente Auschwitz e Depois, artigo. Por esta razão, vou focar apenas na magnífica Charlotte Delbo. Foi conscientemente que Charlot-

Charlotte Delbo te Delbo escolheu se envolver na resisexplora os horrores, tência comunista francesa. Nascida em os sentimentos, 1913 nos arredores de Paris, Delbo abanas memórias e as donou a turnê sul-americana da compa nhia teatral de Louis Jouvet na Argenti experiências de ser na, onde ocupava o cargo de secretária, prisioneira e de quando soube que um de seus amigos ser sobrevivente do havia sido morto pela polícia de Pétain

Holocausto. O livro em novembro de 1941. A França foi iné escrito com tanta vadida pela Alemanha em maio de 1940 e já em junho havia cedido ao armistípungência em sua cio. O norte da França caiu sob o controdescrição crua que o le alemão e colaboracionista de Pétain, o leitor fica esmagado governo antissemita, anticomunista e topela verdade. talitário de Vichy. Delbo voltou para Pa ris e trabalhou com seu marido, Geor ges Dudach, na Resistência. Charlotte e seu marido foram presos quatro meses após sua chegada em Paris. Ele foi morto logo em seguida. Ela ficou cinco meses no campo de Romainville e foi transportada para Auschwitz Birkenau num comboio de 230 mulheres, dentre as quais apenas 49 sobreviveram. Delbo sobreviveu – não como judia, mas como prisioneira política – ficando lá por 27 meses. Em seu absolutamente realista e comovente Auschwitz e Depois, Charlotte Delbo explora os horrores, os sentimentos, as memórias e as experiências de ser prisioneira e de ser sobrevivente do Holocausto. O livro é escrito com tanta pungência em sua descrição crua que o leitor fica esmagado pela verdade. O livro transita entre diversas formas: em algumas partes ele assume uma narrativa histórica, enquanto que em outras ele se parece muito com um poema. Delbo brinca com as convenções, evitando pontuação, usando uma linguagem muito ousada e coisas aparentemente normais para contrastá-las com a terrível realidade. Como muitos outros detentos que escreveram sobre suas terríveis experiências, Delbo tenta mostrar o que aconteceu no campo: ela não está interessada em descrições abrangentes, mas em causar impacto nos leitores. Com a ajuda da linguagem poética ela nos faz compartilhar, tanto quanto possível, a sua inacreditável experiên-

cia. Sua recriação das prisioneiras detidas é a de seres humanos tentando sobreviver: não há heroísmos ou resistência. Se há uma menção de luta, é contra a de ser reduzida ao nível de animais e a de preservar a vontade de viver, quando a morte se torna mais atraente do que a vida.

Na medida em que Auschwitz e Depois pode ser considerado como o relato de uma única história, seu epítome seria algo parecido com isto: o primeiro volume começa com a chegada em Birkenau-Auschwitz e termina enquanto Charlotte Delbo ainda está em Birkenau. A segunda começa em Birkenau e termina com a liberação em Ravensbrück e a terceira, na qual ela relata principalmente sua deportação, consiste de testemunhos atribuídos a algumas colegas sobreviventes. Desta maneira, é através de um estilo complexo e de intensas técnicas literárias que suas memórias levam o leitor para um lugar que ele nunca poderia ter ido por si só, para Auschwitz e a vida que se segue ao campo.

Charlotte Delbo começa seu livro com duas frases: “Hoje eu não estou certa de que o que eu escrevi é verdade. Estou certa de que é verdadeiro”. Ao iniciar suas memórias com essas palavras, ele cega o leitor e o prepara para o que está por vir, colocando todo o livro em perspectiva. Além disso, ao nomear o primeiro capítulo Nenhum de Nós Retornará, ela está dizendo que as pessoas não deveriam ter sobrevivido ao campo; elas deveriam ter morrido de uma forma ou outra. Além dessa noção de retorno, ela também se preocupa com o fato de que uma vez que alguém sobrevive a algo tão terrível e traumático como este, a pessoa de modo algum permanece a mesma. Assim, mesmo quando ela e alguns de seus companheiros voltam para suas casas, estão profundamente alterados até o interior de seus últimos ossos, quebrados para sempre e incapazes de voltar para quem, o que e onde estavam antes de Auschwitz.

A questão da comunidade é trazida pelo primeiro título de sua trilogia, Nenhum de Nós Retornará. O seu elemento mais instigante pode muito bem ser o pronome da primeira pessoa do plural “nós”. A quem exatamente esse

Delbo se preocupa com pronome se refere? Como dito anterioro fato de que uma vez que alguém sobrevive mente, Delbo foi presa e deportada por razões políticas e a sua vida nos campos foi passada principalmente na companhia a algo tão terrível e de mulheres de seu próprio comboio cuja traumático como este, diferença de etnias e de classes deu origem a pessoa de modo a uma solidariedade criada entre nacionaalgum permanece a lidades e idiomas. E, de fato, o pronome se refere a estas prisioneiras com as quais mesma. Assim, mesmo Delbo compartilhou semelhanças. A soquando ela e alguns brevivente que, assim como Delbo, opta de seus companheiros por dar testemunho e desta forma quevoltam para suas casas, brar o silêncio imposto pelo nazismo e liestão profundamente bertar o seu aprisionado discurso, descobre que a libertação envolve muitas restrialterados até o interior ções que podem revelar-se ainda mais pade seus últimos ossos, ralisantes, pois não assume a forma conquebrados para sempre creta de portões e arame farpado. Foi nae incapazes de voltar para quem, o que e quele mundo miserável, por meio de solidariedade e do improvável sonho de sobrevivência, que os humanos resistiram à onde estavam antes de pressão de serem reduzidos ao mais baixo Auschwitz. nível – o nível dos animais. Dos três livros que compõem Auschwitz e Depois o terceiro volume, chamado A Medida de Nossos Dias, é o mais difícil de ler. Aqui ela escreve textos curtos para os que se tornaram a sua “nova família” depois de Auschwitz. Cada texto faz referência a uma das mulheres que resistiram ao inferno com ela, muitas vezes questionando a vida e a morte. Ela mesma morreu como muitos outros de seus amigos em Auschwitz. Embora eles possam ter acabado nas chaminés, ela, como uma sobrevivente, morreu ali no acampamento, junto com seus companheiros. “Olhando para mim, alguém poderia pensar que eu estou viva... Eu não estou viva, eu morri em Auschwitz, mas ninguém sabe.” Depois de Auschwitz, Delbo falou que tem dois eus. Seu eu durante Auschwitz e seu eu pós-Auschwitz, fazendo uma analogia de uma cobra trocando de pele para invocar o sentido de sua nova natureza em desenvolvimento após os 27 meses passados no campo. Infelizmente, ao contrário da pele da cobra que se desintegra, o que Delbo chamou a pele de Auschwitz resistiu. “Auschwitz é tão profundamente gravado na minha memória que eu não posso esquecer em nenhum momento. [...] Eu moro ao lado do

campo.” “Ao contrário da pele da cobra, a pele da memória não se renova. Pensar nisso me faz tremer de apreensão.”

Por fim, a representação literária de Charlotte Delbo que expressa sua experiência no inferno conhecido como Auschwitz-Birkenau destaca o heroísmo das mulheres. O sentimento de comunidade as fez sobreviver aos horrores de Auschwitz. Ela documenta as atrocidades em um livro minimalista de 354 páginas envolvendo prosa e poesia. Suas maravilhosas memórias ameaçam a opinião inicial de Adorno, no qual seria bárbaro escrever poesia depois de Auschwitz. Claro que logo em seguida ele retirou sua declaração devido aos inúmeros trabalhos artísticos que são chamados hoje de literatura do Holocausto. Mais uma vez devo citar o meu filósofo favorito, ao concordar que: “O Homem é o animal mais cruel”. É a justaposição de saber o certo e o errado e intencionalmente decidir fazer o errado que faz do homem o pior e o

Infelizmente, ao mais cruel animal. Mas, por outro lado, contrário da pele da cobra que se desintegra, foi principalmente devido aos outros que muitos prisioneiros foram capazes de “sobreviver” a Auschwitz. o que Delbo chamou De fato, Delbo concordaria plenaa pele de Auschwitz mente com esta frase. Como não concorresistiu. “Auschwitz daria? é tão profundamente Bibliografiagravado na minha Collins, W, Margaret. Sisters in the Resistance: How Women memória que eu não Fought to Free France. New York: J. Wiley, 1995. Delbo, Charlotte. Auschwitz and After. New Haven: Yale UP, posso esquecer em 1995. Delbo, Charlotte. Convoy to Auschwitz: Women of the French nenhum momento. [...] Resistance. Boston: Northeastern UP, 1997.

Eu moro ao lado do Moorehead, Caroline. A Train in Winter: An Extraordinary Story of Women, Friendship and Resistance in Occupied campo.” “Ao contrário da France. New York: Harper Collins, 2011. Kedward, Roderick. Occupied France: Collaboration and Repele da cobra, a pele da sistance. Oxford: Basil Blackwell, 1986. memória não se renova.

Pensar nisso me faz Nathalia Constantino Borges Sacks é estutremer de apreensão.” dante de Relações Internacionais e Ciências Políticas na Faculdade de Canisius, Buffalo, Nova Iorque. A mesma também foca em história europeia, o período do Holocausto em particular.

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