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Susane Worcman e Paula Ribeiro
teatro ídiche: transmissor de cultura e da vida judaica
susane Worcman e Paula ribeiro
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“A fronteira entre a comédia e a tragédia é uma linha fina e trêmula e, para judeus, frequentemente inexistente.” (autor desconhecido)
Nascida como um dialeto de comunicação e usada durante séculos principalmente em comunidades judaicas da Polônia, Lituânia, Ucrânia e Romênia, o ídiche, uma mistura de alemão arcaico, hebraico, aramaico, francês e italiano antigos e línguas eslavas, escrita em caracteres hebraicos da direita para a esquerda, se tornou o idioma transmissor da cultura e da vida dos judeus da Europa Oriental a partir de uma rica produção literária que lhe concedeu um novo status.
A partir do início do século XIX a língua do cotidiano, das relações pessoais e do comércio é usada por escritores como Mendele M. Sforim (Ucrânia, 1836-1917), I.L.Peretz (Polônia, v1852-1915) Scholem Aleichem (Rússia, 1859-1916) e ainda Chaim Nachman Bialik, Jacob Gordin, Scholem Asch, I.I. Singer para a literatura, a poesia e o teatro. Em 1978, Isaac Bashevis Singer recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por sua obra escrita em ídiche nos Estados Unidos, selando o reconhecimento dessa língua como expressão cultural de um povo após sua quase total destruição. A representação teatral, por sua vez, é uma tradição antiga na cultura judaica. A história de Esther, a bela moça judia que se casa com o rei da Pérsia e consegue salvar o seu povo da morte planejada pelo primeiro ministro Haman – representação do mal – é apresentada desde a Idade Média nos festejos de Purim, uma festa semirreligiosa, comemorada A presença de grupos profissionais de teatro ídiche, vindos de Nova York ou de Buenos Aires, era constante no Rio de Janeiro e em São Paulo nas décadas de 1940 e 1960. Grandes teatros que eram alugados nas segundas-feiras, quando não havia outras apresentações, e atraíam um público de até 800 pessoas.
< Maharan Fun Rotemburg (O Maharan de Rotemburgo), de H. Leivick Zygmunt e Rosa Turkow, encenada no Teatro Carlos Gomes, com direção musical de Leon Gomberg, Rio de Janeiro, 1948.
Dos Groisse Guevins (A Sorte Grande), de Scholem Aleichem, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa, com cenário do pintor Lasar Segall, Rio de Janeiro, 1945.
até hoje. Artistas errantes, os purimshpielers, encenavam o tema adaptando alguns personagens a figuras e situações do momento. Atores e músicos percorriam vilas e cidades habitadas pelos judeus com espetáculos compostos por cantos, danças, um pouco de humor, um pouco de drama.
No início do século XX, com a imigração dos judeus da Europa Central e Oriental para as Américas, grupos teatrais levam à cena peças de teatro em ídiche nos Estados Unidos e na Argentina. Na pesquisa que fizemos sobre o teatro ídiche no Brasil na Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CIEC – UFRJ), encontramos documentação sobre artistas do teatro ídiche que já se apresentavam no Brasil na década de 1920, em turnê pela América do Sul. Eram, em geral, atores ou duplas de artistas que encenavam trechos de peças ou operetas, muitas vezes acompanhados por um elenco local. A música era parte integrante de todas as apresentações.
O interesse por estudar o tema surgiu durante o trabalho desenvolvido no contexto do projeto “Heranças e Lembranças: imigrantes judeus no Rio de Janeiro”, projeto pioneiro iniciado em 1986 e desenvolvido com o apoio da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI –, que resultou em uma exposição no Museu Histórico Nacional em outubro de 1989 e um livro de mesmo nome. Essa pesquisa registrou depoimentos orais de imigrantes judeus que se estabeleceram no Rio de Janeiro e estudou também a cultura material do grupo, através de objetos ligados à identidade judaica trazidos por estes imigrantes.
O encontro com Henrique Blank, polonês que chegou ao Brasil em 1935, lançou a semente da nova pesquisa. Sua paixão pelo teatro, o depoimento das suas atividades como ator e diretor do Dram Krais – grupo de teatro amador da Biblioteca Israelita Brasileira Scholem Aleichem – Bibsa – e seu rico acervo constituído por fotografias, programas, partituras, croquis de cenários e recortes de jornal
sobre o teatro ídiche no Brasil, e também na Polônia, foram o rico manancial que deu início ao nosso projeto de pesquisa. Em uma segunda etapa encontramos referências de apresentações teatrais em ídiche, tanto por grupos profissionais como por grupos amadores, em todas as cidades do Brasil onde se desenvolveram comunidades judaicas: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Recife.
Já no Norte do Brasil, onde a imigração judaica foi essencialmente de origem sefaradita, o ídiche não era falado e não encontramos nenhuma menção sobre atividades ligadas a teatro. Os judeus originários de Marrocos falavam o hakitia e rapidamente aprendiam o português e é na música, na culinária e na forte manutenção da tradição religiosa que se nota a presença do judeu marroquino no Amazonas,
O Dram Krais, grupo no Pará e no desenvolvimento de cidades de teatro amador da Bibsa, tinha sua sede como Manaus, Belém, Óbidos e Cametá. Tampouco encontramos em grupos originários de países da Europa mediterna Praça Onze, o reduto rânea – Itália, França, Espanha e Portugal dos imigrantes judeus – referências a alguma atividade teatral, o asquenazitas nas que nos faz pensar que foram fundamendécadas de 1940 e tais para o desenvolvimento dessa manifestação cultural o ídiche como língua ex1950. O seu apogeu se pressiva e a cultura desenvolvida nos shtels dá durante os quase dez da Europa Oriental. anos em que Zygmunt A presença de grupos profissionais de
Turkow, renomado teatro ídiche, vindos de Nova York ou de diretor do teatro ídiche Buenos Aires, era constante no Rio de Janeiro e em São Paulo nas décadas de 1940 polonês, dirigiu o grupo. e 1960. Nomes como Maurice Schwartz, Esther Perlman, Isaac Deutch, Jacob Ben Ami, duplas como Max Perlman e Guita Galina apresentavam-se em grandes teatros que eram alugados nas segundas-feiras, quando não havia outras apresentações, e atraí-

Tevie, der Milchiker (Tevie, o Leiteiro), de Scholem Aleichem, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa, com cenário de M. Gryner, Rio de Janeiro, 1948.

Krochmalne Gas (Rua Krochmalne), de autoria de Zygmunt Turkow, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa no Teatro Recreio, Rio de Janeiro, 1944.
am um público de até 800 pessoas. Nessas temporadas, artistas locais profissionais compunham muitas vezes o elenco de apoio como, por exemplo, Bela Ajs e Berta Ajs (Loran), Simão Buchalski, Isaac Handfus, Moishe Lipman, Michal Michalovitch, que formaram durante um curto período a Companhia de Artistas Israelitas Unidos. Isaac Lubeltczyk era o empresário mais conhecido do teatro ídiche profissional e o depoimento de sua filha Sara Lubeltczyk retrata, de forma vívida, o significado do teatro ídiche para os que aqui viviam: (...) Os adultos adoravam, os artistas cantavam no palco, a plateia cantava junto, decorava. Eles adoravam, comiam o teatro como comiam o pão. Sentiam falta daquela cultura, porque aqui não tinha cultura ídiche. Eles tinham necessidade de ouvir o idioma.
Nossa pesquisa no Rio de Janeiro teve como foco principal o Dram Krais, grupo de teatro amador da Bibsa, cuja sede ficava na Praça Onze, o reduto dos imigrantes judeus asquenazitas nas décadas de 1940 e 1950. O seu apogeu se dá durante os quase dez anos em que Zygmunt Turkow, renomado diretor do teatro ídiche polonês, dirige o Dram Krais.
Turkow emigrou para o Brasil após o Varsaw Ydish Kunst Theater (VYKT), que fundara com Ida Kaminska, considerada a maior artista do teatro ídiche mundial e então sua esposa, ter sido destruído por uma bomba no início da Segunda Guerra Mundial. Veio para Recife em 1942 a convite de Waldemar de Oliveira, diretor do Grupo de Teatro de Amadores do Recife. Mudou para o Rio de Janeiro em 1944 para trabalhar com o Dram Krais da Bibsa,
imprimindo ao grupo uma qualidade teatral dificilmente atingida pelo teatro ídiche no Brasil. Turkow trouxe novas formas de preparação do ator e de interpretação do texto teatral e até 1951, quando emigrou para Israel, encenou dezoito peças atuando como diretor e ator.
A peça Krochmalne Gas (Rua Krochmalne), de sua autoria, encenada no Teatro Recreio, marcou a estreia do diretor no Rio de Janeiro em 1944. Conta a história de um criminoso judeu que, regenerado, torna-se um herói da Resistência em Varsóvia contra a ocupação nazista. Dos Groisse Guevins (A Sorte Grande), de Scholem Aleichem, encenada em 1945, teve o cenário desenhado pelo famoso pintor, desenhista e gravador judeu russo Lasar Segall. A peça Tevie der Milchiker (Tevie, o leiteiro), de Scholem Aleichem, possivelmente a mais conhecida do teatro ídiche adaptada ao cinema como “O violinista no telhado”, foi encenada em 1948 no Rio de Janeiro com Turkow como o leiteiro Tevie.
Os principais integrantes do Dram Krais eram Ida Kamenetzki, Joseph Landa, Henrique Blank, o casal David e Riva Berman, Micha Levovitch, Dina Varantz, Sara Tacsir, Cile Goifman, Mauricio Wasserman, Aron Uhn, o cenógrafo Mendel Gryner e Leon Gomberg como diretor musical.
As fotografias de Carlos (Karoly Moscovics), parte do acervo de Blank, são testemunhas do apuro dessas montagens. O fotógrafo, nascido em Budapeste, Hungria, em 1916, chegou ao Brasil em 1927 e no Rio de Janeiro, onde se profissionalizou, registrou a vida carioca nas décadas de 1940 e 1950 para a revista Sombra e também para a Rio Magazine. Fotógrafo oficial do governo de Juscelino Kubitschek, registrava as apresentações do teatro ídiche no Rio de Janeiro por amizade ao grupo.
Convidamos pesquisadores e estudiosos para escrever sobre o tema com o objetivo de reunir esse material em um livro. Recebemos de Tania Neumann Kaufman, além do seu texto, folhetos impressos que testemunham a presença do teatro ídiche em Recife desde a década de 1930; de Ieda Gutfreind, um ensaio sobre o Rio Grande do Sul através da pesquisa com membros da comunidade local e consulta aos arquivos do Departamento de Memória do Instituto Cultural Judaico Brasileiro Marc Chagall; Ethel Mizrahy
O teatro ídiche é Cuperschmid escreveu seu texto baseada particular na medida em que retrata a vida, os em sua dissertação de mestrado sobre a comunidade judaica de Belo Horizonte, assim como Esther Prizkulnik, que fez o valores e as aspirações texto sobre São Paulo, a cidade brasileide judeus em certo ra que recebeu o maior número de comcontexto histórico, em panhias profissionais. Curitiba, uma couma língua de difícil munidade pouco numerosa, mas dinâmica, marcou presença através de José Leon tradução, impregnada Zindeluk, e Rosa Grossman Tabacof conde nuances e de um tribuiu com suas reminiscências de jovem espírito particular. judia baiana em Salvador nas décadas de 1940 e 1950. O teatro ídiche é particular na medida em que retrata a vida, os valores e as aspirações de judeus em certo contexto histórico, em uma língua de difícil tradução, impregnada de nuances e de um espírito particular. Ao resgatarmos, preservarmos e divulgarmos a memória dessa manifestação artística no Brasil acreditamos estar contribuindo para a compreensão da riqueza e da diversidade cultural trazida por um grupo de imigrantes que integram a vida e a cultura brasileiras. Esse material constitui hoje o e-book Drama e Humor: teatro ídiche no Brasil, disponível no link www.teatroidichenobrasil.com.br. Susane Worcman é a realizadora do Projeto Heranças e Lembranças – imigrantes judeus no Rio de Janeiro. Como diretora cultural da ARI, Susane desenvolveu várias pesquisas na área cultural pela Associação Cultural Estudos Contemporâneos (Acec), então ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2001 dirige a Brazil Foundation, organização financiadora de apoio a projetos sociais no Brasil. Paula Ribeiro é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense com Mestrado (2000) e Doutorado (2008) em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora e pesquisadora vinculada à Vice-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Estácio de Sá (Unesa). É autora da Dissertação de Mestrado: Saara – uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro (1960-1990) e da Tese de Doutorado: Cultura, memória e vida urbana: judeus na Praça Onze, no Rio de Janeiro (1920-1980). As autoras são organizadoras do e-book: Drama & Humor – Teatro Ídiche no Brasil. Drama & Humor – Yiddish Theater in Brazil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.