
9 minute read
Sergio Widder
as tendências atuais do discurso antijudaico na américa latina
O antissemitismo “reciclado”
Advertisement
Em tempos em que os valores democráticos se encontram profundamente arraigados na maioria das sociedades ocidentais, o discurso antissemita tradicional, ligado a argumentações religiosas, medievais, racistas, pseudocientíficas, financeiras, visões conspirativas, entre outras, costuma provocar rejeição. A linguagem antijudaica assim como o discurso do ódio em geral se tornaram “politicamente incorretos”.
Contudo, frequentemente esse mesmo discurso de ódio é adaptado para ter como eixo de seus ataques o Estado de Israel ou o movimento sionista. Este “novo” antissemitismo ou, como preferimos qualificá-lo, antissemitismo “renovado” ou “reciclado”, retoma eixos daquele discurso antijudaico tradicional, o adapta e expressa, tendo o centro dos seus argumentos na situação no Oriente Médio.
Assim, o “deicídio” já não está mais tão vinculado à antiga acusação contra os judeus em relação à morte de Jesus, mas com o “martírio do povo palestino pelas mãos de Israel”. Algo semelhante ocorre em relação às acusações sobre o “crime ritual”. No lugar do sangue de crianças cristãs, os judeus aparecem hoje como monstros sedentos do sangue de crianças palestinas.
sergio Widder
Outra manifestação deste discurso de ódio são as representações de soldados israelenses com simbologia nazista, a negação ou distorção do Holocausto e a recriação do discurso conspirativo, no estilo dos “Protocolos dos Sábios de Sion”, em referência aos supostos “lobbies” sionistas que controlam o poder político e as finanças internacionais.
O objetivo deste discurso antissemita “renovado” tem a finalidade de questionar a legitimidade do Estado de Israel (seu direito de existir) e pretende caracterizá-lo como um Estado que pratica o “apartheid” e enquanto tal mereceria ser combatido e desmantelado.
Uma estratégia central desta campanha contra Israel é o movimento BDS (originalmente, em inglês, “Boycott – Divestment – Sanctions” – “Boicote, desinvestimento e sanções”).
O discurso antissemita atual na América Latina
Em relação a esta questão, identificaremos dois vetores a serviço da difusão da argumentação antijudaica atualmente nesta região.
Um deles compreende a esfera estatal, particularmente através dos países da região que fazem parte do blo-
O vínculo da Venezuela com o Irã teve repercussão negativa sobre a comunidade judaica venezuelana; na fotografia, a capital Caracas.
co Aliança Bolivariana para as Américas – Alba –, fundada pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez Frías, cujo país lidera o grupo, também formado por Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua.
O outro vetor corresponde à esfera da sociedade civil e entre seus canais de expressão se destacam representantes do mundo acadêmico, das ONGs e, de maneira central, o Fórum Social Mundial1 , que ao mesmo tempo concentra grupos do mundo inteiro que compartilham esta visão demonizada do Estado de Israel e do movimento sionista e opera como espaço de elaboração, discussão e circulação de propostas e como plataforma de lançamento para iniciativas nacionais, regionais e globais.
Estes vetores abrem o campo para os eixos em torno dos quais o discurso antissemita constrói sua articulação atual na América Latina: as repercussões do conflito palestino-israelense e a crescente presença do Irã na região.
A Venezuela é o principal país parceiro do Irã nas áreas comercial, política e militar dentro do bloco Alba, sua
O objetivo do discurso porta de entrada na região e o principal antissemita “renovado” promotor da sua expansão política e ditem a finalidade plomática. No terreno militar, a Venezuela permitiu a instalação em seu território de questionar a de plataformas de lançamento de mísseis legitimidade do Estado iranianos. de Israel e pretende Este vínculo teve uma repercussão necaracterizá-lo como um Estado que pratica gativa sobre a comunidade judaica da Venezuela. Buscas arbitrárias em centros comunitários, sob o pretexto de procuo “apartheid” e rar explosivos e armas, profanações de sienquanto tal mereceria nagogas, incitação a partir da mídia ligada ser combatido e ao governo, utilização do antissemitismo desmantelado. como ferramenta política durante a campanha eleitoral de 2012, entre outros. A gravidade da situação ficou refletida no fato de a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em seu relatório “Democracia e Direitos Humanos na Venezuela”2, de 30 de dezembro de 2009, ter manifestado expressamente a preocupação deste órgão com este assunto. Precisamente, durante a última Assembleia-Geral da OEA, o Representante Permanente venezuelano nesse organis-
mo tentou desqualificar um delegado de uma ONG do seu país, caracterizando-o como “um agente palestino financiado pelo Mossad”.3
A Bolívia, outro membro da Alba, também estabeleceu diversos acordos econômicos e ganhou maior relevância para o Irã. Um bom exemplo da solidez deste vínculo bilateral é a visita realizada em 2011 à cidade de Santa Cruz de la Sierra pelo então ministro da Defesa iraniano, Ahmad Vahidi, para participar da inauguração de uma “Escola de Defesa” do bloco Alba. Vahidi é um dos acusados pela justiça argentina de suspeito do ataque terrorista contra a Associação Mutual Israelita Argentina – Amia – e há uma circular vermelha endossada pela Interpol indicando seu nome como indiciado pela justiça argentina. A impunidade para entrar e sair da Bolívia, na região próxima à fronteira com a Argentina (o país que solicita sua prisão) ilustra a proximidade entre La Paz e Teerã.
Equador, Nicarágua e Cuba são outros países membros do bloco. Neles, diferentemente da Bolívia, a proximidade com o Irã não provocou um impacto direto sobre as comunidades judaicas locais (em alguns casos, muito pequenas).
Gostaria de me referir agora, de forma sucinta, aos vínculos entre o Irã e os países da região que não fazem parte da Alba: Brasil e Argentina.
No caso brasileiro, é visível a mudança percebida entre os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Enquanto Lula visitou Teerã e proporcionou cordiais boas-vindas ao ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad em Brasília, Dilma esfriou a relação. Durante sua visita ao Brasil para a reunião Rio+204, Ahmadinejad não conseguiu estabelecer reuniões bilaterais com outros chefes de Estado. Contudo, a revista Veja informou que Ahmadinejad organizou um encontro com um grupo de acadêmicos e ativistas, muitos deles protagonistas do Fórum Social Mundial (a quem a revista, ironicamente, qualificou como “o fã clube brasileiro de Ahmadinejad”), no que parece ser a busca de um canal de legitimação para seu país na América Latina.5
O caso argentino, no que tange às relações com o Irã, talvez seja o mais complexo. Este antissemitismo Desde que a justiça argentina emirenovado, que adota como alvo dos seus tiu uma ordem de prisão para cidadãos iranianos suspeitos de terem participado do atentado contra a Amia (outubro ataques um dos de 2006) até setembro de 2012, quando elementos centrais oficializou suas negociações com Teerã, da identidade judaica Buenos Aires havia mantido uma enércontemporânea, o gica resistência para que os imputados se apresentassem perante os tribunais, inEstado de Israel, já cluindo solicitações feitas do púlpito da se estabeleceu como Assembleia-Geral das Nações Unidas, uma corrente central pelo falecido ex-presidente Néstor Kirdo discurso de ódio chner e pela presidente Cristina Fernánantijudaico e substituiu dez de Kirchner, para que o Irã cooperas se com a justiça. outras manifestações Essa postura foi modificada em setemmais tradicionais. bro de 2012, quando as negociações foram oficializadas e o diálogo consolidado ao ponto de terem assinado um Memorando de Entendimento bilateral, em 27 de janeiro de 2013, que estabeleceu que seria criada uma “Comissão da Verdade”, que faria uma revisão do procedimento da justiça argentina. Segundo o governo argentino, este acordo permitirá aos suspeitos comparecerem para depor em Teerã perante autoridades judiciais argentinas. O motivo alegado por Buenos Aires para avançar nesta direção foi “a necessidade de destravar a causa”. Até o momento em que concluo este artigo, a “Comissão” não havia sido criada ainda. Independentemente desse objetivo declarado, é fato que o intercâmbio comercial entre ambos os países cresceu de forma notável nos últimos anos e que ambos precisam do que o outro produz (a Argentina precisa de recursos energéticos e o Irã é um cliente valioso de produtos agrícolas). Parece claro que este acordo proporciona uma oportunidade para o Irã encobrir seu papel como promotor do terrorismo internacional. O governo argentino, de seu lado, argumentou que esta seria a forma de destravar a causa. As contradições entre as declarações dos representantes de ambos os governos (se os suspeitos prestarão depoimento ou não, se as circulares vermelhas permanecerão ou serão eliminadas) aprofundam ainda mais as dúvidas em relação ao seu real alcance. Talvez o resultado mais visível desta nova etapa nas relações entre a Argentina e o Irã tenha sido uma solenidade
realizada em Buenos Aires para comemorar o “Dia de Al Quds”, uma data instituída pelo líder da Revolução Islâmica iraniano, o Aiatolá Khomeini, como uma jornada dedicada, supostamente, a apoiar a causa palestina. Na prática, é uma jornada dedicada a redobrar as convocações a favor da destruição do Estado de Israel. Na reunião de Buenos Aires, os oradores reivindicaram o Hezbollah, advogaram pela destruição de Israel e defenderam um cidadão iraniano acusado pela justiça argentina (e com ordem de prisão internacional) como suspeito do ataque terrorista contra a Associação Mutual Israelita Argentina, ocorrido em julho de 1994. A participação de um funcionário do governo argentino provocou um escândalo político, apesar de no final das contas o governo ter optado por protegê-lo.6
Em relação à incidência do conflito palestino-israelense, vale a pena dedicar algumas palavras à edição especial do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que aconteceu em Porto Alegre, em novembro de 2012.
Os eixos do encontro foram, principalmente, a campanha mundial do BDS e como implementá-la na América Latina, a promoção de iniciativas judiciais contra o Estado de Israel e contra cidadãos israelenses, campanhas religiosas para sabotar o apoio de grupos cristãos a Israel, a convocação de novas “flotilhas” para violar o espaço marítimo israelense e o fortalecimento dos grupos judaicos antissionistas. O Centro Wiesenthal foi a única organização judaica sionista presente no Fórum e elaborou um pequeno curta que se encontra disponível no youtube. 7
Este antissemitismo renovado, que adota como alvo dos seus ataques um dos elementos centrais da identidade judaica contemporânea, o Estado de Israel, já se estabeleceu como uma corrente central do discurso de ódio antijudaico e substituiu outras manifestações mais tradicionais. Estas são as tendências crescentes no mundo e que na América Latina contam com aliados sólidos para se expandir. Por isso, é conveniente ficarmos atentos e orientar nossos esforços para encontrar respostas efetivas.
Notas
1. Com o slogan “Outro mundo é possível”, o Fórum Social Mundial (estabelecido em 2001 em Porto Alegre) pretende dar uma resposta à “globalização econômica neoliberal”, e promove, no seu lugar, a “globalização da solidariedade internacional”. Além de seus encontros regulares anuais, o Fórum se expressa através de diversos fóruns regionais. Dentro da sua variada agenda, a “causa palestina” e a deslegitimação do Estado de Israel têm um espaço destacado. 2. http://www.cidh.org/pdf%20files/VENEZUELA.2009.ESP.pdf , parágrafos 783 a 786. 3. http://www.infobae.com/2013/06/04/713835-piden-la-oea-que-condene-venezuela-incitar-al-antisemitismo 4. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável foi realizada no Rio de Janeiro em junho de 2012. 5. http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-fa-clube-brasileiro-de-ahmadinejad 6. Recomendamos ver um vídeo elaborado pelo Centro Wiesenthal acerca desta atividade, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Bk3Gu4c-jIM 7. O vídeo está disponível em três idiomas: espanhol (http://www.youtube.com/watch?v=7JvyOE4ORqQ), português (http://www.youtube.com/ watch?v=vN6PPf9PZoE) e inglês (http://www.youtube.com/watch?v=YHc3d_ ijSD8)
O professor Sergio Widder é o Diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal. Este artigo é uma adaptação atualizada da apresentação realizada no VI Encontro Brasileiro de Estudos Judaicos, Uerj, Rio de Janeiro, em dezembro de 2012, que posteriormente foi incluída no livro do referido Encontro, Judaísmo e Cultura: Fronteiras em Movimento. Tanto a adaptação como a atualização foram realizadas pelo autor, especialmente para a revista Devarim.
Traduzido do espanhol por Ana Beatriz Torres, intérprete de conferências e tradutora, membro da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência, da Associação Profissional de Intérpretes de Conferência e do Sintra – Sindicato Nacional dos Tradutores.
La Paz, capital da Bolívia, que estabeleceu diversos acordos econômicos com o Irã.
Alatom / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 45

