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Rabino Dario E. Bialer
adão e eva e a sociedade de consumo
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rabino dario e. Bialer
Acivilização humana nasce com o desejo. Adão e Eva viviam num paraíso para onde, idealmente, todo ser humano anseia voltar e do qual eles escolheram sair.
Eles tinham nascido em berço de ouro, com abundância de recursos e a oportunidade de viver uma vida sossegada e bem resolvida para sempre. Essa era a vida que Deus imaginou para a sua criação. Mas eles viram que o bom era outra coisa, e optaram pelo movimento. A aceitação do incerto e o desafio de como preencher a ausência do mundo real lá fora. E essa desobediência ao mandato divino foi o primeiro ato de livre arbítrio do homem.
Tudo isso começou quando:
“Tomou o Eterno Deus o homem, e colocou-o no jardim do Éden, para cultivá-lo e guardá-lo. E ordenou o Eterno Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer. E as árvores do conhecimento, do bem e do mal, não comerás dela; porque no dia que comeres dela morrerás... mas a serpente disse à mulher: Não morrereis! Porque sabe Deus que, no dia em que comerdes dela, abrir-se-ão vossos olhos e sereis como deuses... e viu a mulher que boa era a árvore para comer e que desejável era para os olhos e cobiçável a árvore para entender [o bem e o mal], e tomou do seu fruto e comeu...”. (Bereshit/Gênesis 2:15-17 e 3:5-6)
Que árvore era essa? A árvore do saber ou do sabor? Não foi pelo conhecimento que se atreveram desafiar a Deus. Foi pelo sabor, pelo desejo. Definitivamente, é o desejo o impulso vital que faz ao homem e à mulher saírem da zona de conforto e perseguirem algo além da subsistência física. Se fosse somente pelo alimento e o abrigo, teriam ficado no Éden da vida resolvida. Mas isso
não é viver. É apenas sobreviver, e nascemos para muito mais do que isso.
O desejo não é um impulso qualquer. É aquele que nos põe em marcha. É a base da realização, da esperança e uma fonte de felicidade sem igual para o ser humano. Mas também, como definiu Freud, o desejo não conhece limites. As paixões puxam o ser humano para todos os lados. Estamos permanentemente buscando o objeto adequado ao nosso desejo infinito, que, contrastado com o objeto finito, produz inevitavelmente uma grande desilusão.
Diz a serpente que Adão e Eva comeram do fruto porque queriam ser como deuses.
Quando se pode ter tudo se quer mais ainda; quando o que nos mobiliza é a cobiça, o desejo desenfreado torna-se nocivo.
E quando a felicidade instantânea que o desejo proporciona acaba, abre-se um vazio ainda maior que será preenchido pela próxima aquisição num ciclo crescente e interminável.
O desejo de ter nunca é suficiente. Por isso os excessos aos que o ser humano se submete. Quisemos ser como deuses e não como homens. Não aceitamos o limite.
Pensamos que satisfazendo de forma imediata todos os desejos seríamos especiais e nos sentiríamos como deuses. Querer e poder, gostar e comprar, cria a falsa ilusão de realização e felicidade que a serpente “vendeu”.
A isso se refere o sociólogo polonês Zygmunt Bauman quando explica que, numa sociedade de consumidores, o valor supremo, perante o qual todos os demais devem justificar seu valor, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores é talvez a única na história humana que promete felicidade na vida terrena, felicidade aqui e agora e em todos os agora seguintes. Quer dizer, felicidade eterna e perpétua.
E como se alcança a felicidade? Eis a pergunta do milhão! Numa sociedade de consumo, a felicidade se atinge por meio da satisfação dos desejos. Mas essa atisfação tem um umbral específico e, passado esse limite, o consumidor não só não encontra a felicidade almejada senão que “se submete a um fardo hedonista que acaba indefectivelmente na infelicidade”. O shabat é um dia de A maçã do desejo liberdade, de desapego do material e das Nunca possuímos tantas coisas como hoje e nunca experimentamos tanta necessidade de comprar mais. Armários cheios, obrigações externas. pilhas de sapatos e muito mais roupa do É o dia em que se que somos capazes de usar e, mesmo asinterrompe o culto aos sim, continuamos comprando. Somos deuses da civilização uma geração educada te para consumir. sistematicamentécnica. Que maior Muitas vezes esse comportamento esesperança de progresso conde carências. Diante da ausência de para o homem do felicidade e realização pessoal em outros que o shabat? espaços de sua vida, sair a comprar objetos é a satisfação instantânea (e fugaz) da felicidade. Como explicar que há quem acampe a noite toda em frente de uma loja da Apple para ser o primeiro a comprar um iPhone? A diferença entre a maçã da Apple e o fruto (que não era uma maçã) da Eva é que na atualidade o que acontece é uma sedução em série que fomenta clientes tão sedentos de produtos, que jogam fora o último modelo a cada nova estação. Se a fonte vital de realização pessoal está em consumir objetos, algo não está funcionando bem e não seria de estranhar que uma pessoa com um comportamento abusivo com as coisas traslade isso aos seus vínculos afetivos, coisificando as pessoas. Como diz Sandel: de ter uma economia de mercado passamos a ser uma sociedade de mercado. A diferença é que uma economia de mercado é uma ferramenta valiosa e eficaz de organização da atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de vida em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformadas à imagem do mercado. Penso, por exemplo, em projetos que pagam a jovens para que se aproximem da Torá. Devemos dar dinheiro a uma criança para que leia mais livros? As crianças podem até ler mais com esse incentivo, mas a leitura em si deixa de ser um objeto de engrandecimento pessoal e passa a ser um fardo para uma meta monetária. A sociedade de consumo impõe sua lógica. Adquirimos objetos para nos sentirmos seguros e evitar expor-nos às incertezas do desconhecido.
Nesse sentido, é bem similar ao que a idolatria representa. Objetos que têm o poder simbólico de controlar sua vida.
Idolatria século XXI
Os objetos que compramos proporcionam uma falsa sensação de segurança. A acumulação pretende significar estabilidade, mas não há objeto capaz de nos preservar do incerto.
Consumimos e acumulamos para nos aferrar ao concreto, da mesma forma que os pagãos adoravam estátuas e objetos. A conexão entre a acumulação desmedida e a idolatria se encontra nas palavras do profeta Isaias:
“E a sua terra está cheia de prata e ouro, e não têm fim os seus tesouros; também a sua terra está cheia de cavalos, e os seus carros não têm fim. Também a sua terra está cheia de ídolos; inclinam-se perante a obra das suas mãos, diante daquilo que fabricaram os seus dedos.” (Isaías 2:7-8)
O profeta descreve como a abundância sem limites é terreno fértil para incorrer em idolatria.
O judaísmo combate os ídolos e as falsas promessas. Reivindica a liberdade do ser humano e revoluciona o mundo com o monoteísmo. Não há nada mais permanente e verdadeiro do que o abstrato.
Toda a Bíblia poderia se resumir a um único conceito: a luta contra a idolatria. A crença num Deus único que não se pode ver nem tocar, mas com quem se pode dialogar.1
A tradição judaica ensina que o que permanece não são as posses. Todas elas, mais cedo ou mais tarde, desaparecem. O estado permanente da vida é a troca. A interação com o mundo e as pessoas.
J. Heschell descreve como ninguém essas ideias:
“A maioria de nós sucumbe ante a propriedade magnética das coisas. Apreciamos aquilo que existe no reino do espaço. No entanto, o certo é que o genuinamente precioso se encontra no reino do tempo.
Os monumentos de bronze vivem graças à memória dos que contemplam sua forma, enquanto que os momentos da alma perduram, mesmo que sejam relegados à profundidade da mente.
Mesmo que nos ocupemos das coisas, vivemos as ações.
Os pagãos exaltam as coisas sagradas, os profetas de Israel louvam as ações sagradas.
O objeto mais precioso que jamais existiu sobre a terra fo-
Kompaniet / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 11

ram os painéis de pedra que Moisés recebeu no alto do monte Sinai.
Os painéis eram a obra de Deus, e a escrita era a escrita de Deus gravada sobre eles.
Porém, quando Moises desceu da montanha com os painéis que acabara de receber em suas mãos e viu o povo adorando o bezerro de ouro, os arremessou ao chão e os despedaçou diante dos olhos de todos.
A pedra está quebrada, mas as Palavras estão vivas. A reprodução que Moisés fez logo depois também desapareceu, mas as palavras não morreram. Seguem chamando em nossas portas como se pudessem ser gravadas em cada coração”.2
O shabat: Um palácio no tempo
Viver no tempo aprendendo a nos desligar das coisas é a proposta judaica do shabat.
Não se trata de renunciar ao mundo dos objetos, mas de aprender a viver também sem eles. Viver o shabat independentemente da civilização técnica, que é a conquista do espaço, para residir no palácio do tempo por 24 horas por semana, sem trabalho, sem dinheiro e sem instrumentos.
O shabat é um dia de liberdade, de desapego do material e das obrigações externas. É o dia em que se interrompe o culto aos deuses da civilização técnica. Que maior esperança de progresso para o homem do que o shabat?
No sétimo dia o homem suspende sua luta pela subsistência e se entrega à vivência plena do desprendimento das coisas. É uma trégua de todos os conflitos pessoais para procurar a paz de espírito dentro do homem e no equilíbrio com o universo no encontro com Deus.
Como seria um mundo sem o shabat? Seria um mundo que conheceria somente a si mesmo, ou um Deus distorcido como uma coisa, ou o abismo a separar Ele do mundo; um mundo sem a visão de uma janela na eternidade que se abre no tempo.3
“Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo o que for desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas... Daqui para frente apenas o que couber na bolsa e no coração.” (Cora Coralina)4
Para alguns o período sabático não é suficiente e eles
procuram ampliar a experiência repensando seus hábitos e mudando seu estilo de vida, valorizando o desapego como algo positivo e necessário.
Apreciar o essencial e deixar ir o supérfluo é um exercício que nos melhora. Essa é a filosofia do minimalismo, nascida na década de 1960 nos Estados Unidos como uma corrente artística e que foi penetrando na cultura global com a mensagem de revisar as tendências de consumo, negando que essa seja a principal fonte de felicidade.
O minimalismo procura simplesmente diminuir os elementos que sobram. Uma vida orientada a focar no essencial acaba outorgando mais tempo, mais liberdade, mais desfrute e menos preocupações.
“Há cada vez mais pessoas pensando que é insustentável a quantidade de objetos que carregamos pela vida”, diz Alex Castro, uma referência do minimalismo no Brasil.
E como ele, no País e no mundo existem muitos exemplos de pessoas aderindo a essa filosofia e começaram uma dieta de consumo.
Não se trata simplesmente de economizar dinheiro, mas de mudar hábitos enraizados, estabelecer prioridades e definir ao que daremos valor.
Abrir um a um todos os armários e se desfazer de tudo o que não é utilizado tem sido para todos eles um exercício liberador.
De certa forma, há um paralelo entre essa nova tendência e o costume milenar do judaísmo de fazer na véspera de Pessach uma limpeza exaustiva do chamets (o chamets como símbolo do que sobra, do que está incomodando, do que já não tem espaço e não faz sentido continuar guardando).
O exercício de esvaziar os espaços nos quais interagimos dá uma sensação concreta de renovação e, o que é mais importante, amplia o espaço para nos movimentarmos.
O vazio é o espaço da liberdade. Com menos coisas a pessoa pode circular mais à vontade.
Seguindo essa lógica, Dave Bruno, um professor da Universidade da Califórnia, publicou o livro The 100 things challenge, que conquistou seguidores ao redor do mun-
Avraham é o peregrino do, contando sua experiência de viver duque, andando junto com sua família, rante um ano com apenas 100 itens incluindo os de sua mulher e filhos. Um desses seguidores, Andrew Hyde, sente-se pleno levando conseguiu fazer o mesmo exercício e ainpouquíssimas coisas da assim achou muito. Pôs à venda quase com ele. O simbolismo tudo e ficou só com 15 coisas. Com elas de deixar para trás viajou por 15 países e dessa viagem surgiu o livro A modern manual – 15 counsua casa e todos seus tries with 15 things. pertences é o que guia Esses exemplos radicais não são para a caminhada de um muitos. Mas não é necessário alcançar eshomem que não sai ses extremos para simpatizar com essas de sua terra buscando ideias, pois o minimalismo é viver com o essencial, sendo que cada pessoa decide o enriquecer. Ele sai em que é essencial para si. É um processo tobusca do sentido, num talmente subjetivo. processo espiritual em E a Torá procura preservar essa indique segue a intangível voz Divina. vidualidade. Cada um é livre de escolher como vai se relacionar com o mundo, as pessoas e os objetos, e talvez por isso o texto bíblico, através das ações dos patriarcas, nos transmita ensinamentos bem diferentes. Avraham é o peregrino que, andando junto com sua família, sente-se pleno levando pouquíssimas coisas com ele. O simbolismo de deixar para trás sua casa e todos seus pertences é o que guia a caminhada de um homem que não sai de sua terra buscando enriquecer. Ele sai em busca do sentido, num processo espiritual em que segue a intangível voz Divina. A sensação de estar em trânsito favorece o desapego. Se pensarmos em algum momento inesquecível que já vivemos, provavelmente essa lembrança seja de alguma viagem junto com pessoas queridas. Nessas situações tudo o que temos é o pouco que cabe na mala que carregamos e o espaço que nos dá segurança se limita a um pequeno quarto de hotel. Logo voltamos à vida real, em apartamentos de muitos quartos e armários lotados de roupas. Durante a viagem temos certeza que aprendemos da experiência de viajar mais leves e é ao chegar que nos esquecemos dessas lições. E a Torá relata que o próprio Avraham parece ter se perdido e esquecido. Quando começa a enriquecer e se torna um homem próspero, ele percebe que tudo o que tinha acumulado di-
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ficultava a interação com seu sobrinho, na época o mais próximo de um filho que ele tinha. “E a terra não podia sustentá-los para estarem os dois juntos, pois seus bens eram muitos.”5 Avraham foi inteligente o suficiente para enxergar que a vida dessa forma estava insustentável e precisava tomar uma decisão. A escolha dessa vez não foi deixar parte de suas posses, mas resignar a família unida. Explicou a Lot que não poderiam continuar andando juntos e que ele poderia escolher a melhor terra para seus animais e que ele se iria com todos seus pertences no sentido oposto.
O outro exemplo emblemático é o de Jacó e Esaú, dois irmãos em conflito, separados pela benção da prosperidade que o pai podia entregar só a um deles.
O tempo passou e já mais amadurecidos se reencontram sem saber muito bem como acabaria esse encontro. Jacó temia pela sua vida e para ganhar a confiança do irmão lhe envia inúmeros presentes. Quando Esaú recebe toda essa quantidade de riqueza, se dá um interessante diálogo:
“Perguntou Esaú: Qual é o teu propósito com todas essas coisas? Respondeu Jacó: Para lograr favor na presença de meu senhor. Então, disse Esaú: Eu tenho muitos bens, meu irmão; guarda o que é teu. Mas Jacó insistiu: Não recuses; se logrei favor diante de ti, peço-te que aceites os meus presentes, porquanto vi o teu rosto como se tivesse contemplado o semblante de Deus; e te agradaste de mim. Toma, rogo, meu presente, que eu te trouxe; porque Deus tem sido generoso para comigo, e tenho tudo”.6
Às vezes na vida se alcança sabedoria e a realidade começa a ser evidente. O prazer de dar, a generosidade de servir e compartilhar pode ser mais verdadeiro da satisfação que experimentamos do que quando guardamos para nós.
Jacó compreendeu, 20 anos depois, que ter ficado com os bens da família não fez dele um homem mais rico, e sim mais preocupado. E Esaú sente que as posses pelas quais brigaram toda a vida não valiam o preço que se paga ao perder um irmão. Dessa forma eles se reconciliam, quando o que mais querem é dar ao outro parte de sua benção.
“É realmente um processo de anos ir percebendo que precisa de menos coisas, que não se precisa de dez calças, de dez pares de sapatos”.7 Que a realização na vida passa por outro lado, e que ao que damos prioridade vai definir em grande medida quem somos.
Seguramente continuaremos carregando objetos e lembranças; coisas que nos trazem algum tipo de sentimento. A roupa que temos, não a usamos apenas para nos cobrir do frio, mas para a interação social e uma cobertura emocional.
No entanto, nada disso minimiza as ideias do minimalismo. O importante é sermos consumidores conscientes, evitar os abusos e não pensar apenas em nós, para reduzir o sentido de desperdício que damos à vida.

Notas
1. Sobre esse assunto pode-se aprofundar com Kaufmann, Ezekiel em The History of
Israelite Religion. 2. Heschell, Abraham Joshua, La tierra es del Señor, 1984, Seminario Rabínico Latinoamericano, Buenos Aires. 3. Idem, O Shabat, 2004, Perspectiva, São Paulo. 4. Considerada uma das maiores poetas brasileiras do século 20. 5. Bereshit/Gênesis 13:6. 6. Bereshit/Gênesis 33:8-11. 7. Jornal Valor Econômico, 31 de março de 2013.
O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies em Jerusalém.

