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Rabino David Ellenson
os desafios do rabinato entre comunidade e espiritualidade
rabino david ellenson
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As origens do rabinato enquanto profissão estão envoltas nas brumas da antiguidade. Enquanto a tradição judaica identifica Moisés como “Moshé Rabeinu” / “Moisés, nosso Rabino”, a própria Bíblia nunca o identifica como tal e nem ao menos a palavra rabino aparece nas escrituras judaicas. O termo só surge séculos após a Bíblia ter sido escrita, no início da Era Comum.
Do ponto de vista da crítica histórica, a identificação de Moisés como “Rabeinu” representa uma tentativa dos primeiros rabinos – cujo mandato, conforme relatado no Pirkei Avot 1:1, é estabelecido por uma árvore genealógica que se eleva até ao próprio Moisés – de embasar suas origens e sua autoridade nas esferas mais antigas da literatura judaica, a Bíblia. Ao conceber aquela árvore genealógica, os rabinos de tradição clássica orgulhosamente proclamaram Moisés como um dos seus e despudoradamente o coroaram com o título de “Rabino”.
Apesar da falta de historicidade que marca esta clássica alegação rabínica, as funções que os rabinos acabariam por preencher como juízes da lei judaica e como intérpretes das sagradas escrituras estão solidamente amparadas pela Bíblia. Por exemplo, em Devarim / Deuteronômio 17:8, lê-se: “E levantar-te-ás e subirás ao lugar que escolher o Eterno... e virás aos sacerdotes e ao juiz que estiverem encarregados naqueles dias e indagarás... e te anunciarão a sentença ao juízo”. Já em Neemias 8 encontra-se: “E no primeiro dia do sétimo mês, Ezra o sacerdote trouxe a Torá perante a congregação composta por homens e mulheres, todos capacitados a compreender o que lhes foi apresentado. E a leu aos ouvidos de todo o povo e estavam atentos à Torá”. Por volta de 70 e.c, o culto religioso judaico não estava mais preso a um único lugar, por mais sagrado que este fosse. A Torá passava a ser o centro do judaísmo, e os rabinos, seus intérpretes. Assim, o judaísmo passou a ser uma religião totalmente “portátil”.

Apesar de tudo isto o rabinato como profissão só veio a ser estabelecido no primeiro século da Era Comum. Pouco depois que os romanos destruíram o Segundo Templo, por volta de 70 E.C., e o consequente fim dos sacrifícios como modo maior de culto e religiosidade no Templo, Iochanan Ben Zakai fundou sua famosa academia rabínica em Iavne. Segundo a lenda judaica, Raban Iochanan Ben Zakai teria dito às autoridades romanas: “Concedam-me Iavne e os sábios”, e assim teria nascido o judaísmo rabínico e o rabinato como profissão.
O culto religioso judaico não estava mais preso a um único lugar, por mais sagrado que este fosse. A Torá – os textos sagrados – passava a ser o centro do judaísmo, e os rabinos, seus intérpretes. Assim, o judaísmo passou a ser uma religião totalmente “portátil” e o rabino passou a ser a figura incumbida da responsabilidade e credenciada com a autoridade para ensinar e interpretar a sabedoria inerente a estes textos ao povo.
O rabinato enquanto profissão e as funções atribuídas ao rabino evoluíram com o passar dos séculos, mas a tarefa básica do rabino, que é a de interpretar os textos judaicos e ensiná-los ao povo judeu, mantém-se constante desde sempre. E é na tradição sefaradi que vamos encontrar o sentido mais abrangente do que é o rabinato enquanto profissão.
Na tradição religiosa sefaradi, o rabino recebe costumeiramente três títulos, cada um dos quais reflete um aspecto diferente da sua função. Um rabino é inicialmente definido como um professor de textos judaicos, um “Marbitz Torá”, aquele que difunde o conhecimento da Torá. O rabino deve possuir um profundo conhecimento da Torá, pois este conhecimento será a fonte de sua autoridade e liderança. A Torá estabelece os alicerces que permitirão ao rabino compartilhar os valores e os pontos de vista da tradição judaica com o povo judeu e outros. Não é possível exercer uma autêntica liderança judaica sem este conhecimento. O rabino precisa compreender que o judaísmo é um “diálogo” que se estende por gerações. Ou, citando um artigo do falecido rabino David Hartman intitulado “O Judaísmo Enquanto Tradição Interpretativa”: o rabino deve encarar e apresentar o judaísmo como uma tradi-
O rabinato enquanto ção dinâmica e interpretativa, e rabinos só profissão e as funções atribuídas ao rabino podem fazer isto se tiverem conhecimento profundo da Torá. Portanto, este conhecimento permanece sine qua non para evoluíram com o o rabinato. passar dos séculos, No entanto, na qualidade de “Marbitz mas a tarefa básica Torá” – aquele encarregado de disseminar do rabino, que é a de a Torá e suas mensagens para as gerações de judeus que o cercam e as que virão – o interpretar os textos rabino também precisa saber ouvir os oujudaicos e ensiná- tros, especialmente aqueles a quem serve -los ao povo judeu, e orienta. É nessa linha que a tradição semantem-se constante faradi também identifica o rabino como desde sempre. um “chaver há ir”, um membro da comunidade. Todos os grandes líderes judaicos – de Moshé Rabeinu ao rabino Leo Baeck, o último líder do povo judeu na Alemanha, devidamente eleito durante os dias trágicos do Holocausto – tiveram como marca um amor imortal pelo povo de Israel. É necessário que um rabino esteja envolvido naturalmente como elemento participativo, ativo e de apoio nos assuntos públicos e privados da vida judaica. Os rabinos não podem manter-se distantes daqueles a quem irão servir e orientar e precisam abraçar e acarinhar suas comunidades e a todos os que delas fazem parte. Finalmente, o rabino é definido como “chacham” / “sábio”, talvez a função mais difícil de ser desempenhada. É necessário que o “chacham” vá além do conhecimento que adquiriu para se desincumbir como “Marbitz Torá”. Na verdade o “chacham” deve ter a habilidade de se tornar uma pessoa sábia, capaz de aplicar e modificar o conhecimento adquirido através de seu estudo dos textos da Torá com empatia e preocupação para com seus semelhantes judeus e suas vidas. Em resumo, o “chacham” deve ser aquele que sabe ouvir as alegrias e tristezas do próximo, o que exige que o “chacham” seja suficientemente forte para reconhecer que ele próprio é vulnerável, e por isso mesmo precisa abrir-se e buscar o apoio de outros. Assim, não se pode estranhar que o Talmud defina o “chacham” como “aquele que aprende com todas as pessoas”. É claro que atualmente os rabinos funcionam em um mundo radicalmente diferente daquele de seus predecessores medievais e até mesmo do início da era moderna, e é preciso levar este fato em conta quando se trata de instruir
rabinos para o século XXI. Estas diferenças foram evidenciadas pelo sociólogo Peter Berger ao identificar as premissas básicas presentes no pensamento do mundo ocidental. Em sua obra The Heretical Imperative” (1975), Berger demonstra que a mais pura essência da cultura moderna ocidental é o fato de que a “haeresis” (opção ou escolha) se tornou inevitável.
A modernidade se caracteriza pelo fato de que opções ou escolhas impensáveis no passado passaram a ser aceitáveis de maneiras inimagináveis há apenas uma geração. As escolhas crescem em um ritmo vertiginoso. As pessoas se mudam de suas cidades natais, mulheres passam a fazer parte do clero, gays e lésbicas “saem do armário”. Podemos multiplicar estes exemplos mil vezes e, segundo Berger, é esta a marca do mundo moderno. A modernidade é marcada pelo movimento “do destino à escolha”, conforme suas felizes palavras.
Por um lado, a modernidade, tal como a descreve Berger, é libertadora. Liberta as pessoas das algemas de uma cultura desacreditada e de uma tradição que definia papéis e expectativas de maneira estreita e limitadora. Por outro lado, também deixa as pessoas desnorteadas, ou, como afirma Berger em outra de suas obras, “sem teto”. Em The Homeless Mind (1973), Berger e os coautores – sua esposa Brigette e Hansfried Kellner – argumentam que a moderna condição de escolha, o deslocamento que marca aqueles que partem em busca de oportunidades de carreira e de melhoria socioeconômica, também deixou muitas destas pessoas sem um sentido seguro de raízes e estabilidade. Enquanto muitos foram emancipados ou expulsos dos limites de culturas tradicionais, outros experimentaram a sensação de anomia e alienação própria do “estado de sem teto”. As mentes e os corações destes ficaram cheios de restrições e incertezas.
O paradoxo do mundo moderno é que ele tanto destrói como gera comunidade e tradição. Ele rompe os elos e as estruturas que ligavam as pessoas às práticas e às percepções do passado, ao mesmo tempo em que permite que as pessoas as experimentem e voltem a uma tradição que nunca conheceram para descobrir a segurança e o conforto que esta tradição promete oferecer. É necessário que No caso dos judeus, a análise de Berum rabino esteja envolvido naturalmente ger ajuda a explicar porque entramos numa situação pós-moderna na qual correntes antípodas – onde proporções recomo elemento corde de não afiliação e de abandono da participativo, ativo e identidade e religião judaicas no ocidende apoio nos assuntos te e o secularismo em Israel competem públicos e privados com intensos bolsões de compromisso e conhecimento judaicos – marcam a situda vida judaica. Os ação contemporânea judaica. rabinos não podem O pluralismo da situação moderna e manter-se distantes a espantosa variedade de escolhas que a daqueles a quem irão modernidade nos oferece levam muitos servir e orientar e de nós a abandonar o judaísmo. Simultaneamente, faz com que muitos outros, precisam abraçar suas por viverem dentro de uma estrutura plucomunidades. ralista, procurem o judaísmo em sua busca por um sentido de sabedoria, segurança e identidade que a religião e tradição judaicas podem estender aos seus afiliados comprometidos. Há meros 40 anos a função do judaísmo não era esta, assim que precisamos levar em conta esta novíssima situação na história judaica ao treinarmos nossos rabinos. O grande filósofo do direito Ronald Dworkin, em seu trabalho magistral Law’s Empire, alegou que a melhor maneira de conceber a “Lei” é como “uma novela em capítulos”, em que cada geração de juristas escreve “um novo capítulo”. Cada geração se esforça para ser fiel ao passado, isto é, ao “enredo herdado”, para se manter em “sintonia” com o passado. Contudo, cada nova geração tem, inevitavelmente, o seu próprio contexto e se depara regularmente com situações novas, o que faz com que necessite conceitualizar e reconfigurar as preocupações passadas segundo sua própria maneira, possibilitando-a guiar a comunidade no presente e apontar um caminho para o futuro. Considero a metáfora da “novela em capítulos” apresentada por Dworkin bastante útil para a comunidade judaica contemporânea na luta para superar os desafios que a nossa época nos apresenta. A nossa comunidade é, em sua maior parte, formada por pessoas que escolhem livremente participar dela – até mesmo em Israel isto é assim. A participação dos judeus na vida do nosso povo e na nossa religião não pode ser nem coagida nem assumida – ela é totalmente voluntária.

Sim, as pessoas demonstram as mesmas necessidades de sempre por espiritualidade e comunidade. Muitos judeus, como não judeus, ainda almejam por identificação com algo maior do que eles próprios. Nesta situação humana e cultural, muitos se voltarão para o judaísmo e buscarão a inspiração e os caminhos que os rabinos podem indicar levando-os a vidas de significado pessoal e comunitário. Estes judeus ainda precisarão de “klei kodesh” – recipientes sagrados – que possam servir como seus rabinos. Eles se voltarão para esses rabinos em busca da sabedoria e do conhecimento, assim como buscarão neles o cuidado e a direção que o rabino pode oferecer ao nosso povo na mesma intensidade que seus ancestrais fizeram.
Enquanto os rabinos de hoje e de amanhã lidam e lidarão com uma comunidade que vivencia um mundo
O paradoxo do mundo certamente diferente do mundo de onmoderno é que ele tem, é igualmente certo que a coisa ju daica vai permanecer divina e nela o ra tanto destrói como gera bino continuará a liderar o nosso povo comunidade e tradição. em direção ao sacro e à comunidade saEle rompe os elos e as grada. Rabinos construirão com base no estruturas que ligavam passado e mapearão novas direções e dias pessoas às práticas ferentes formas de organização para o nosso povo no futuro.e às percepções do passado, ao mesmo O rabino David Ellenson é reitor do Jewish Instempo em que permite titute of Religion do Hebrew Union College, acaque as pessoas as demia dedicada à formação de rabinos do Moviexperimentem e voltem mento Reformista. a uma tradição que Traduzido por Teresa Cetin Roth. nunca conheceram. Nota do Tradutor: Citações da Bíblia segundo o texto de Bíblia Hebraica, de David Gorodovits e Jairo Fridlin, editada em 2006 pela Editora Sefer.
