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Rabino Rifat Sonsino

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Vittorio Corinaldi

Vittorio Corinaldi

relações interreliGiosas e os conflitos entre liberais e ortodoxos

O desejo que os liberais têm de recorrer à mente humana para resolver problemas é frontalmente oposto ao ponto de vista daqueles para quem só se chega à verdade estudando os textos sagrados revelados por Deus, porque a verdade está impregnada neles e a autoridade daquele que interpreta é suprema e inatacável.

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Fundamentalistas e Liberais

rabino rifat sonsino

Penso que o grande conflito da nossa época não é entre as grandes religiões do mundo, mas, sim, entre os fundamentalistas e liberais de cada lado. E chegamos a um ponto em que não vislumbro como amenizar esta situação.

A mídia constantemente reporta tensões entre cristãos, judeus e muçulmanos. É inegável a existência de enormes diferenças teológicas e de observância entre estas três religiões mosaicas. Se assim não fosse, não haveria motivo para tão diferentes pontos de vista religiosos.

Nos tempos medievais, embora todos admitissem que o Islã tivesse sua base no Cristianismo e no Judaísmo, e que os contatos entre as três tomavam a forma de disputas onde cada uma tentava provar que apenas ela representava a “verdadeira” religião, o Islã sempre alegou que o fato de ser a mais nova fazia dela a mais verdadeira das três.

Não se pode deixar de mencionar o infame debate ocorrido em Barcelona em 1263 entre o judeu renegado Pablo Christiani e Nahmanides, além da Disputa de Tortosa em 1413, entre o ex-judeu Joshua Lorki (que se denominava Gerônimo de Santa Fé), Vidal Benveniste e mais 19 judeus, disputa esta que durou um ano. Depois do debate de Tortosa, e apesar de os judeus terem se defendido razoavelmente bem e das garantias dadas pelo Rei Jaime I que não haveria consequências nefastas aos judeus, o Talmud foi condenado, foi proibido que os judeus o estudassem e Nahmanides teve que fugir do país.

Hoje em dia as tentativas de diálogo honesto e respeitoso entre judeus e cristãos são mais produtivas, mas todas as religiões padecem com a intransigência de seus respectivos tradicionalistas extremistas, presos em suas amarras e impossibilitados de aprender uns com os outros.

Quem é e quem não é liberal?

Tarefa difícil definir um “liberal”! Contudo, acho que a definição de Arthur Schlesinger num artigo publicado no The New York Times em 1956 ainda faz sentido. Ele escreveu: “O liberal acredita que a sociedade pode e deveria ser melhorada e que a maneira de melhorá-la é aplicar a inteligência humana aos problemas sociais e econômicos”. Eu acrescentaria que podemos qualificar como fundamentalistas aquelas pessoas que acreditam estarem os seus textos sagrados sempre certos sobre todos os temas, inclusive história, cosmologia, normas éticas e práticas religiosas.

O desejo que os liberais têm de recorrer à mente humana para resolver problemas é frontalmente oposto ao ponto de vista daqueles para quem só se chega à verdade estudando os textos sagrados revelados por Deus, porque a verdade está impregnada neles e a autoridade daquele que interpreta é suprema e inatacável. Considero este enfoque perigoso, porque nem todos os textos sagrados escritos há séculos podem satisfazer as nossas necessidades e há um grande risco de enxergarmos nos textos os resultados que desejamos impor aos outros.

Ao contrário, o liberal é alguém que aceita a diversidade de opiniões e deseja modificar seu comportamento com base em um discurso razoável. A leitura dos textos sagrados como justificativa da posição de uma pessoa é um erro. Um erro que me faz lembrar a maneira como líderes religiosos e outros sabichões políticos do passado usaram e fizeram mau uso dos mesmos textos bíblicos para justificar ou condenar a escravidão nos Estados Unidos durante os grandes debates entre o Norte e o Sul em meados do século XIX. O fato é que cada exegese acaba sendo uma eusegese, ou seja, uma leitura dos textos já com uma interpretação pessoal.

Histórias pessoais

Passei minha infância na Turquia numa comunidade ortodoxa cujos líderes religiosos não eram muito abertos e não aceitavam a diversidade de opiniões que tornam possível o diálogo. Também tive experiências desagradáveis que acabaram me levando a abraçar as causas liberais dentro do Judaísmo. Dois exemplos: em 1988 levei um grupo de importantes rabinos progressistas norte-americanos para uma exploração judaica da Turquia. Um dia, tivemos um encontro com David Aseo, o rabino-chefe, que havia sido meu professor de hebraico em criança. Depois de nos dar as boas-vindas, ele começou a me criticar por ter abandonado o judaísmo ortodoxo e disse, na frente dos meus colegas, “só há um caminho no judaísmo, e é a maneira ortodoxa”. Ficamos todos horrorizados com este enfoque e nos despedimos, desapontados.

Outro exemplo: há alguns anos cheguei a Tel Aviv e embarquei em um sherut (um táxi compartilhado) para ir a Jerusalém. Ao meu lado estava um judeu ortodoxo que me perguntou qual era a minha profissão. Automaticamente, sem pensar, eu disse que era rabino reformista. Grave erro! Eu deveria ter dito que era vendedor de sapatos ou de seguros e a conversa teria acabado ali, mas não foi isso o que aconteceu. Pelos 45 minutos seguintes, que foi o tempo que levamos para chegar à capital de Israel, meu interlocutor me humilhou pelo suposto erro cometido.

Estes confrontos nunca são agradáveis e não levam a coisa alguma. Atualmente a maioria dos judeus ortodoxos extremistas é incapaz de aceitar o fato de que a sua posição é rígida. Sua crença vem da posição estritamente haláchica dos rabinos do final da Idade Média, segundo a qual só existe uma maneira, que é a maneira correta, de seguir as normas religiosas. Seu modelo é o rabino Moses Schreiber (1762-1839), um rabino ortodoxo alemão também conhecido como Chatam Sofer, que mais tarde viveu na Hungria, e cuja teoria era que “chadas hassur min há-Torá” (tudo o que é novo é proibido pela Tora), uma maneira engenhosa de interpretar um versículo da Mishnah Or-

O debate entre fundamentalistas e liberais no seio do judaísmo é muito perturbador. Em outubro de 2012, Anat Hoffman, a diretora executiva do Israel Religious Action Center e presidente do Mulheres do Muro, foi presa por um curto período por ter conduzido um serviço religioso para mulheres no Muro Ocidental em Jerusalém.

lah 3:9, segundo o qual “toda nova safra é proibida pela Lei em toda parte”. Uma verdadeira eusegese.

O conflito hoje

Hoje, o debate entre fundamentalistas e liberais no seio do judaísmo é muito perturbador. Em outubro de 2012, Anat Hoffman, a diretora executiva do Israel Religious Action Center e presidente do Mulheres do Muro, foi presa por um curto período por ter conduzido um serviço religioso para mulheres no Muro Ocidental em Jerusalém.

Este confronto sórdido entre ortodoxos extremistas e as Mulheres do Muro continua a agitar a opinião pública tanto em Israel como no resto do mundo judaico. Rabinos não ortodoxos não são reconhecidos como legítimos e os eventos do ciclo da vida realizados por eles, tais como casamentos, não são reconhecidos como válidos. Não pensem que a discórdia é só entre os extremamente ortodoxos e os liberais em Israel: quero lembrar que em junho passado um rabino ashkenazi em Israel solicitou que seus filhos não fossem matriculados em escolas dirigidas por judeus sefaradim.

Os judeus não são os únicos que sofrem desta praga. Internamente, muçulmanos e cristãos também têm o mesmo problema. No dia 2 de julho de 2010, Mansour Farhang, professor de Ciências Políticas no Bennington College, publicou na revista New Yorker o seguinte lamento: “O debate mais vigoroso no mundo islâmico é entre os tradicionalistas que insistem em um significado literal e imutável do Corão e aqueles que desejam legitimar múltiplas e dinâmicas interpretações do texto e da tradição”. A Irmandade Muçulmana é um bom exemplo de fundamentalistas islâmicos do nosso tempo.

No entanto, apesar das grandes divisões entre sunitas e xiitas do Islã, de ambos os lados há muçulmanos liberais que acreditam na autonomia do indivíduo para interpretar o Corão e aceitam a completa igualdade entre os seres hu-

manos, estando abertos à cultura, a costumes e vestuários modernos. Eu mesmo conheci grupos destas pessoas em Istambul no verão passado.

Muitos cristãos têm o mesmo dilema. Entre os católicos, Francisco, o novo papa, que está tentando liberalizar a Igreja latina, vem sendo constantemente criticado pela ala direitista por seus novos esforços. No dia 15 de dezembro de 2013, o Boston Globe informou que “o papa irrita os tradicionalistas com seus limites na missa latina”, referindo-se às tentativas do papa de tomar medidas enérgicas contra uma ordem religiosa dissidente que celebra a antiga missa em latim.

O diálogo religioso atual

Durante o século XX era mais fácil identificar as diferentes denominações judaicas, tais como Ortodoxos, Conservadores, Reformistas, Reconstrucionistas, Renovação Judaica e outros com base em claras linhas de demarcação que separavam umas das outras. Hoje tais linhas estão bastante nebulosas. Atualmente, se nos basearmos na prática e na crença, é bastante difícil dizermos o que distingue um judeu reformista de um judeu conservador. O meu argumento é que a principal divisão está entre os judeus ortodoxos entrincheirados e os judeus liberais de todas as subdivisões. Os judeus liberais tendem a considerar o judaísmo como dinâmico, evolutivo e em constante processo de mutação. Aceitam gays e lésbicas, afirmam a igualdade dos sexos, vivem segundo o resultado da crítica das escrituras e estão dispostos a aprender uns com os outros.

Faço questão de reforçar que o problema não está entre todos os judeus ortodoxos e os judeus liberais. Estudei com muitos professores ortodoxos esclarecidos que são muito observantes em sua prática, mas são abertos ao estudo crítico das Escrituras sagradas. Por outro lado, nos deparamos com liberais rígidos que afirmam ser seu caminho o único verdadeiro. Um diálogo honesto e aberto entre as partes começa quando cada lado admite não ser dono da verdade e se mostra disposto a aprender com o outro. Quando alguém alega deter a verdade acaba a conversa, não há para onde ir, a solução é separar-se. Muitos judeus e cristãos iniciaram um diálogo produtivo através de importantes declarações como a “Nostra Eaetate” (1965 católica)1 e “Dabru Emet” (2000 judaica)2. Nossa tarefa hoje é imbuir todos os lados de respeito mútuo para que se abram de maneira a aprender uns com os outros.

Apesar das grandes divisões entre sunitas e xiitas do Islã, de ambos os lados há muçulmanos liberais que acreditam na autonomia do indivíduo para interpretar o Corão e aceitam a completa igualdade entre os seres humanos, estando abertos à cultura, a costumes e vestuários modernos.

Notas

1. A Declaracão Nostra Eaetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, foi aprovada no dia 28/10/1965 pelo papa Paulo VI. Através dela a Igreja assumiu oficialmente a abertura de caminhos proporcionada pela visão eclesial da maioria dos bispos participantes do concílio para o diálogo com as religiões não cristãs, denominado dialogo inter-religioso. 2. “Dabru Emet” – “Falai a verdade”, da frase bíblica do profeta Zacarias, 8,16. Declaração assinada em 2000 por rabinos norte-americanos também a respeito da abertura quanto as relações inter-religiosas. O Rabino Rifat Sonsino, PhD, é rabino emérito do Templo Beth Shalom em Needham, MA, EUA, e professor do Departamento de Teologia do Boston College. Traduzido por Teresa Cetin Roth.

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