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Rabino Sérgio R. Margulies
as faces
rabino sérgio r. margulies
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Bereshit: a face humana
Bereshit (denominado nas traduções ‘Gênesis’, literalmente ‘No Início’), o primeiro livro da Torá, narra o início do mundo. De vários mundos, pois cada ser humano é um mundo único e ao mesmo tempo igual aos outros. A imagem divina é inexistente e ainda assim todo ser humano é feito à Sua imagem e semelhança. A face humana é o reflexo da indescritível face divina. De acordo com o rabino Abraham Heschel (19071972), não há como fazer a imagem de Deus senão através da própria vida. Olhar nossa face é reconhecer a dimensão sagrada da existência. O caminho da vida é para ser trilhado com vitalidade, não engessado pelo enfadonho. Os passos são para nos conduzir a uma vida repleta de significado em que nenhuma ação é vã. Diante da insegurança que pode eclodir da alma, perceber nossa singular face humana como reflexo da imagem divina ajuda a recuperar o rumo de uma vida envolta por propósitos. Ajuda a resgatar a dignidade para que não sejamos arrastados pelo descaso. No receio de sermos rejeitados, apreciar o brilho da face – como escultura única da dimensão divina – nos fortalece para superar a tentativa de exclusão. A exclusão de um ser humano, por alguma forma de preconceito e realizada por algum ato físico, verbal ou pressão social nega a face divina do ser huSão vários os exílios que enfrentamos. O primeiro deles é o de nós próprios. Exilados do reconhecimento do que somos. A mensagem da Torá convida: volte para você.
Os desenhos referentes a cada livro da Torá são de autoria do rabino Sérgio R. Margulies.

mano e como tal é idolatria. Transforma o sujeito – imagem e semelhança de Deus – num objeto para atender os interesses dos que promovem a chacota.
Como numa casa de espelhos em que vemos a imagem alterada, por vezes nosso espelho interno reflete uma imagem distorcida: ora diminuímos, ora exageramos nosso potencial; ora nos deixamos levar pela areia movediça do fracasso, ora nos arrastamos pelo vendaval da ilusão. A imagem divina está em nossa face. No fundo, dado que esta imagem é inexistente, temos que construí-la. Construímos quem somos. O que somos e como nos percebemos são reflexos do que se passa em nossa alma.
São vários os exílios que enfrentamos. O primeiro deles é o de nós próprios. Exilados do reconhecimento do que somos. A mensagem da Torá convida: volte para você.1
Shemot: a face de Deus
No segundo livro da Torá, Shemot (denominado nas traduções ‘Êxodo’, literalmente ‘Nomes’), Deus convoca o ser humano para o encontro. Moshé [Moisés] fica conforme as palavras bíblicas ‘panim el panim’, ‘face a face’, com Deus. Moshé fica diante da face Daquele cuja face não tem nem forma nem formato. Formas e formatos – enquanto elementos tangíveis – servem para que seja estabelecida uma esfera de domínio. Deus é indominável. Aqui brota o paradigma dos encontros entre as faces humanas: o encontro genuíno não é para estabelecer controle ou domínio, é simplesmente para a interação e convívio. Moshé indaga o nome de Deus. É inominável. O nome permite criar categorias. Deus as transcende. Assim, o inominável Deus (cujo nome não é, por definição, Deus) se define como ‘Ehie-Asher-
Buscar uma vida -Ehie’, expressão hebraica de amplo signisantificada não exige a perfeição humana. ficado: ‘Eu sou o que (ou quem) sou’, ‘Eu serei o que (ou quem) serei’, ‘Eu serei sou o que posso ser’. Esta condição inexiste. Nós seres humanos temos nomes, mas
Procurar o melhor não para confinar, pois a semelhança para admite a falibilidade. com Deus nos convida a sermos o que po-
Errar é inexorável demos ser. Há um potencial a ser desbravado uma vez que em cada um de nós há à vida. O relevante múltiplas faces. A palavra face em hebraié reconhecer os co – panim – é expressa no plural para caequívocos e repará- racterizar a riqueza que emerge de nossas -los. Admitindo nossa emoções e pensamentos. falibilidade somos Imposições totalitárias restringem o potencial humano. As partes são anuladas mais propensos a e o todo, em que tudo passa a ser igual, aceitar o outro. prevalece. Há indivíduos, coloca Erich Fromm (1900-1980), que preferem uma imposição totalitária. A razão é simples: se isentam do risco e da dificuldade da escolha. A solução é dada. Tudo é pronto. Nestes casos, a pessoa deixa de resplandecer a imagem divina, vira objeto esculpido ao sabor das imposições e não é o que poderia ser. Tal como Deus é o que pode ser, cada pessoa não simplesmente é, e sim ‘torna-se’. O tornar-se é constante. Permanente. ‘Nome’ em hebraico é shem. Com as mesmas letras, somente mudando uma vogal (que na ortografia sequer aparece) há a palavra sham, que significa ‘lá’. O ‘lá’ é tanto o lugar quanto a condição do que podemos ser e nos tornar. Cada ‘lá’ convida para um novo ‘lá’. O crescimento é constante. São vários os exílios que enfrentamos. A Torá convida: volte para a essência divina que há em você.
Vaikrá: a face do outro
O terceiro livro da Torá, o Vaikrá (denominado nas traduções ‘Levítico’, literalmente ‘E chamou’), exorta: kedoshim tihiu, ‘sejam santificados’. Buscar uma vida santificada não exige a perfeição humana. Esta condição inexiste. Procurar o melhor admite a falibilidade. Errar é inexorável à vida. O relevante é reconhecer os equívocos e repará-los. Admitindo nossa falibilidade somos mais propensos a aceitar o outro. Apontar precipitadamente o dedo é uma maneira de se desvencilhar da responsabilidade para com o outro e um modo de retirar de nós próprios a face huma-
na, como se não fossemos humanamente falhos. Um dos termos para o casamento judaico é kedushin (que quer dizer santificação). A noiva, dentro do rito, tem seu rosto coberto por um véu que separa a sua face da do noivo. Não é para distanciar. É para compreender que o sagrado é construído através da união que distingue as partes. Igualmente o shabat – dia santificado da semana judaica – é distinguido dos dias comuns pela cerimônia de havdalá.
Evidentemente no dia a dia não há o véu, nem na dimensão judaica a necessidade de manter o rosto coberto, mas há a lembrança de que o sagrado existe no espaço invisível que construímos entre um e outro. Entre uma face e outra. Quando não há este espaço deixa de haver um e outro. Cada um olha o outro como se fosse projeção de si. Neste caso, as faces são cobertas por máscaras de hipocrisia. Vale para qualquer vínculo no qual deve prevalecer o amor.
Vários são os exílios. O exílio do convívio genuíno com amor. A Torá convida: restaure a sacralidade dos relacionamentos.
Bamidbar: a face da comunidade
O quarto livro da Torá, Bamidbar (denominado nas traduções ‘Números’, literalmente ‘No deserto’), descreve a realização de um censo. Um povo é percebido. Uma pertinência pode ser estabelecida. A solidão pode ser superada. O deserto não é somente o lugar geográfico, mas também a condição humana em que o espírito torna-se árido pela ausência de elos que nos unam a algo maior. Deus, afirmamos, é a causa de todas as causas. Em complemento, assumindo a responsabilidade humana, confirmamos que a presença divina é consequência do que fazemos para os outros, dos efetivos elos de conexão com os outros. Os vínculos de pertinência permitem que a presença divina – shechiná, em hebraico – se manifeste.
Os múltiplos vínculos permitem apreciar a pluralidade. A vida judaica é ampla e várias são suas concepções filosóficas e teológicas. Esta diversidade é uma riqueza que a convivência comunitária propicia. Isto implica num exercício de aceitação: ver outras facetas da vida sem desdenhar o diferente ou considerar ilegítima a concepção distinta. Legítimas são as inúmeras faces de expressão judaica e humana. Ilegítimo é tirar uma face do marco do convívio por dela discordar.
Há o exílio comunitário, dos amplos relacionamentos. A Torá convida: retorne a este convívio.
Devarim: a face da religião
O último livro da Torá chama-se Devarim (denominado nas traduções ‘Deuteronômio’, literalmente ‘Palavras’). A linguagem é precioso atributo humano. De nossa face saem as palavras que expressamos. Para nossa face vêm as palavras que escutamos. Cada diálogo é um encontro face a face. Cada diálogo é uma descoberta. Religião é o encontro entre pessoas que se comunicam. Cada palavra dita e não escutada ou cada palavra ansiada em ser escutada e não dita representa uma perda de religiosidade.
O significado das palavras também depende de como são ditas ou escutadas. Muito pode ser dito e pouco ser compreendido. Várias rupturas são causadas pelas interpretações equivocadas e por intentos de comunicação mal entendidos. Palavras trocadas face a face facilitam a compreensão e evitam manipulações de jogos imersos em fofocas. O silêncio entre as palavras lapida o que elas expressam impedindo serem flechas que ferem a vida. Estando face a face este silêncio é captado.
Conta-se que o dono de um negócio estava tão assoberbado que não tinha mais tempo para conversar com Deus. Assim, contratou um assistente que o aliviaria de seus afazeres para que se dedicasse à conversa com Deus. Quando foi rezar olhou a
face de seu assistente e percebeu que naquela ajuda àquela pessoa estava a face de Deus e para o assistente deveria dirigir palavras de agradecimento e incentivo. Assim, as palavras a Deus foram permeadas pelas palavras trocadas entre os dois. Então pensou que talvez ele próprio devesse diminuir seu tempo de conversa exclusiva com Deus a fim de que ambos conversassem com Deus. Antes somente ele conversava com Deus e o vínculo com o outro – no caso, o assistente – era unicamente utilitário tal qual era utilitário o seu vínculo com Deus. Quando passaram a conversar entre si e juntos com Deus, nasceu a religião. Juntos compartilharam seus anseios e expressaram suas alegrias. Juntos trocavam palavras: cada um consigo, um com o outro, ambos com Deus e quem sabe Deus com eles.
Há o exílio da espiritualidade. A Torá convida: resgate as palavras de encontro. Religiosidade compartilhada é a linguagem comum de conforto e apoio entre diferentes pessoas de um mesmo convívio comunitário. O sagrado existe no Torá: a face judaica espaço invisível que construímos entre um Setenta são as faces da Torá, ensina a literatura rabínica. Setenta simboliza a abrangência no potencial de criae outro. Entre uma face ção. Cada geração pode ver a face do seu e outra. Quando não há tempo nas faces da Torá. Através das faces este espaço deixa de da Torá a geração haver um e outro. Cada do hoje aprecia a história das geraum olha o outro como ções passadas e a se fosse projeção de si. esperança da geração futura. Há vários exílios. O exílio da Torá. A Torá convida: volte para mim e encontre sua face. E tantas outras.
Notas
1. Inspirado no rabino Arthur Green, Seek my face, Jewish Lights, Vermont, 2003. Sérgio R. Margulies é rabino e serve a Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
Alengo / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 7

