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Paulo Geiger

como escravos liBertos no deserto Paulo geiger

Causou certa agitação (e apreensão) nos meios judaicos a matéria do New York Times sobre as tendências atuais dos judeus norte-americanos, os tais vanishingjews descritos por Alan Dershowitz. Os dois sintomas mais ‘preocupantes’, segundo o tom geral das reações, seriam o crescente abandono da religião judaica como parâmetro do judaísmo e a proporção crescente dos casamentos mistos, com a possível implicação, em ambos os casos, de uma crescente perda total da identidade judaica dos judeus incluídos nesses processos, em parte já na geração atual.

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Não me lembro dos dados numéricos exatos, e não me darei o trabalho de ir consultá-los, pois o que interessa aqui, nestas cócegas no raciocínio, não é a estatística, mas o conceito. Não que números não sejam importantes, já que com zero judeus o judaísmo acaba desaparecendo também; mas ainda não chegamos lá, e a questão aqui é discernir se existe mesmo um processo (do qual os judeus americanos seriam um paradigma) que inevitavelmente nos fará chegar lá, e isso por sua vez resulta na necessidade de compreender o processo e o que ele implica no total, e não os resultados estatísticos de algumas das implicações do processo.

A respeito dessa ‘ameaça’ do fim do judaísmo via assimilação gradual dos judeus (e da crescente ‘israelização’ de Israel como Estado de seus cidadãos mais do que como Estado judaico), lembrei-me de uma cena que já comentei aqui (ou alhures), quando, numa atividade cultural comunitária com base no debate do filme Zelig, de Woody Allen (uma parábola sobre um camaleão humano que é uma metáfora do judaísmo e dos judeus), alguém, referindo-se ao processo acelerado de assimilação nos EUA e no mundo exclamou: “Mas então o judaísmo vai acabar desaparecendo”, ao que respondeu um dos debatedores: “E daí?”. Na qualidade de guardiães da sobrevivência do judaísmo, responsáveis por sua continuidade (como achamos todos que somos), a plateia ficou chocada. Sem razão. Porque se não houver quem queira ser judeu, para quê serviria o judaísmo?

Ssuaphoto / iStockphoto.com

(Continua)

(Continuação)

O povo judeu é o povo dos que decidem ser judeus, ou pelo menos decidem não se afastar do judaísmo. Desde o naassévenishmá no deserto, que marcou, na ‘multidão misturada’ de ex-escravos, quem iria aceitar a Aliança e atravessar um deserto para a Terra Prometida, o judaísmo é uma opção exercida. O nascer filho de mãe judia é um facilitador, mas não um substituto da opção. Nascer de mãe judia mas não optar pelo judaísmo é fator de alienação do judaísmo e do povo judeu. Não nascer de mãe judia mas optar pelo judaísmo (até mesmo segundo a halachá, contanto que por meio dos rabinos ‘certos’ e põe aspas nisso...) é um fator de integração no judaísmo e no povo judeu.

A opção de reiterar um naassévenishmá contemporâneo e reafirmar o judaísmo o manterá vivo, e ao povo judeu. Isso não passa pela consciência do dever de ‘salvar’ o judaísmo, seja nas estatísticas seja na resposta ao quesito ‘religião’ nos parâmetros da identidade judaica. [Para quem não leu, a pesquisa do NYT ressalta uma proporção crescente de judeus que afirmam não considerar que a religião judaica é elemento definidor de seu judaísmo, ou seja, eles não se consideram seguidores de uma religião judaica.] Sem dúvida a religião é um dos constituintes básicos do judaísmo, parte do DNA do povo judeu, mas nem a história, nem o caráter, nem a identidade do povo judeu e do judaísmo se esgotam nela, o que vale dizer que a religião por si só (a crença, os ritos, as orações, as mitsvot) não configura o judaísmo em sua totalidade. Mas a totalidade do judaísmo inclui a religião como constituinte original. Ou seja, a identidade judaica tem em sua formação os valores, a memória e a visão ética da religião judaica, mesmo que não o declaremos ou percebamos. Mesmo que não vamos à sinagoga, não jejuemos em Iom Kipur, mesmo que declaremos, inutilmente, que somos ‘ateus’. Os judeus que se reconhecem como tal, mas que não se consideram judeus por religião, ao serem judeus têm a religião judaica embutida em suas identidades, porque está embutida em sua história, em sua cultura e em suas vivências e comportamentos.

O mesmo acontece com Israel, em sua identidade de nação moderna, democrática, estado de seus cidadãos, sejam quem forem. No DNA de Israel está o judaísmo, Israel é parte da história do povo judeu e do judaísmo. A Terra Prometida nasceu nos textos religiosos judaicos, que se confundem com os textos históricos judaicos. Isso não contradiz sua tendência a ser o Estado moderno e democrático de todos os seus cidadãos. Mesmo que haja um dia a separação de religião e Estado, continuará a ser o Estado do povo judeu, um Estado judaico, onde as festas históricas judaicas são feriado nacional, onde se fala o hebraico e, sim, se estuda a Torá, porque a Torá também é a história do povo judeu e da Terra Prometida.

Por tudo isso, pode-se resumir que enquanto houver judeus que queiram (ou concordem em) ser judeus, existirá povo judeu. Portanto, não cabe aos judeus ‘salvar’ o judaísmo e se preocupar com as estatísticas, mas sim ‘salvar’ seu próprio judaísmo e sua pertinência ao povo judeu. O judaísmo existe para nós, e não somos nós que existimos para ele. É a consequência de nossa opção, e não de nosso esforço por mantê-lo. E se somos judeus, se somos parte do povo judeu, sejamos indivíduos, comunidades ou o Estado judeu, não importa o que declaremos, nem com quem casemos, a religião judaica estará embutida em nossa história e em nossa identidade. (Que não se entenda que estou compactuando com esses fatos que a pesquisa do NYT identifica, ou minimizando sua importância negativa, estou apenas tentando mudar o foco de uma reação de preocupação com as consequências, para focar nas causas. Evidentemente, é um alerta já sobejamente ouvido e conhecido, que exige adotar uma visão proativa e contemporânea para a afirmação da opção dos judeus pelo judaísmo.)

Somos um povo de sobreviventes, sobreviventes de guerras, perseguições, massacres e holocaustos. Sobreviventes das perdas internas por assimilação, abandono, esquecimento, indiferença. A opção de pertencer ao povo e à história de onde viemos é o que nos faz sobreviver como povo, como história e como religião.

Nossa herança não é uma carga. Não vivemos mais em guetos, não existem mais muros a nos ‘proteger’. Somos como escravos libertos no deserto, o próprio destino à frente e aguardando nossa decisão, para nosso bem. Por herança, temos direito a ser parte desse povo de tão maravilhosa história, para dizer o mínimo. Por que abrir mão disso? Naassé ve nishmá.

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