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Rabino Sérgio Margulies

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Rafael Stern

Rafael Stern

a mesa, o cálice

A importância de um sistema organizado para que a vida possa se manifestar é descrita no primeiro ato divino, conforme relato da Torá: a criação do mundo. Esta criação é a celebração do Seder/ordem de Deus e transformou a condição da terra de “tohuvavohu”, “vã e vazia”, para organizada e estruturada.

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rabino sérgio margulies

Na celebração em torno da mesa da festa de Pessach o rabino Akiba Eiger (Alemanha, século 15) liderava o Seder. Um dos convidados deixou cair vinho na mesa. O rabino imediatamente disse: a mesa deve estar bamba, fora de equilíbrio.

Acomemoração de Pessach, que recorda o rompimento da escravidão e o vislumbrar da liberdade, é denominada Seder. A palavra hebraica ‘Seder’ significa ordem. Sem ordem a liberdade perde seu propósito e nos remete para o caos. Para que, de modo livre, possamos viabilizar os sentidos mais profundos da existência é necessária uma estrutura organizada.

Seguir no deserto como na travessia da escravidão à liberdade – ou seguir na jornada da vida – sem que haja uma estrutura é tornar-se um andarilho perdido. Uma estrutura organizada provê referências e evita os passos a esmo de um peregrino desorientado lhe mobilizando com o senso de propósito.

Tal como o povo judeu em sua jornada pelo deserto, cada nação e indivíduo pode ser remetido a um estado em que o potencial da vida é anulado se faltar uma referência. Nestes casos somos arremessados à paralisia – nada a buscar – ou impulsionados a uma correria desenfreada – sem saber o que buscar. Desprovidos de referência transitamos entre os extremos da depressão e da euforia, mas nenhuma vida plena e significativa é realizada.

A importância de um sistema organizado para que a vida possa se manifestar é descrita no primeiro ato divino, conforme relato da Torá: a criação do mundo. Esta criação é a celebração do Seder/ordem de Deus e transformou a condição da terra de “tohuvavohu”, “vã e vazia” [Bereshit/Gênesis 1:2], para organizada e estruturada.

Olivro de reza judaico é denominado ‘sidur’, termo oriundo da palavra ‘Seder’. A oração nos conscientiza sobre a importância de um mundo organizado e nos convida para atuar em parceria com Deus na renovação dos baluartes desta ordem. Uma das orações diárias afirma: ‘Renove sempre os Teus feitos da criação’. O pedido é de que os elementos de clareza que a ordem da criação proveu sejam parte permanente de nossas vidas.

A ansiedade é aplacada e o medo atenuado através de uma estrutura organizada. A agonia da incerteza encontra respaldo na previsibilidade das categorias classificatórias desta estrutura. No entanto, o imprevisível acontece: o vinho é derramado. A vida se depara com obstáculos antes não imaginados. A ordem é ameaçada. A clareza torna-se névoa densa. A luz da criação que nos permite enxergar o caminho da vida se extingue, as referências que davam segurança se desmantelam. O vinho cai. A vida escapa e, como o copo, fica vazia. Torna-se “vazia e vã”, “tohuvavohu”. Caótica. Sem parâmetros.

Se com a ordem da criação estabelecida éramos parceiros de Deus, diante de seu desmantelamento nos sentimos como o personagem bíblico Iov [Jó], que em seu tormento indaga sobre o abandono de Deus. O poeta Haroldo de Campos (Brasil, 1929-2003) acrescenta: se na ordem da criação o ser humano controlava os animais, através de Iov [Jó] “é levado a perceber que é uma criatura – simples e frágil criatura – entre outros seres criados, e que seu ângulo de visão não dá conta das leis que engendram a espanto-

Inimigo é aquele cuja história não conhecemos. Conhecer requer diálogo do qual emerge aprendizado. Porém, para que conhecer o inimigo? Afinal, enquanto não conhecermos o inimigo e dele não aprendermos, a razão absoluta sempre estará conosco. A verdade terá dono. Não pertencerá à esfera do domínio compartilhado.

sa harmonia do cosmo e que governam o mundo...”. Percebemos que não temos o poder que julgávamos. A rédea da vida nem sempre está em nossas mãos.

O vinho caiu. A vida foi derramada. Quem é o responsável? Um culpado deve ser encontrado para que a estrutura seja retomada, a normalidade volte e a sensação de controle seja restaurada. Encontrando um culpado, o sistema fica restabelecido e a ansiedade coletiva apaziguada. O culpado é retirado do convívio, alijado e rejeitado. Fora da mesa do Seder, aquele a quem a culpa foi atribuída, torna-se o diferente não aceito. Tudo volta a ficar claro e definido. Tão somente é esquecido que “a diferença é uma condição, é um requisito para toda dignidade e liberdade”. (Albert Memmi, Túnisia-França, 1921-).

O vinho caiu. A estrutura foi ameaçada. Algo de errado aconteceu. Que seja apontado um culpado. Um inimigo que possa ser acusado. O inimigo é uma ameaça, mas frequentemente também é uma fonte de benefício: “Ter um inimigo é importante não somente para definir nossa identidade, mas também para... demonstrar nosso valor”. (Umberto Eco, Itália, 1932-).

Inimigo é aquele cuja história não conhecemos. Conhecer requer diálogo do qual emerge aprendizado. Porém, para que conhecer o inimigo? Afinal, enquanto não conhecermos o inimigo e dele não aprendermos, a razão absoluta sempre estará conosco. A verdade terá dono. Não pertencerá à esfera do domínio compartilhado.

Vozes não harmonizadas com a proclamada verdade absoluta devem ser caladas. Ou, ao menos, não escutadas. Escutá-las seria um ato de heresia. Os portadores da mensagem falsa são considerados hereges; os veiculadores da verdade absoluta, sacros. A verdade envolta de absolutismo e sacralidade permite definições claras e aceitação contundente. Com a referência reafirmada, a segurança é assegurada e o conforto da estabilidade, provido.

No Seder não comemos alimento fermentado do mesmo modo que somos instruídos a não fermentar a inimizade com o intuito de fortalecer as convicções. As convicções são testadas através de perguntas. Assim, a narrativa do Seder é interrompida pela recitação de perguntas. O que vale na recordação da travessia pelo deserto também se aplica na jornada da vida.

Deixar-nos permear pelas indagações não abala a fé. O rabino Irwin Kula (EUA, 1957-) sugere que a fé não se sustenta por verdades inquestionáveis e sim por dúvidas. As certezas, sobretudo em relação às questões mais profundas da existência humana, podem ser revistas num aprendizado em que a humildade é um valor espiritual.

No Seder há um condutor do ritual e muitos interlo-

cutores. Um relata a narrativa e vários são convidados a participar com perguntas e respostas. Semelhantes ou destoantes, estas respostas convivem umas com as outras. A ordem é fortalecida por este convívio plural e diverso, pois adquire várias estacas e não depende de somente uma.

Ovinho caiu. Não há culpado. A mesa estava bamba, explica o rabino. Assim, qualquer um que estava lá sentado em torno daquela mesa poderia ter derramado o vinho. Acontece. Nestas situações de acasos e incidentes a relevância de um adicional valor espiritual: solidariedade.

Na mesa do Seder um copo de vinho destinado a Eliahu há-navi [profeta Elias] que, segundo a literatura rabínica, anunciará a Era messiânica. Enquanto o anúncio não vem, o cálice torna-se símbolo de solidariedade. Quem derramou o vinho tem outro cálice à sua disposição, pois na mesa há um copo extra. Cada vez que compartilhamos algo num gesto de responsabilidade mútua estamos manifestando que parte desta Era acontece em nossa época.

Quando a ordem da vida for inesperadamente rompida e o desespero tomar conta, quando a dúvida surgir em função de situações que não conseguimos compreender, quando os passos cambalearem por adversidades inimagináveis, quando as convicções forem abaladas e quando a vida desabar, que um novo cálice de esperança e apoio seja compartilhado. Para tanto, é necessário considerar que a mesa pode estar bamba e prontificar-se a fazer este anúncio nem que seja como mera hipótese em função das circunstâncias. Uma reflexão talmúdica: E se a mesa não estiver bamba? Afinal, seria perigoso dizer que estava bamba se de fato não estivesse, pois isto poderia manchar a reputação do carpinteiro que fez a mesa. Assim, talvez fosse o piso que não estivesse alinhado. Mas se estivesse alinhado estaríamos maculando a imagem dos construtores daquele recinto e se, por outro lado, estivesse desalinhado não deveríamos evitar a condenação pública? Talvez tudo se deva ao fato da terra ter sofrido um pequeno abalo sísmico. Se assim foi, como somente afetou uma pessoa? E não deveria ter sido feita uma análise geológica? Talvez não houvesse nenhuma falha geológica. Então olhamos para Deus, Criador da Terra, e se crermos que Ele é a fonte do desvio imprevisível da camada terrestre que igualmente olhemos o copo de Seu mensageiro.

Para certas situações e certas perguntas a resposta vem sob a forma de responsabilidade compartilhada. Associar a palavra responsabilidade com o verbo responder é mais do que um exercício linguístico. É um intenso esforço espiritual que renova a esperança num novo Bereshit/começo para vidas cujo Seder/ordem se fragmentou.

Deixar-nos permear pelas indagações não abala a fé. O rabino Irwin Kula sugere que a fé não se sustenta por verdades inquestionáveis e sim por dúvidas. As certezas, sobretudo em relação às questões mais profundas da existência humana, podem ser revistas num aprendizado em que a humildade é um valor espiritual. Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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