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Any Dana
o Padeiro do esPírito
Após ser demitido do diário ídiche Iídiche Volkstzeitung em 1932 por participação em movimento de protesto e greve, Uri Zwerling passou a se dedicar à atividade que se transformaria em sua verdadeira vocação: a de ambulante vendedor de livros.
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Uri Zwerling, nascido em 1892 na Ucrânia.
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Dentre os inúmeros imigrantes que chegaram ao Brasil nas três primeiras décadas do século XX iremos ressaltar um em especial, o nosso klienteltshik1 das ideias.
Uri Zwerling, filho de Chalom e Débora Ester Zwerling, nasceu no dia 8 de setembro de 1892 em Lwow, atual Ucrânia. Lá estudou o ofício da linotipia2 e ingressou no mercado de trabalho em um jornal ídiche local e numa livraria. Casou-se em 1920 com Zelda, concebendo Rachel, sua primogênita. Com intuito de buscar sustento para sua família percorreu o mundo até que desembarcou no porto carioca no ano de 1927.
Começou a trabalhar em um diário ídiche intitulado Iídiche Volkstzeitung, ou Gazeta Israelita, o que lhe possibilitou recurso financeiro para trazer para junto dele sua esposa e a filha. Em 1932 foi demitido por ter participação direta no movimento de protesto e greve, pois era diretor da Associação Profissional Judaica de Artes Gráficas, uma espécie de sindicato judaico dos trabalhadores gráficos.
Uri passou a se dedicar à atividade que se transformaria em sua verdadeira vocação: a de ambulante, só que sua mercadoria se caracterizava pelo ineditismo pois, ao invés de ser mais um ambulante comum, ele vendia livros.
Primeiramente com um triciclo e mais tarde uma caminhonete, Uri percorria as ruas da Capital Federal em busca de fregueses e principalmente em busca da formação de novos leitores. Oferecia diversas formas de incentivo
ao hábito de ler: trocava, emprestava, alugava, vendia, enfim, proporcionava o acesso à leitura para todos. Uma de suas clientes era Alzira Vargas, filha de Getúlio. Encontramos uma publicação no Diário Oficial da União, p. 38, Seção 1, fornecendo a concessão de licença para a troca do triciclo para o caminhão, além de pedir prioridade neste ramo, datada de 27 de agosto de 1932, na qual está escrito: “Pedido de garantia de prioridade: Uri Zwerling, para “um novo método e modelo de veículo para alugar, vender, trocar, comprar livros, revistas, jornais, notas para instrumento de música, estampas e outros produtos da imprensa e pintores.” – Deferido (DOU, 1932).
Mais adiante, ele abandonou o comércio ambulante e se fixou em dois estabelecimentos, ambos ligados ao meio jurídico passando a concentrar também somente obras com a temática jurídica.
Zevi Ghivelder em sua obra intitulada As Seis Pontas da Estrela (1969) narra com humor, através do olhar de um judeu prestamista, o modus vivendis da comunidade judaica carioca e seus personagens “se mostram munidos quanto à preservação do sionismo” (Igel,1997, p. 208), contudo, cada um com o seu ponto de vista.
O autor consegue “expor as várias modalidades correntes no meio judaico sem resvalar para o panfletismo” (Ibidem). A narrativa se inicia focada a partir das observações feitas por Marcos Grinman, após o falecimento de sua mãe, quando assume a relojoaria do pai. Ao decorrer da narrativa aparecem personagens e histórias verdadeiras, porém com a utilização de pseudônimos; no caso de Uri é atribuído a ele o nome de Ariel Stig.
Ao se referir a Ariel o protagonista Jankiel Grinman, pai de Marcos, denota uma inveja devido à diferença de seus ofícios e da maneira diversificada com a qual é tratado pelos diversos clientes. Ambos trabalhavam na Rua do Catete em frente à antiga Faculdade de Direito, atual Uerj.
Ao se referir ao triciclo de Uri o iguala ao dos padeiros, porém “quando ele abria sua larga tampa de metal, aparecia um engenhoso dispositivo de madeiras e tábuas perfuradas que em poucos minutos se transformavam em prateleiras cobertas por livros novos e usados, além dos que ficavam em pilhas dentro do baú montado sobre rodas” (p.47). Cabe ressaltar que era um dos únicos barbados no Rio daquele tempo, o que ocasionava motivo de atração e curiosidade entre os transeuntes, que “ostentava com tanto orgulho e desinibição o fato de ser judeu” (p.48) e, de acordo com Jankiel, esta ostentação estava atrelada ao fato de ele não ser o judeu da prestação e sim somente o judeu. Essa independência proporcionava – também para retrucar um possível deboche de um estudante com o argumento: “Se você encontrar aquele meu patrício que se converteu ao catolicismo, o Jesus Cristo, diz que eu mandei um abraço” (Ibidem). Este apanhado de características o transformava em um personagem popular nas ruas da Capital Federal. Sem dúvida esta obra serve como importante registro histórico-ficcional a fim de retratar a inserção dos judeus no seio da sociedade brasileira naquela época.
Falbel (2009) nos apresenta outra obra que presta uma homenagem ao Uri. De autoria de Shebatai Karakuschansky, Aspectn fun em idischen Lebn in Brazil – Aspectos da vida judaica no Brasil (n/d), publicada em ídiche, nos apresenta um retrato personificado de nosso livreiro conhecido por todos como “o judeu com a barbicha” (p.19), que decidira levar livros de casa em casa. E se as pessoas demonstrassem certo estranhamento devido à mercadoria, Uri perguntava: “Por que estranham? Somente bananas, laranjas, frangos, trapos pode-se oferecer de casa em casa? E por que não livros? Não pode ser alguém um ambulante de livros?” (Ibidem). O texto perpassa por vários momentos da biografia de Uri, que, segundo o autor, não era “apenas um vendedor de livros nas faculdades, porém um apaixonado pelo que faz, provocando a admiração de estudantes e professores, devido ao visível amor à profissão e sem qualquer preocupação em enriquecer” (Idem, p.20).
A atividade livreira advém da época medieval, quando “a partir do século XIII o livro foi ganhando rótulo de mercadoria” (Oliveira, 1989, p.224). Temos os mais varia-

O triciclo de Uri Zwerling e o seu baú de livros.
dos tipos de livreiros, desde os grandes empresários até os pequenos mascates, que devido à afeição dos franceses receberam o nome de colporteur3. Estes, sem dúvida, além de alimentar o comércio ambulante foram os responsáveis pela difusão da literatura, tanto na heterogeneidade das obras quanto na do público leitor.
Outra coincidência que aproxima o nosso livreiro de outros livreiros de épocas pregressas é a aproximação com estudantes de Direito e os tribunais, onde obtemos desde o século XV em diante livrarias de editores clássicos que se revezam dentro do palácio de justiça parisiense. No Brasil, os primeiros cursos superiores foram os de Medicina e Direito.
A Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, com o intuito de promover o ensino livre do Direito, teve sua inauguração oficial no dia 11 de maio de 1935 na Associação Cristã de Moços situada no centro da cidade do Rio de Janeiro e, passado um tempo, ela se transferiu para a Rua do Catete n° 243. E foi no andar térreo da faculdade que Uri estabeleceu sua livraria destinada a obras jurídicas. “O Uri era um homem que não tinha atrito com ninguém, era de uma amigabilidade extraordinária e eu me tornei um enorme amigo dele” (Lira, 2011).
Inserido neste contexto político-ideológico, Uri “obteve a percepção de que o povo brasileiro, devido às interrogações que lhe faziam e por comentários ouvidos, desconheciam os judeus e sua história” (Fischman, 2008). Foi então que em 1934 sentiu a necessidade de editar uma obra que apresentasse aos brasileiros a importância dos judeus na formação da história do Brasil e suas contribuições, inserções e os esforços dos semitas junto ao povo brasileiro. Para isso contou com a colaboração de: Afrânio Peixoto, Agrippino Grieco, Arthur Ramos, Evaristo de Moraes, Gilberto Freyre, Rodolfo Garcia, Roquette Pinto, Solidônio Leite Filho e Paulo Prado.
A abertura que Uri teve em acessar essas pessoas estava no prestígio alcançado no meio intelectual jurídico nacional, embora reconhecesse a divergência de pensamento que obtinham os autores, mas que, mesmo assim, não hesitaram em colaborar; o próprio Uri agradece utilizando-se da ideia de “generosidade nunca desmentida do povo deste grande paiz” (Zwerling, 1936, p.7) ao prefaciar a sua obra.

Em 27 de agosto de 1932, Ur Zwerling recebeu a licença para trocar o triciclo por um caminhão.
Vale ressaltar que o escritor Humberto de Campos, se estivesse vivo, pois morrera em 1934, teria colaborado certamente com o projeto. Em sua obra póstuma, Sepultando os meus Mortos, aparece uma crônica intitulada Carta a Uri Zwerling. Esta carta foi publicada primeiramente em 1933.
O autor, nesta missiva, tece elogios rasgados a Uri e à sua profissão onde parabeniza-o porque “em vez de comprar bebidas alcoolicas para envenenar os operários sem pão, ou de arrecadar com a mão do macaco ou com a tromba do elefante4 o salário da cozinheira, as economias da patroa ou o ordenado do contínuo de Ministério, preferiu espalhar livros pelos bairros pobres ou afortunados da cidade” (Campos, 1961, p.119).
Devemos atentar ao fato de que a obra Os Judeus na História do Brasil foi editada em 1936, poucos meses antes de Getúlio dissolver os partidos políticos e movimentos sociais e decretar seu governo autoritário em novembro de 1937.
Foi também no ano de 1937 que Uri foi preso e fichado pela Polícia Civil do Distrito Federal, pois no dia 10 de março foi encontrada uma granada de mão nos arredores do Palácio do Catete. Ao declarar que desconhecia o objeto, assim como o dono, foi liberado.
A segunda vez que Uri teve que comparecer à polícia para esclarecimentos foi em 14 de maio de 1942, durante a vigência do Estado Novo, e dessa vez o motivo era sua filiação à Biblioteca Israelita H. N. Bialik e também sua participação como sócio da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro.
Uri gostava tanto do Brasil e o País havia lhe acolhido tão bem que decidiu formalizar sua naturalização em 1951. Apesar de se considerar e ser brasileiríssimo, nunca deixou de ressaltar a que povo pertencia e, por isso, resolveu aos 74 anos de idade fazer aliá5 junto com sua família no final do ano de 1966. Cinco meses antes de viajar, no dia 8 de julho de 1966, foi condecorado através da Resolução 182-66 com o Título de Cidadão do Estado da Guana-
bara concedido pelo deputado Paulo Duque. Viajou para Israel com sua mulher em dezembro de 1966 e veio a falecer em 31 de março do ano seguinte deixando sua esposa Zelda e três filhos: Rachel, Sara e Chalom.
No prefácio de Os Judeus na História do Brasil (1936) Uri reconhece o mérito que teve ao idealizar tal projeto, porém aponta a dificuldade que teve em torná-lo viável. E completa que este é um livro que “ainda faltava na literatura do paiz e que vem fazer justiça ao elemento judeu como factor da realidade brasileira, impondo-se como obra que, sem qualquer laivo de paixão partidária, apenas restabelece a verdade histórica. Agora que entrego, finalmente, este livro ao público, não seria sincero se escondesse o grande júbilo de que me acho possuído. Cumpre-me apenas, agradecendo ao público, estender esse agradecimento aos illustres intellectuaes que o collaboraram, incontestavelmente, seus verdadeiros autores” (p.7).
Em suma, todos os autores que contribuíram para que o desejo de Uri fosse concretizado, todos sem exceção, procuraram demonstrar o quanto os judeus, “a partir da descoberta cabralina, estão ligados umbilicalmente à formação do país desde os seus primórdios e cuja contribuição ímpar” (Falbel, 2009, p.9) foi iniciada com os marranos. Todos os ensaios explanam acerca da contribuição judaica como fator decisivo para o desenvolvimento econômico e social da sociedade brasileira seiscentista até os anos 30 do século XX, com o objetivo de demonstrar que os judeus estão presentes como parcela ativa em todos os ciclos da história econômica brasileira. E também a fim de desfazer o estereótipo do judeu, a ideia do tipo judeu que era disseminada pelos diversos vieses literários. Ademais, a obra tem por finalidade expor a grande contribuição dada por este povo que, sem dúvida, constituiu papel fundamental como elemento formador da nossa nacionalidade.
Dentre os nove ensaios, vale ressaltar o último, intitulado Israel Continuará, de Afrânio Peixoto, que enaltece a perseverança do povo judeu ao longo da história do mundo. Ele atribui duas condições admiráveis para tal: “A fé em si e o ódio dos outros” (p.135). Percorre todos os momentos difíceis pelos quais o povo passou, porém sempre acompanhado da solução encontrada. Ao final ele constata que a “inveja, a estupidez, o ódio, hão de continuar... e Israel continuará” (p.137). O mais emocionante desse texto é pensarmos que ele foi escrito em 1936, ou seja, doze anos antes da Declaração do Estado de Israel, que Uri não pôde presenciar e que nos valha como exemplo toda vez que haja uma eminente ameaça contra o nosso Estado e povo.
Sendo assim, o desejo de Uri, de que seu livro esclarecesse ao povo brasileiro a importante participação do povo judeu na formação do Estado Nacional brasileiro, foi cumprido e, principalmente, 77 anos após a sua primeira e única edição, o livro foi reeditado e alocado em todas as bibliotecas das universidades em âmbito federal a fim de continuar esclarecendo e podendo ser utilizado para futuras pesquisas.
Fontes e Bibliografia
Fontes Primárias
Diário Oficial da União. Pág. 38. Seção 1. Concessão de Prioridade 27/08/1932. Disponível na internet no site: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2219440/dou-secao-1-27-08-1932-pg-38 (consultado em junho de 2011) Diário Oficial da União. Pág. 4. Seção 1. Declaração de naturalização 21/11/1951.
Disponível na internet no site: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2817280/dousecao-1-21-11-1951-pg-4 (consultado em junho de 2011) Diário da Assembleia Legislativa. Pág. 4. Seção 2. Resolução 182-66. 8/07/1966. Fischman, Sara. Memórias da filha de Uri: depoimento. [9 de setembro, 2008]. Rio de Janeiro: Depoimento concedido a Any e Ian Dana. Fundo Polícia Política; Diversos 31, pastas 1 e 2. Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro. Fundo Polícia Política; Diversos 31, pasta 6, prontuário n° 15572. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Lira, J. R. Pereira. Memórias da antiga Faculdade de Direito: depoimento. [25 de junho, 2011]. Rio de Janeiro. Depoimento concedido a Any Dana. Processo de Naturalização MJNI, n° 36670/1950. Arquivo Nacional
Bibliografia
Campos, Humberto de. Sepultando os meus Mortos. São Paulo: Mérito, 1961. Falbel, Nachman. Uri Zwerling e a literatura antissemita no Brasil. Rio de Janeiro, 2009. Ghivelder, Zevi. As Seis Pontas da Estrela. Rio de Janeiro: Bloch, 1969. Igel, Regina. Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997. Oliveira, José Teixeira de. A Fascinante História do Livro. De Gutenberg aos nossos dias.
Rio de Janeiro: Kosmos, 1989. Zwerling, Uri (ed.). Os Judeus na História do Brasil. Rio de Janeiro: Uri Zwerling, 1936.
Notas
1 Vendedores ambulantes que iam de porta em porta a fim de vender suas diversas mercadorias, mascates. 2 Artesão que trabalhava com a máquina de composição tipográfica. 3 Palavra de origem francesa, também usada na língua inglesa como: colportor ou chapbook, que significa levar no pescoço. Este nome foi dado pois os colportores costumavam levar os escritos embaixo das roupas ou em uma bolsa pendurada no pescoço. 4 Alusão às lotéricas e ao jogo do bicho. 5 Subida. Termo utilizado quando alguém decide morar em Israel.
Any Dana, historiadora carioca atualmente reside em Israel e foi responsável pela reedição da obra Os Judeus na História do Brasil, projeto que inseriu a obra em todas as universidades federais do País.
