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Rabino Sérgio R. Margulies
em hannah o meu diário
rabino sérgio r. margulies
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Uma menina diferente como qualquer outra...
Era uma menina que, como outras, sonhava e amava sua família. Era uma família como outras, que queria viver em amor e que pertencia a um povo com sua fé. Uma fé como outras, que buscava o respeito aos valores e um vínculo espiritual. Um povo que queria fazer parte de um país, como outros povos que compõem a sociedade de um país. A menina acabou não sendo como tantas outras apesar dos sonhos, da família, da pertinência comunitária, porque o lugar em que vivia não foi para todos que estavam lá um lugar que permitia todos serem como são.
A menina chama-se Hannah. A família, Senesh. O povo, judaico. O país, Hungria. Para aquele povo o país não foi um lugar em que a família Senesh poderia ser como qualquer outra e a menina Hannah uma entre tantas que apenas queria crescer feliz. No fundo, paradoxalmente, a história da comunidade judaica na Hungria foi como a de muitos outros países. Ora a comunidade judaica era bem recebida, ora expulsa; ora com direitos assegurados, ora espoliados, ora aceitos, ora discriminados. Nos anos trinta do século passado a dignidade era definitivamente sepultada. Foram encarcerados como gado e subnutridos como nem o gado o é. Os corpos esquálidos queimados. A fumaça subia ao céu, mas ninguém via. Ou simplesmente fingiam não ver.
Alguns escrevem. Opõem-se aos que fingem não ver. Escrevendo, em meio à incompreensível situação do homem desnudo de sua humanidade, tornam-se diferentes de tantos outros. Escrevendo deixam um legado de humanidade quando o significado desta palavra queimava junto com os corpos Hannah Senesh nasceu em 17 de julho de 1921 e faleceu em 7 de novembro de 1944. Nos curtos anos de sua vida deixou o registro de uma vida longa na sensibilidade da alma conjugada com a firmeza do propósito de resgatar o ser humano de si próprio.
nas câmeras. Escreveu a menina Hannah um diário, cartas e poemas. Nasceu em 17 de julho de 1921. Agora celebramos os noventa anos de seu nascimento. Faleceu em 7 de novembro de 1944. Nos curtos anos de sua vida deixou o registro de uma vida longa na sensibilidade da alma conjugada com a firmeza do propósito de resgatar o ser humano de si próprio.
Que sonhava...
Sonhos movem a vida. Impulsionam o futuro. Acalentam esperança. A alma sem sonhos é como um corpo desidratado. Hannah tinha sonhos singelos, como o de se tornar escritora. Ao relatar seu sonho mostra que não devemos deixar os sonhos armazenados num canto perdido do baú da memória. Cada sonho é singelo enquanto movido pelo desejo de encontrar a plenitude da existência, não para ser melhor que alguém, mas apenas para ser o que se pode e se quer ser. Assim, escreve Hannah que a realização de seu sonho não vem acompanhada do anseio de ser uma pessoa especial.
Em referência a outro sonho – o de se estabelecer na terra de Israel – diz: “Eu farei tudo que estiver em meu poder para tornar este sonho mais próximo da realidade – ou em reverso, tornar a realidade mais próxima do sonho”. Diante do pesadelo da Segunda Guerra escreve: ‘‘Eu sonho e planejo como se nada estivesse acontecendo no mundo, como se não houvesse guerra, destruição, como se milhares entre milhares não estivessem sendo mortos diariamente”.
A mensagem de Hannah faz-se atual e necessária para que não sejamos reféns de fantasias que instigam o nosso afastamento da realidade. Para que não sejamos reféns de discursos que nos desconectam do mundo, prometendo mudar, mas na verdade nos incapacitando de ter uma ação de transformação efetiva. A mensagem se faz atual e necessária para que, de outro lado, não sejamos prisioneiros do fatalismo, não caiamos nas armadilhas que anunciam o apocalipse e que criam bodes expiatórios artificiais para as mazelas da realidade. A mensagem de Sonhos que foram ameaçados... Hannah faz-se atual e necessária para que A jovem Hannah – como tantas outras que crescem – temia por ver seus não sejamos reféns de sonhos comprometidos pelas vicissitufantasias que instigam des da vida. Perdas e ganhos, fracassos o nosso afastamento e sucessos são variáveis imprevisíveis na da realidade. Para que equação da vida. Hannah teve seu golpe ao perder aos 13 anos de idade seu pai. não sejamos reféns Fatalidade. No entanto, não foi a fatade discursos que lidade que ameaçou cercear os voos de nos desconectam do seus sonhos. Foi a segregação. Já na esmundo, prometendo cola “eles não queriam um judeu – eu mudar, mas na verdade ocupando um cargo [na sociedade literária] – o que me dói muito”. Isto não nos incapacitando era fatalidade e sim previsível diante do de ter uma ação de antissemitismo arraigado e de seu uso transformação efetiva. como instrumento de poder. Previsível, mas inimaginável, pois julgamos que os erros do passado não vão se repetir. Inimaginável, pois buscamos um equilíbrio negando os problemas (ou parte deles) que nos cercam. Inimaginável, pois inconcebível a degradação que um ser humano pode submeter o outro. A infância de Hannah acabava precocemente diante do inconcebível advento da Shoá. O futuro demonstrava-se sombrio, pois não iluminado pelos ensinamentos do passado. O futuro se apagava juntamente com a memória: “Eu não posso entender as pessoas; como elas esquecem rapidamente... por que toda esta matança?” A mensagem poética de Hannah Senesh é como um canto pela vida. Hannah, ainda que apreensiva com o futuro, consegue dançar. Dança ao ritmo do canto que ameaça cessar. É como o canto de qualquer Hannah: desde Hannah da Bíblia até uma Hannah conhecida como Anne Frank, que também escreveu seu diário. Ou desde Hannah Arendt em seu estudo sobre o antissemitismo e o totalitarismo, até mesmo de uma Hannah Montana que simplesmente canta o entusiasmo da vida. Pode ser a poesia da vida de qualquer Hannah e de qualquer menina, criança e adolescente. De qualquer um que não quer secar as lágrimas diante do descaso pelo sofrimento e recusa ser insensível ao inconcebível. De qualquer um que não quer ser cúmplice do desprezo pela memória.
E restaurados com fé...
Diante da humanidade que ruía e da vida esmigalhada, que sonho seria possível? Talvez a fé pudesse preencher o vazio dos sonhos fragmentados. Uma fé que clama a Deus e que roga pela resposta humana:
“Meu Deus, meu Deus, Que nunca se acabe O mar, a areia, O barulho das águas O estrondo do céu A reza do ser humano”.
Fé é busca. Não necessariamente encontro. O encontro pode gerar a supremacia de quem se sente iluminado, escolhido ou ungido. A busca reconhece que temos que caminhar e coloca em prova a capacidade humana de não ancorar, seja diante do horizonte a ser desbravado, seja diante das tormentas a serem enfrentadas. Hannah busca:
“Dê um sinal, Ó Senhor, dê um sinal neste semblante Que neste calor, fogo e queima possa Conhecer a pura, eterna fagulha, Do que eu busco: o verdadeiro ser humano”.
As palavras de um livro de oração são como um diário de uma vida.
As palavras de um livro de oração enquanto reza do ser humano e enquanto procura do verdadeiro ser que habita em nós são como um diário de uma vida. Do diário de Hannah – ou nosso –, mesmo que não escrito através de palavras, mas redigido por atos, emoções e pensamentos, serão sempre palavras da vida.
Para dar luz a novos sonhos...
Sonhos adormecidos podem despertar. Assim foi com o sonho judaico de realização sionista através do restabelecimento na terra de Israel de um país soberano. Sonhos podem nos transportar. Assim foi com Hannah Senesh. Deixou o lugar desolado que coibia a existência judaica e rumou para a terra de Israel. As condições precárias daquela terra, então colônia britânica, poderiam caracterizá-la como desolada. No entanto, Hannah não via desolação porque ali enxergava o futuro. O Danúbio de Budapeste estava desolado e o deserto de Judá encantador, o vale do Reno estava desolado e o vale [Emek] de Jezreel inspirador.
“Da onde vem a nova luz e voz, Da onde vem a retumbante canção à mão? Da onde vem o novo espírito e a nova fé? De você, fértil Emek, de você, minha terra.”
Royce DeGrie / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 13


Hannah Senesh uniu-se aos partisans que lutavam contra os nazistas na Europa.
Em Israel, Hannah encontrou a chance de realizar algo que fosse transcendente e trabalhou para atingir metas que correspondessem aos milenares anseios do povo judeu. Assim, mesmo a pequena terra de Israel era grande o suficiente “para trazer a luz dos eternos valores humanos, a luz de Deus”.
Quando nos resignamos diante das circunstâncias e nos sentimos impotentes para alterar o rumo da vida, a jornada de Hannah vem à tona como referência da força transformadora. Embora a história tenha feito dela uma heroína, não era e não pretendia ser. Por isto torna-se exemplo factível de busca por um sentido para a vida, em que a realização pessoal não é à expensas da dedicação aos outros, tal como a conquista particular – seja de um indivíduo, seja de um povo – pode ser acompanhada pela conquista de todos. Antítese do individualismo e hedonismo contemporaneamente tão difundidos e assimilados.
Sem abandonar os que ficaram...
Alguns anos após ter se estabelecido em Israel, Hannah se junta aos partisans que lutavam contra os nazistas na Europa. Preocupava-se com o sofrimento dos que naquele continente permaneciam com a vida ameaçada. Entre eles sua mãe a quem já aos 12 anos fez a seguinte dedicação como uma oração:
“Que haja agradecimento em seu coração E nos seus lábios uma prece, Quando quer que seja escutada a mais linda palavra: Mãe”.
E a quem dedica um de seus últimos poemas escrito já na prisão da Gestapo onde estava após ser capturada em sua missão:
“Não sei o que dizer – somente isto: Um milhão de obrigados, e perdoe-me se puder. Você sabe tão bem porque palavras não são necessárias”.
A poetisa que registra seus sentimentos através da palavra afirma que palavras não são necessárias. Talvez reconhecesse o quanto são inócuas as palavras que não ensejam ação e o quanto são limitadas as palavras para expres-
sar a profundeza do sentimento humano.
Ao pautarmos as decisões e os objetivos de vida urge que uma pergunta seja acrescentada: quem está conosco, quem deixamos para trás e queremos trazer de volta? Quando tantas palavras proliferam de modo irrestrito pelos vários meios de comunicação emerge a questão: será que são necessárias e o que é necessário para que estas palavras sejam realmente significativas?
No enfrentamento da batalha da vida.
Mesmo presa, torturada e condenada pelos nazistas, Hannah transmitiu entusiasmo para outros prisioneiros exortando-os a não se abaterem. Hannah esteve sempre pronta para os enfrentamentos, pois sabia já em seus quinze anos de idade que a mais difícil batalha é lidar consigo própria. No fundo esta é a batalha de todos nós. Enquanto dispostos a enfrentar esta batalha, nenhuma vida cessa. Nenhum diá-
Sonhos adormecidos rio termina. Nenhuma poesia finda. Nepodem despertar. nhuma luz perde seu brilho. Assim foi com Hannah “Há estrelas cuja radiância é visível Senesh. Deixou o lugar na terra embora já estejam extintas há desolado que coibia muito tempo. Há pessoas cujo brilho cona existência judaica e tinua a nos iluminar embora não mais esrumou para a terra de tejam entre os vivos.”
Israel. As condições Estas palavras de Hannah se apliprecárias daquela terra, cam ao legado que ela própria deixou, então colônia britânica, aos legados que dispomos receber como poderiam caracterizá- exemplos de vida e ao legado que trans-la como desolada. No mitimos. entanto, Hannah não via Nota: As citações e traduções livres adapdesolação porque ali tadas por este autor são extraídas do livro enxergava o futuro. Hannah Senesh – Her Life and Diary (NY, Schoken Books, 1971). Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
O que é necessário para que as palavras sejam realmente significativas?
Slavenko Vukasovic / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 15

