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Diane Kuperman
diálogo: do desPrezo ao aPreço, a cultura do encontro
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diane Kuperman
“Estamos hoje conscientes de que, no decorrer de muitos séculos, nossos olhos se achavam tão cegos que não éramos capazes de ver a beleza de teu Povo Eleito, nem de reconhecer a Tua face nos traços de nossos irmãos privilegiados. A marca de Caim está inscrita em nossa fronte... Perdoa-nos a maldição que atribuímos injustamente em Teu nome aos judeus. Perdoa-nos, porque não sabíamos o que fazíamos.”
Esta oração, que o Papa João XXIII teria proferido pouco antes de morrer em junho de 1963, é considerada sua carta-testamento, em que reafirma sua vontade de o Concílio Vaticano II erigir novas bases para as relações da Igreja com o Judaísmo e com as religiões não cristãs.
Cinquenta anos mais tarde, o trono de São Pedro é ocupado por um Sumo Pontífice que não só acredita nesta frase, mas que a põe em prática. Francisco é o primeiro Papa a ter vivido intimamente a experiência do diálogo inter-religioso.
Seus antecessores tiveram momentos impactantes: a primeira visita a uma sinagoga – João Paulo II, ao Grande Templo de Roma, em 13 de abril de 1986 –; os Encontros de Assis – João Paulo II reuniu mais de 200 representantes de diversas tradições religiosas em 27 de outubro de 1986 e, 25 anos mais tarde, Bento XVI organizou a Jornada da Paz com 176 líderes religiosos –; viagens a Israel – Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI fizeram visitas históricas à Terra Santa.
Por mais significativos que tenham sido tais gestos, foram ações isoladas. Já Jorge Maria Bergoglio tem três décadas de intensa vivência dialogal. Acompa-
nhou celebrações judaicas – Selichot, Rosh Hashaná, Chanuká, Pessach, Iom Hashoá. Dirigiu serviço de recordação da Kristallnacht na Catedral Metropolitana de Buenos Aires. Encabeçou petição exigindo punição dos responsáveis pelo atentado à Amia (1995). No Congresso Judaico Latino-Americano teve vários encontros com jovens judeus do programa Novas Gerações. Presidiu a Comissão de Diálogo Inter-Religioso (Codin). Manteve com o Rabino Abraham Skorka um programa de televisão, Bíblia, Diálogo Vigente, e, juntos, publicaram o livro Sobre o Céu e a Terra, em que abordam, num diálogo franco e aberto, as questões centrais das duas religiões.
Antes de sua posse, Francisco deu uma demonstração clara de um novo tempo: convidou o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, para a cerimônia, entregando-lhe ainda uma carta em que afirma desejar “vivamente contribuir com o progresso que as relações entre judeus e católicos conheceram a partir do Concílio Vaticano II, com espírito de renovada colaboração”.
Em que ponto estamos?
Estamos encerrando o ciclo de celebrações do cinquentenário de convocação do Concílio e nos preparando para, em 2015, festejar meio século de vigência de Nostra Aetate. Sabemos hoje que a resistência episcopal foi ferrenha e que, não fosse o falecimento de João XXIII, talvez não se conseguisse chegar a um acordo. Mas a vontade expressa de um papa morto não podia ser contrariada e o documento conciliar foi aprovado.
Surgem então perguntas prementes: Aonde vamos? Quão duradouro é o caminho percorrido? Cinquenta anos foram capazes de reverter os danos provocados por dois mil anos de catequese cristã?
Os avanços são inegáveis, a começar pela Declaração Nostra Aetate. O opúsculo de apenas cinco páginas dedica o 4° item à “Religião Judaica” e, em 54 linhas, impõe uma guinada radical na percepção dos judeus.
Nostra Aetate parte do princípio de que todos os seres humanos têm a mesma origem e põe fim ao dogma segundo o qual “fora da Igreja não há salvação”. Reconhece a origem judaica do Cristianismo e aconselha o conhecimento mútuo através do diálogo e do estudo das fontes comuns.
O avanço mais corajoso da Declaração é a eliminação da acusação de deicídio, que justificou a matança indiscriminada de populações judaicas ao longo da história. Recomenda explicitamente que os judeus não sejam
mais apresentados como malditos, e afirma que a Igreja “reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens e deplora todos os ódios e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu”. Declara-se contra “toda e qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião”.
Diante de afirmações tão explícitas, seria esperado que todos os 1,2 bilhão de católicos do mundo sepultassem definitivamente antigos preconceitos. No entanto, pesquisas revelam que a maioria dos cristãos ignora que Jesus era judeu ou que textos bíblicos de uso corrente, como os salmos, são judaicos. Frequentemente, a Comissão do Diálogo recebe queixas de homilias proferidas por padres que repetem acusações milenares contra os judeus. Tal despreparo é imediatamente levado ao conhecimento da Arquidiocese para que efetue um trabalho de conscientização do pároco.
Não ignoramos quão difícil é mexer nos textos revelados, embora João XXIII tenha eliminado as Imprecações dos textos pascais ofensivas aos judeus. Mas é fundamental orientar os padres para que contextualizem suas falas quando as alusões são pejorativas. Vários titulares de paróquias já o fazem rotineiramente. Mas são poucos.
Encontros de Escolas Católicas e Judaicas
No campo da educação católica, os progressos permanecem tímidos. Reunidos na ARI para o I Encontro de Escolas Católicas e Judaicas, com a presença de diretores dos quatro colégios confessionais judaicos do Rio e de 14 instituições católicas das mais conceituadas, os dirigentes reconheceram que, embora cientes da importância de Nostra Aetate, nunca a haviam lido. Decidiram então promover o amplo estudo da Declaração, não só entre o corpo docente, mas também em salas de aula e com os funcionários dos diversos setores.
Não sabemos se a decisão foi apenas tópica ou se continua sendo aplicada. O fato é que tais encontros – que privilegiavam diretores, coordenadores e professores – foram realizados semestralmente de 2002 a 2006. A partir de então, e por iniciativa dos próprios alunos que quiseram assumir o protagonismo, acabaram sendo substituídos por seminários, ações sociais empreendidas pelos jo-
O Diálogo Abrahâmico, vens em comunidades carentes e por proque abarca Judaísmo, Cristianismo e Islã, gramas como “Vizinhos de Portas Abertas”, que reúne regularmente alunos do Santo Inácio e do A. Liessen Sholem Aleiganhou substância chem de Botafogo. Os avanços foram tandepois do 11 de tos que, este ano, pela primeira vez, alusetembro de 2001, num nos do colégio católico foram para a Maresforço conjunto de cha da Vida. Em 2014, o projeto deverá ser ampliado.combater a islamofobia. Outras questões ressurgem de tempos em tempos para emperrar a caminhada e nos lembrar que a fluidez do diálogo depende de constantes acertos de rotas. Entre eles, a canonização de Pio XII, situação controversa face à sua atuação durante o Nazismo. A falta de declarações contundentes contra as perseguições; a omissão em fornecer diretrizes claras para os católicos visando proteger e salvar vidas, e até a simpatia para com Hitler e seu regime são alguns dos argumentos contrários à sua santificação. Por outro lado, correntes da Igreja garantem que ele teria lutado nos bastidores, salvando mais gente do que se assumisse abertamente seu repúdio à ação hitlerista. Não obstante os prós ou contras, a grande pergunta é se o Vaticano arquivará definitivamente o projeto. O anúncio da canonização dos papas João XXIII e João Paulo II, posteriores a Pio XII, traz esperanças neste sentido. O Caso Finally, da França, descortina outro drama: o destino de milhares de crianças judias entregues por seus pais a instituições ou famílias católicas. A grande maioria delas nunca foi devolvida a seus parentes e nem sequer sabe de sua origem. As lideranças judaicas esperam que o Papa recomende aos arquivos paroquiais que revelem os nomes de crianças e jovens batizados durante a II Guerra Mundial de modo a permitir o conhecimento de sua ascendência. Na mesma direção, espera-se a abertura dos arquivos do Vaticano para trazer luz à ação da Igreja nos seus momentos mais obscuros.
E no Brasil, como estamos?
Várias iniciativas surgiram no século XX. A primeira foi a Fraternidade Cristão-Judaica, fundada na França pelo historiador Jules Isaac que inspirou o Papa João XXIII a combater as raízes cristãs do antissemitismo. No Rio, foi constituída em solenidade na ARI pelo Rabino Henrique Lemlez’l e pela Irmã Dieudonné, da Ordem de Sion, as
duas instituições-pilares da Fraternidade. As reuniões regulares, desde 1952, se reproduzem até hoje, revertendo em ações práticas como os encontros de professores municipais de ensino religioso, que reuniam na ARI, no Dia do Professor, cerca de 200 docentes vindos de todo o Estado do Rio, seminários anuais, a construção de suká na PUC ou a revitalização da Biblioteca do Diálogo.
A Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico Judaico (DCJ), criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1981, com sede em São Paulo, é dirigida por um representante de cada comunidade. Atualmente, em nível nacional, são o Cônego José Bizon, da Casa da Reconciliação, e o Rabino Michel Schlessinger, da Congregação Israelita Paulista – CIP.
Instalado na ARI sob a direção do Rabino Roberto Graetz, o DCJ do Rio conta com a liderança religiosa de Padre Jesus Hortal, ex-Reitor da PUC-RJ, e dos Rabinos da ARI, Sérgio Margulies e Dario Bialer. Mas em ambas as comunidades as lideranças laicas desempenham papel importante, principalmente na organização de seminários, reuniões mensais e encontros regulares com jovens do ensino médio e universitário. A destacar a ação de Rafael Azamor, que produziu um livro didático sobre o Diálogo Inter-religioso para seus alunos do Liessen; o projeto Co-Exist, apresentado pelos jovens do Hillel em espaços diversos; as respostas de Jeanette Erlich a perguntas sobre Judaísmo no site Amai-vos, e do veterano Leon Mayer, da B’nei Brit, cuja insistência impulsionou a recém-fundada Juventude Inter-religiosa do Rio de Janeiro – JIRJ –, que congrega, neste primeiro momento, jovens judeus, católicos e muçulmanos.
No histórico da Fraternidade e do DCJ não podemos deixar de mencionar (que nos desculpem os não citados por falta de espaço!) nomes como os paulistas Rabino Fritz Pinkus, da CIP, Hugo Schlesinger e Padre Porto – autores de numerosas obras sobre o diálogo –; Rabino Henry Sobel, que projetou o diálogo em nível nacional. No Rio, Rabino Lemle, que já praticava o diálogo no seu dia a dia – não raras são as imagens dele ao lado do presidente Juscelino Kubitschek e de D. Helder Câmara –, ou o Rabino Alejandro Lielenthal. No plano internacional, cabe lembrar
Quem está no Diálogo a ação permanente do Congresso Judaico sabe que as situações mais delicadas podem Mundial, American Jewish Committee, B’neiBrith, Anti-Defamation League. No campo regional, o Congresso Judaico Laser contornadas tino-americano e, no nacional, a Conib. quando enfrentadas O Diálogo Abrahâmico, que abarcom sinceridade e com ca Judaísmo, Cristianismo e Islã, ganhou o desejo de priorizar substância depois do 11 de setembro de 2001, num esforço conjunto de combaaquilo que nos une ter a islamofobia. Quando jovens muçulao invés do que o manos foram convidados a participar dos que nos separa. nossos seminários, surgiram receios de confrontos ou hostilidades que na prática não se verificaram. Pois quem está no Diálogo sabe que as situações mais delicadas podem ser contornadas quando enfrentadas com sinceridade e com o desejo de priorizar aquilo que nos une ao invés do que o que nos separa. Sintomática deste entendimento foi a postura do Sheik Abdo, na primeira vez que participou de celebração inter-religiosa na ARI, juntamente com rabinos, padres e o Cardeal D. Eusébio Scheid. Ele pediu, antes de entrar na sinagoga, permissão para fazer suas abluções, numa demonstração de respeito ao adentrar em local sagrado. Finalmente, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) foi criada em 2007 por umbandistas e candomblecistas, em resposta a ataques e depredações constantes. Solidária na luta contra todas as formas de preconceito e discriminação religiosa, a ARI, que já era fundadora do Diálogo Interétnico (judeus, afrodescendentes, ciganos e indígenas), aderiu ao movimento e atraiu os demais parceiros. Hoje, a CCIR conta com a adesão de praticamente todo o espectro religioso que compõe a diversidade brasileira – católicos, protestantes, judeus e muçulmanos, candomblecistas e umbandistas, hare krishnas e budistas, espíritas, wiccanos, ciganos, ateus e agnósticos. A ARI, mais uma vez, deu provas de que os princípios do Judaísmo Liberal de pluralismo e inclusão se estendem a todos. Convidou para a abertura do seminário do DCJ, na sinagoga, representantes de Candomblé, Umbanda e Espiritismo juntamente com o recém-empossado Arcebispo do Rio de Janeiro, D. Orani Tempesta, rabinos, padres e sheiks.
Aonde vamos?
O milagre brasileiro do respeito à diversidade precisa ganhar visibilidade e tornar-se exemplo para o mundo.

Não há dúvidas de que o avanço e a popularização dos direitos humanos e do diálogo trazem novo alento àqueles que vêm se dedicando ao trabalho de desconstrução de preconceitos milenares. Da mesma forma que Nostra Aetate revolucionou as relações da Igreja com o Judaísmo, um encontro internacional convocado pelo Papa sacramentaria a ampliação do diálogo inter-religioso para além das religiões abrahâmicas, abraçando os diversos credos que formam o riquíssimo mosaico religioso e espiritual da humanidade.
Enquanto em todos esses anos de diálogo seguimos o lema de Jules Isaac, “Transformar a Cultura do Desprezo em Cultura do Apreço”, o Papa Francisco introduz a Cultura do Encontro. De fato, o Desprezo só pode se transformar em Apreço por meio do Encontro, quando o compartilhar experiências comuns – rituais, teológicas ou do simples dia a dia – nos mostra como o outro age, pensa, o que sente. No abraço do encontro, a condenação de todas as formas de discriminação e a esperança de um mundo melhor, sem ódios nem preconceitos.
Pois nosso sonho vai além da profecia de Isaias (Is 65:25), quando não apenas “o lobo e o cordeiro se alimentarão juntos, e o leão comerá palha como o gado”, ou além do discurso de Martin Luther King – “todas as crianças de Deus, homens pretos e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar”. Nossa esperança é que homens e mulheres, independentemente de seu credo, sejam capazes de falar sobre suas visões de mundo, sobre as perguntas inerentes ao ser e o não ser, com paixão, mas sem exaltação, porque teremos aprendido todos que as perguntas para os enigmas da condição humana – o que é a vida? Qual o sentido da morte e a finalidade da vida? De onde provém o sofrimento? Por que advém a gente boa? E a felicidade, o que é? Qual o caminho para alcançá-la? O que acontece depois da morte? Qual o mistério que envolve todas as coisas, vivas ou inertes? De onde viemos? Para onde vamos? – são iguais para todos e continuam sem resposta.
Diane Kuperman é jornalista, PhD em Comunicação Social, conselheira da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro-ARI e ativista dos diálogos inter-religiosos.