
5 minute read
Paulo Geiger
gerações
(Este artigo foi escrito há 25 anos para o Boletim da ARI e não perdeu a atualidade. Reeditado aqui não por preguiça para escrever novo texto, mas por expressar, ainda hoje, uma ideia que, na opinião do autor, merece continuar a ser compartilhada, e discutida, a cada geração. E 25 anos é o período de uma geração.)
Advertisement
Écomum visualizar a ideia de ‘preservação do judaísmo’ através dos séculos e de gerações inteiras de judeus como uma espécie de sujeição dos judeus à obrigação – por questões de fé, de tradição, de responsabilidade histórica e até sem percepção de qualquer ‘porquê’ – de manter vivo o acerto multimilenar legado por nossos antepassados.
Tendemos às vezes a nos vermos como uma espécie de guardiães, servidores, mantenedores dessa ‘entidade’, e a noção de guardá-la, servi-la, mantê-la é como a de proteger um objeto externo a nós, que nos foi confiado para que o passemos adiante, intacto, às gerações seguintes. ‘Intacto’ pode significar também que não o tocamos, ou seja, não o usamos. Servimos a ele, mas ele não nos serviu. ‘Preservar o judaísmo’, nessa ótica, seria evitar que desapareça, e isso é visto como uma responsabilidade, uma missão, quase uma carga, um ônus.
A ideia de proteger o judaísmo (assu siag laTorá: ‘façam uma cerca em volta da Torá’) foi lógica para gerações inteiras que nasceram, cresceram e viveram dentro da prática judaica, nela formaram suas mentalidades, seus conhecimentos e seus comportamentos, e que tantas vezes a viram ameaçada de fora pelas conquistas, pelas perseguições religiosas, pelo antissemitismo, por hegemonias alheias, fossem religiosas, nacionais, econômicas, políticas, sociais ou culturais. Proteger o judaísmo, para essas gerações, era defender um bem inalienável, a essência quase ontológica da própria vida, a base de todas as referências. Era defender aquilo que as servia tanto quanto era servido por elas, e sem o qual perder-se-ia toda noção de pertinência e de identidade. ‘Construir uma cerca’, sim, mas em volta de algo vivo, feito da interação vibrante do judaísmo com os judeus.
Sabemos que essa interação teve múltiplos modelos através da história judaica. A vocação de ‘continuar a ser’ aquele mesmo povo que nasceu de uma vontade explícita e de uma decisão de sê-lo passou necessariamente pela imperativa adaptação, em cada época, às condições mutantes. Ser o mesmo povo com e sem o templo, com e sem soberania nacional, com e sem concentração territorial, com e sem liberdade religiosa, política ou cultural passava, para cada um desses e muitos outros contextos, por soluções diferentes. Os próprios textos normativos básicos do judaísmo, a partir da Torá – Mishná, Guemará, Talmud –, são um exemplo de como a visão do significado do judaísmo passa por interpretações acumulativas, que são as contribuições de gerações judaicas, cada uma em seu contexto.
Cada geração, em cada lugar, em cada momento da história, criava uma forma viva de judaísmo capaz de sobreviver, para que os judeus pudessem vivê-la, se alimentar dela, completar-se com ela, serem homens inteiros. Os que atravessaram o deserto e receberam a Torá, as tribos que se estabeleceram na Terra Prometida para nela realizar a Aliança, os que peregrinavam ao Templo três vezes por ano, os que voltaram da Babilônia para reconstruir o Templo, os macabeus, os que preferiram morrer em Massada, os que estudavam nas academias de Iavne, Sura, Pumbedita e Jerusalém, os judeus de Alexandria, os judeus de corte, os filósofos, médicos e poetas da Idade de Ouro, os judeus dos guetos da Idade Média, os mártires Al Kidush HaShem, os cabalistas, os financistas do início do mercantilismo, os chassidim, os mitnagdim, os falsos messias, os iluministas, os emancipados, os judeus do shtetl, os sionistas, os judeus das comunidades das diásporas, os que se revoltaram nos guetos durante o Holocausto, os chalutzim, os israelenses, todas essas gerações criaram formas diferentes de tentar continuar a ser o mesmo povo, partilhar a mesma identidade. Qual dessas formas seria a expressão verdadeira do verdadeiro judaísmo? Quais as válidas, quais as não? Ou serão válidas todas? Como separar as diferentes formas do conteúdo único e milenar que as engendrou e do qual floresceram?
Nossos pais trouxeram um modelo novo para a sociedade das liberdades, para a dispersão emancipada e univer-
paulo geiger
salista dos novos tempos. Egressos de lugares e tempos de perseguição – e, depois, de Holocausto –, de isolamento dentro de muros judaicos, trouxeram um judaísmo de certezas internas para plantar num terreno de temores e angústias externas. Queriam uma cerca em volta da Torá, para que pudéssemos, as novas gerações, com a Torá, dentro da cerca, nos defender não só de invasores de fora mas também da conquistada liberdade de sair da cerca e esquecer a Torá. Esse é o modelo de comunidade que a geração de nossos pais ou avós construíram.
E, no contexto de nossos tempos, o que deve marcar a atuação da geração judaica de hoje, em sua criação de uma forma que seja a expressão do ‘ser o mesmo povo de sempre’, ou seja, da preservação do judaísmo? A geração atual, até bem pouco tempo, não enfrentava nem reconhecia inimigos externos. Os que existiam (e na verdade nunca deixaram de existir completamente) eram inimigos universais, e não só dos judeus, reconhecíveis por todos, parte de uma luta ideológica contra toda forma de racismo e discriminação. A luta contra o antissemitismo, tendíamos a pensar, não pertencia somente aos judeus, era parte da luta geral pela convivência, pela harmonia, pela soma de todas as diferenças.
Na esteira das liberdades e dessa aparente segurança, a geração atual aprendeu a viver como igual, a não querer, não precisar, ser contra muros de proteção que também sejam de segregação e isolamento. Não quer entrar e sair de cercas para encontrar uma parte de si mesma. Tem o direito – e a consciência de tê-lo – de ser o que é e o que quer ser, e de exercitar esse ser em todos os níveis de sua existência plural.
Para essa nova geração, a prioridade não era defender o judaísmo. Não era empreender uma missão salvadora. Não era construir-lhe cercas externas. Era fazê-lo viver. Não servi-lo, mas fazê-lo servir-nos. O judaísmo de nosso tempo convive com culturas sem fronteiras, com identidades plurais, com comportamentos universalizados, cosmopolitizados.
Recriar o judaísmo para que continue o mesmo – o grande desafio de cada geração – significa trazê-lo de volta para dentro de nós, pois somos, em nosso corpos, mentes e espíritos individuais e comunitários, a única cerca, a única muralha que o protegerá como coisa viva, que o levará para onde estivermos, como parte de nosso ser. Na geração das liberdades e do pluralismo, o judaísmo não é carga nem responsabilidade. É um valor ao qual temos direito por herança, que nos foi preservado para o que tenhamos para nós, e do qual podemos usufruir sem sacrifícios. Então terá sentido todo sacrifício para preservá-lo. E nossas comunidades, nossas instituições, muito mais que a proteção de seus muros, serão o espaço de nossa vivência, de nosso encontro, de nossa criação judaica.

Mipan / iStockphoto.com
