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Ilana Feldman
david perlov: fragmentos de uma traJetória
ilana feldman
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Cineasta brasileiro nascido no Rio de Janeiro, criado em Belo Horizonte e São Paulo, e, na idade adulta, radicado em Israel, David Perlov foi um pioneiro do cinema moderno israelense, tendo sido o único cineasta a já ter recebido, em 1999, o Israel Prize (a maior honra concedida pelo Estado de Israel) por sua contribuição à cultura.
Ainda não muito conhecido do público brasileiro, o cinema de David Perlov, em especial seu Diário 1973-1983, tem sido exibido e homenageado em festivais de cinema por todo o mundo desde que, em 2005, o Centre Georges Pompidou, em Paris, dedicou-lhe a mostra “Chronique israélienne d’un cinéaste né au Brésil”. Em 2011, com a realização da retrospectiva David Perlov: epifanias do cotidiano na Cinemateca Brasileira e no Centro da Cultura Judaica em São Paulo e no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, em que, pela primeira vez, vários de seus filmes são exibidos fora de Israel, esse panorama começa a mudar.
Muito antes da conquista do reconhecimento e da legitimação oficial, David Perlov inaugurara em Israel uma filmografia singular, caracterizada pela tensão entre o público e o privado, o cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva do século XX e sua fascinante jornada pessoal, marcada (no pleno sentido de uma cicatriz) por deslocamentos geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento. “Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá”, afirma Perlov citando uma canção de Odetta, enquanto observa, através da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil, passantes em uma rua quieMuito antes da conquista do reconhecimento e da legitimação oficial, David Perlov inaugurara em Israel uma filmografia singular, caracterizada pela tensão entre o público e o privado, o cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva do século XX e sua fascinante jornada pessoal, marcada (no pleno sentido de uma cicatriz) por deslocamentos geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento.
Imagens gentilmente cedidas por Mira Perlov
Perlov: “Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá.”
ta de São Paulo. Essa passagem, presente no primeiro capítulo de seu Diário 1973-1983, talvez esteja entre as mais expressivas de sua obra.
Para Uri Klein, crítico do jornal israelense Haaretz e notório ex-aluno do próprio David Perlov no curso de Cinema da Universidade de Tel Aviv, da qual Perlov fora professor, os seis capítulos que compõem Diário 1973-1983 se afirmam como a obra mais importante da história do cinema israelense, assim como uma das mais expressivas criações culturais do país. Entretanto, se David Perlov é hoje consagrado pela crítica e seu média-metragem, Em Jerusalém (1963), ganhador de um prêmio no Festival de Veneza, valeu-lhe o título de pioneiro do cinema moderno israelense, sua trajetória, iniciada no Brasil em 1930 e interrompida em Israel em 2003, pode ser associada à imagem de uma árdua e inconformada travessia, em um árido e pedregoso deserto.
Escrevendo e inscrevendo com sua câmera imagens marcadas pela liberdade, pelo questionamento político, pela seletividade do olhar, pelo engajamento no cotidiano, pela sensação de estranhamento e, sobretudo, pelo amor aos seres filmados, próximos ou distantes, conhecidos ou anônimos, estranhos ou familiares, a obra de Perlov pode ser considerada, no melhor dos sentidos, “caligráfica” e “amadora”. Em um país que escolheu como lar, escolha carregada de sonhos, mas também de frustração e ativo inconformismo, sua família é seu povo primeiro.
Olhar estrangeiro
Judeu laico, filho de um mágico itinerante e de mãe iletrada, David Perlov nasce no Rio de Janeiro em 1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte, sendo criado, junto com seu irmão, pela mãe e por Dona Guiomar, espécie de mãe de criação, filha de escravos e fervorosamente protestante – cujas superstições Perlov buscará, em seus diários filmados, enfrentar. Aos 10 anos muda-se com o irmão para a Vila Mariana, em São Paulo, onde passa a viver com o avô de origem chassídica e natural de Safed, abandonando uma infância sofrida e nada protegida. Entre os estudos em um colégio estadual e as viagens de bonde, Perlov dedica-se ao desenho e à militância no movimento juvenil sionista socialista Habonim Dror, onde conhece Mira, que será sua companheira por toda a vida e também produtora de Diário 1973-1983.
Tendo sido no Brasil aluno de Lasar Segall, de quem, aliás, Mira Perlov fora modelo, Perlov emigra para Paris em 1952, com apoio financeiro da Agência Judaica, para realizar informalmente seus estudos na Escola de Belas Artes francesa. Entretanto, após a impactante experiência de ter assistido por acaso a Zero de conduta (Zéro de Conduite, 1933), de Jean Vigo, e nada contente com a guinada abstrata da pintura, Perlov abandona os pincéis (embora continue dedicado a uma intensa e bela produção de desenhos) e se aproxima da Cinemateca Francesa. Mais tar-
de, torna-se assistente de Henri Langlois, então diretor da Cinemateca, e colabora com Joris Ivens, mestre do documentário poético francês, com quem Perlov trabalha em um filme, ainda hoje não finalizado, sobre Marc Chagall. O cinema se apresenta então como uma nova paixão, pelas possibilidades estéticas, humanas e críticas que esse meio lhe oferece.
Tal paixão leva Perlov a angariar todos os esforços possíveis para a realização de seu primeiro filme, o curta-metragem Tia chinesa e os outros (1957), feito a partir de um caderno de desenhos encontrado no sótão da casa da família com quem morava em Vitry, um arrabalde de Paris. O caderno, desenhado em 1894 por uma menina com então doze anos (e que morreria aos vinte e um de tuberculose), era uma lembrança esquecida, amarelada pelo tempo e carregada de dura crítica social à sociedade francesa de fins do século XIX.
No início de 1958, depois do filme pronto com prólogo de Jacques Prévert, música de Germaine Tailleferre e apoio financeiro de gente como Jeanne Moraeu, Calder, Czeslaw Milosz, Arpad Szenes e Vieira da Silva, entre outros, Perlov muda-se definitivamente para Israel, indo ao encontro de Mira. No kibutz Bror Hayil, conhecido pela expressiva presença de brasileiros, nascem em 1959 suas filhas, as gêmeas Yael e Naomi, presenças fundamentais em sua obra autobiográfica – a qual vai se estender até fins dos anos 1990, com os três capítulos que compõem o Diário revisitado 19901999 (2001), e, posteriormente, com o ensaio Minhas imagens 1952-2002 (2003). Em 1961, a família muda-se definitivamente para Tel Aviv, onde Perlov, anos mais tarde, desenvolve seu aguçado senso de observação e precisão formal por meio das janelas de seu apartamento.
Do privado ao político
Se em Israel David Perlov realiza dezenas de filmes, os mais expressivos e eloquentes são aqueles em que vida e obra, passado e presente, ficção e documentário, parti-
Mesmo num país cular e coletivo, privado e político estão que escolheu como lar, Perlov realiza fundidos, como que amalgamados. Mesmo num país que escolheu como lar, Perlov realiza um cinema na contracorrenum cinema na te do cinema produzido e requerido pecontracorrente do las autoridades israelenses de então. Nos cinema produzido anos 1960, diferentemente das artes pláse requerido pelas ticas, da música e da literatura, o cinema em Israel era visto como mero instrumenautoridades israelenses to de propaganda ideológica afinado à esde então. Nos anos tética do realismo socialista soviético. So1960, diferentemente bre aqueles que compunham o órgão ofidas artes plásticas, cial de fomento ao cinema israelense, Perda música e da lov costumava dizer: “Eles veem com os ouvidos”. literatura, o cinema em Não à toa, seu filme Em Jerusalém
Israel era visto como (1963), documentário em média-metramero instrumento de gem influenciado pelos ventos que sopropaganda ideológica afinado à estética do pravam da Nouvelle Vague francesa, foi pouco apreciado pelo statu quo israelense, pois, além da inventividade formal, Perrealismo socialista lov filma mendigos de Jerusalém, grupo soviético. social no seio do qual, segundo uma poetisa ouvida pelo filme, nasceria o Messias. Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza de 1963 e ser considerado um marco do cinema moderno israelense, o filme teve como consequência o isolamento do cineasta pelas autoridades políticas locais. Perlov buscava liberdade estética e política em um momento histórico pontuado por legislações e autoridades pouco flexíveis em Israel, cujos projetos cinematográficos reivindicados não valorizavam experiências formais empenhadas em dar espaço ao humano. Eles queriam filmes sobre ideias, datas comemorativas, cerimônias, inaugurações. Perlov queria filmes sobre pessoas. Em Em Jerusalém já se encontram, portanto, muitos dos preceitos do projeto estético cuja consagração se dará com Diário 1973-1983, realizado 10 anos depois, a partir de 1973, quando o cineasta vive uma espécie de “exílio” forçado em seu próprio apartamento. Em plena Guerra de Yom Kipur, Perlov reivindica a liberdade de um escritor e a precisão de um atirador para filmar e mirar a realidade do mundo exterior através dos enquadramentos de suas janelas – janelas do apartamento, janelas da televisão. Relacionando a escritura de um diário filmado a um ato de guer-
ra, assim como de desespero, Perlov confere ao gênero uma radicalidade que não existia no cinema israelense de então. Em Diário 1973-1983 é a primeira vez, nessa cinematografia, que a investigação sobre si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma questão cinematográfica. É a primeira vez, nessa cinematografia, que a enunciação em primeira pessoa toma forma, situada na voz corporificada e ritmada do próprio Perlov.
Epifanias do cotidiano
“Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16mm. Eu começo a filmar para mim mesmo e por mim mesmo. O cinema profissional não me interessa mais”, diz ele no primeiro capítulo de seu diário, recusando a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de ilusões, trapaças e mistificações – embora mais adiante admita que, em diversos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade oferece. Fascinado pela origem ilusionista do cinema com Georges Méliès, assim como pela imagem dos malabarismos com bolas vermelhas feitos por seu pai, Perlov vai buscar na imanência do cotidiano familiar, com seus entreatos, pormenores e tempos “mortos”, o movimento mágico da vida. Em Diário 1973-1983, a narração e a montagem constituem o trabalho de um perpétuo aprendiz de prestidigitador empenhado em tornar evidente que a intimidade não está naquilo que se mostra, mas naquilo mesmo que se oculta.
No sexto e último capítulo de Diário 1973-1983, Perlov nos conta que, desde a infância, era um admirador dos enquadramentos proporcionados pelas janelas do trem que ligava Belo Horizonte a São Paulo, enquanto retém seu olhar numa janela de um vagão da Estação da Luz, evocando, talvez, a gênese de sua trajetória – que não está longe da imagem-gênese da exibição cinematográfica, o trem dos irmãos Lumière. Já a questão pessoal está diretamente ligada, nesse mesmo capítulo, ao passado e a uma ausência:
Ao filmar sua família, quando retorna ao Brasil, reencontrando seus amigos, suas viagens, sobretudo amigos, revisitando paisagens afetivas de São Paulo, especialmente da Vila Mariana, onde morou, e ouvindo novamente a para a França e para ária de Bach de sua juventude, na época o Brasil, e os eventos tocada em uma rádio católica da cidade, dramáticos do país Perlov parece próximo, pela estrutura opem que vive, como a tada, de encontrar algo. Seria uma imagem perdida da infância? Um truque de
Guerra de Yom Kipur mágica de seu pai? O rosto por nós desem 1973 ou a invasão conhecido de sua mãe? Uma superstição do Líbano em 1982, esquecida de Dona Guiomar? “Nunca rePerlov postula uma nova faça seu caminho, ou você queimará seus maneira de olhar e um pés!”, ela lhe dizia. Judeu laico, Perlov, em diversos monovo documentário: mentos refazendo seu caminho, evidenum cinema que, tendo cia uma relação religiosa com a capacidarenunciado às tramas de revelatória da imagem ao reter instane às intrigas, seja calcado na observação tes e ao produzir memórias. A tensão com a proximidade de Belo Horizonte, cidade carregada de tristes lembranças, de onde dos espaços, públicos saiu ainda criança, é amplificada com a e privados, na captação menção à mãe, Ana, figura pouco evocade fragmentos da e envolta em brumas, da qual prefedo cotidiano e na apreensão de pequenos re não falar. Tais memórias, sobretudo as que se referem a Ana Perlov, passam então a habitar um doloroso, obscuro e para gestos e expressões de sempre silenciado fora de campo, como rostos anônimos. se, para garantir a continuidade da vida, fosse preciso abandonar a origem no momento mesmo em que ela é enunciada. Ainda assim, haveria nesse movimento elegíaco algum segredo na superfície da imagem, alguma epifania: entre o efêmero visível e o sagrado a ser revelado, entre o que é explícito e o que – de tão íntimo – precisa ser ocultado.
Autobiografia como biografia do outro
A construção de uma “intimidade” familiar proposta pelo Diário 1973-1983 não se dá, portanto, na exploração intimidante que o termo primeira pessoa vem assumindo em tempos de reality shows, de hipertrofia da subjetividade e de um voyeurismo consentido e midiatizado. De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada aos fragmentos, ainda que organizados cronologicamente, e
sua subjetividade emerge não de uma interioridade essencial, mas da observação da exterioridade do mundo, com seus ritmos, movimentos, suas permanências e mudanças. Como quem perscruta os confins da memória à procura de um rosto perdido, de um grito surdo, de um nome esquecido e da música da infância, Perlov busca uma imagem capaz de nos evidenciar algo só possível de ser apreendido pela observação atenta e insistente dos pormenores da vida. Nessa espécie de caderno de notas audiovisuais, sua autobiografia se torna biografia do outro, biografia de todos nós.
Ao filmar sua família, seus amigos, suas viagens, sobretudo para a França e para o Brasil, e os eventos dramáticos do país em que vive, como a Guerra de Yom Kipur em 1973 ou a invasão do Líbano em 1982, Perlov postula uma nova maneira de olhar e um novo documentário: um cinema que, tendo renunciado às tramas e às intrigas, seja calcado na observação dos espaços, públicos e privados, na captação de fragmentos do cotidiano e na apreensão de pequenos gestos e expressões de rostos anônimos. No quinto e penúltimo capítulo de seus diários Perlov afirma, a partir da imagem das pernas de um homem correndo, que só importa o movimento do homem que corre, e não de onde ele vem ou para onde está indo. “A observação se tornou parte do meu ser”, enfatiza.
Nos anos 1990, David Perlov retoma, agora em vídeo, o formato dos diários filmados com o seu Diário revisitado 1990-1999 (2001), porém os organiza de outra forma, mais próxima do ensaio fílmico. Dividido em três capítulos temáticos, “Infância protegida”, “Rotina e rituais” e “Volta ao Brasil”, acompanhamos, no primeiro, tal qual um home movie ou um filme doméstico, explicitamente amador, a infância de seus netos, tão distinta do que fora sua própria infância em Belo Horizonte. No segundo, o olhar de Perlov indaga a rotina política de Israel, o assassinato do primeiro ministro Yitzhak Rabin, a ascensão de Benjamin Netanyahu, os rituais de simulação da política e da televisão, assim como diversos outros tipos de ritu-

A subjetividade emerge da observação da exterioridade do mundo, com seus ritmos, movimentos, permanências e mudanças.

O Desafio de Perlov foi reaprender a enxergar, por meio da política como atividade do próprio olhar.
ais que compõem o dia a dia do país. No terceiro e último capítulo, Perlov retorna ao Brasil, refazendo pela última vez, como em um gesto de despedida, suas viagens ao Rio de Janeiro e a São Paulo e Belo Horizonte, cidade de suas evocadas e doídas memórias de infância.
Destaca-se ainda na carreira de David Perlov o curta-metragem Em teu sangue, vive (1962), Menção Honrosa no Festival de Veneza e primeiro filme feito em Israel sobre o Holocausto, abordando, por meio das fotografias do período, a ascensão do regime nazista, os campos de concentração e o julgamento de Eichmann, um dos arquitetos do genocídio. Anos mais tarde, em Memórias do julgamento de Adolf Eichmann (1979), Perlov volta ao tema e entrevista, na própria sala de estar de sua casa, algumas das testemunhas do julgamento, fundindo nesse simples gesto, literalmente, o privado ao político.
A temática do trauma também aparece em Biba (1977), um filme direto e pessoal sobre o luto de uma mulher que perdera o marido na guerra de Yom Kipur. Sem nenhuma mistificação nacional, a dor da protagonista Biba, moradora de uma moshav (comunidade rural cooperativa) em Kfar Yehoshua, é, pela primeira vez no cinema israelense, particularizada, abordada sob um ponto de vista familiar e pessoal, e não simplesmente encarada como consequência de uma “baixa” nacional.
Ainda que todos os filmes de David Perlov sejam atravessados por grandes temas da história judaica, não há hierarquia de interesses. Transitando do geral ao particular, do coletivo ao íntimo, do privado ao político, Perlov sai de um filme sobre o luto para um documentário sobre a vida em um kibutz no norte de Israel, Tel Katzir 1993 (1993), com seus conflitos, desafios e a chegada de novos imigrantes, retomando, sem nenhuma nostalgia, imagens desse mesmo kibutz feitas trinta anos antes. Em todas essas imagens, Perlov busca uma poética do cotidiano que dá forma ao mundo e a seus habitantes.
A poesia, como não poderia deixar de ser, além de forma, é também tema de alguns de seus filmes. Em Em busca do Ladino (1981), o cineasta vai atrás da língua quase desaparecida, mas ainda sobrevivendo por meio da música, dos judeus espanhóis expulsos da Península Ibérica no século XV. Já em Encontros com Nathan Zach (1996), Perlov apresenta um retrato de seu amigo próximo, com quem manteve uma amizade por quase quarenta anos, e um dos grandes poetas de Israel.
A eternidade ao redor da esquina
Reaprender a enxergar – por meio da política como atividade do próprio olhar – e posteriormente estruturar na montagem o que se enxergou na filmagem foi o desafio de David Perlov ao longo de sua carreira, encerrada em 2003 com o ensaio fílmico Minhas imagens 1952-2002 (2003). Dividindo o filme em três momentos, Perlov propõe uma reflexão sobre a memória pessoal e coletiva a partir de fotografias, suas e de outros fotógrafos, que marcaram sua trajetória. Na terceira e última parte, o cineasta debruça-se sobre as fotos que ele mesmo tirara nos últimos anos de
sua vida e sempre do mesmo ângulo: uma mesa num café de Tel Aviv, na esquina de sua casa. Perlov não busca o melhor ângulo, mas um ângulo possível e propício a que algo se passe na frente de sua câmera. Um ângulo que restitua a nosso delirante mundo a sua “normalidade”.
Entretanto, aquilo a que chamamos de normalidade, no caso das imagens produzidas por Perlov, constitui a própria argamassa dos rituais cotidianos: sentar num café, abrir um jornal, esperar um ônibus, hesitar, conversar com as mãos, entrar em uma galeria e, no caso particular de Tel Aviv, ter a bolsa revistada (não sem a afetividade de um vigia sui generis), dentre tantos outros rituais já naturalizados. Nessa busca pela restituição ritualística da vida, Perlov empreende uma narração que, pouco a pouco, vai se tornando cada vez mais vertiginosa, como uma liturgia que celebra a preciosa e contínua imanência do mundo.
Minhas imagens 1952-2002, cujo título original é My Stills 1952-2002, constitui uma espécie particular de “still life”: não a natureza morta eternizada, mas a natureza viva que continua num perpétuo ainda. Finalizado no ano de sua morte, esse filme-testamento é uma reflexão sobre a prá-
Ainda que todos os tica fotográfica, uma homenagem aos fofilmes de David Perlov sejam atravessados tógrafos que Perlov amava e uma declaração de amor ao cotidiano, como na famosa frase do pintor Pierre Auguste Repor grandes temas da noir: “Encontrar a eternidade ao redor da história judaica, não há esquina”. hierarquia de interesses. Ao longo de sua trajetória, David PerTransitando do geral ao lov nunca abandonou o desenho, cuja intensa criação permaneceu vibrante em particular, do coletivo suas diferentes fases, dialogando com sua ao íntimo, do privado ao obra cinematográfica considerada autopolítico, Perlov sai de um biográfica. Foi durante sua permanência filme sobre o luto para em Israel que a produção plástica de Perum documentário sobre lov, possivelmente a face mais “íntima” de sua obra, floresceu. Enquanto seu cinea vida em um kibutz no ma documentário, mesmo em sua vertennorte de Israel, te mais pessoal, prima pela reflexividade
Tel Katzir 1993. e pela recusa a certa noção espetacular de intimidade, a obra plástica de Perlov nos dá ver a ver, justamente, aquilo que lhe era mais familiar: a face onírica, mágica, lúdica, irônica, erótica, insone e ilusória da vida. Ilana Feldman é pesquisadora, crítica e realizadora. Curadora da mostra David Perlov: epifanias do cotidiano, uma realização da Cinemateca Brasileira, do Centro da Cultura Judaica e do Instituto Moreira Salles, com apoio da Embaixada de Israel.
A argamassa dos rituais cotidianos: sentar num café, abrir um jornal, esperar um ônibus.

