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Rabino Dario E. Bialer
torat Chaim × torat sefarim
(torá da vida × torá dos livros)
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Quando Moshé (Moisés) ascendeu ao céu, encontrou o Santo Abençoado seja Ele, ocupado em adicionar coroas (detalhes) às letras da Torá. Disse Moshé: “Senhor do Universo, quem detém Sua mão?” (significando: há algo faltando na Torá que torna estas adições necessárias?). Deus respondeu: “Levantar-se-á um homem daqui a muitas gerações, Akiva ben Yossef é seu nome, que com elas esclarecerá cada detalhe da lei. Disse Moshé: “Senhor do Universo, permita-me vê-lo”. Ele respondeu: “Vire-se”. [E após viajar no tempo] Moshé foi e sentou-se atrás da oitava fileira [da yeshivá de Rabi Akiva]. Não podendo acompanhar as argumentações, Moshé sentiu-se triste e desorientado. Mas quando chegaram a um certo assunto e os discípulos perguntaram ao mestre de onde ele sabia isso, Akiva respondeu: “É uma lei dada a Moshé no Sinai” e Moshé sentiu-se reconfortado. Talmud Babilônico, Tratado Menahot 29b
Moshé e Rabi Akiva têm muitas coisas em comum. Os dois foram gigantes da Torá. Sábios e sensíveis. Mestres de inúmeras gerações. Humildes, tementes a Deus e extremamente corajosos. Pessoas iluminadas no conhecimento. Esses líderes inigualáveis na esfera pública simbolizam tudo isso e muito mais. Mas dentro de casa, na intimidade do lar, a história foi bastante diferente.
Moshé escolhe afastar-se de seus familiares mais próximos para dedicar-se inteiramente a Deus e cuidar do povo. Tanto assim que deixa de se relacionar sexualmente com sua mulher para estar sempre “puro” para uma eventual revelação de Deus. Ninguém lhe pediu para fazer isso. Também não se ocupa da circuncisão de seu próprio filho, que é providenciada pela esposa. Como se a subida ao Sinai tivesse confundido suas prioridades, ele se afasta destas que também são leis da Torá que, de acordo com a tradição, ele recebe. Como se nunca tivesse descido de cima do monte e a vida na Terra fosse, para ele, apenas uma questão celestial.
rabino dario e. Bialer
Steven Allan / iStockphoto.com
Quem se dedica apenas ao estudo da Torá está na verdade profanando a Torá. Porque, na verdade, a Torá é para ser vivenciada na casa e na rua, e não na memorização dos textos nas casas de estudo.
Mas no que diz respeito aos assuntos familiares mal resolvidos o líder supremo é Rabi Akiva e não Moshé Rabeinu. Akiva foi um analfabeto que começou a estudar com muito esforço já adulto e chegou a ser o maior sábio de todas as gerações de sábios. Ele é exemplo de superação, de persistência e de esperança. Sua figura valoriza o estudo e a luz do conhecimento. Mas nossos heróis dos textos sagrados não são figuras impolutas e, em paralelo com a história reverenciada, existe uma outra história de abandono e ausência.
O trabalho, o estudo e a família
Pretendo, a partir dos exemplos de Moshé e de Akiva, questionar o comportamento, que tantas vezes acontece conosco e que poderia ser resumido pela questão: Em nome de qual fim desconsideramos os meios? Por que em nome do trabalho e de obrigações cada vez mais exigentes acaba-se sacrificando a família?
Pergunto-me que leitura da Torá estão fazendo os que se denominam sábios e interpretam que o lugar da Torá é nas mesas de estudo das academias e distante das famílias?
Pergunto-me que tipo de amor é esse que em seu nome se justifica sair de casa durante o dia, chegar para jantar, assistir televisão, dormir e voltar a fugir no dia seguinte?
Nesse artigo vou abordar uma leitura talmúdica e, neste contexto, interpretar as ações dos sábios, especialmente de Rabi Akiva. A discussão talmúdica se encontra no tratado de ketubot entre as páginas 61b e 63a e começa com o trecho da seguinte mishná:
Sobre o homem que faz voto de abstinência sexual com sua esposa, a escola de Shamai ensina: [ele pode fazê-lo no máximo] por duas semanas. A escola de Hilel ensina: por uma semana [apenas]. Os estudiosos [da Torá] podem ausentar-se sem a permissão [da esposa] para estudar a lei por até trinta dias; os desempregados todos os dias; os trabalhadores, duas vezes por semana; os tropeiros1, uma vez por semana; os cameleiros2, uma vez a cada trinta dias; os marinheiros, uma vez a cada seis meses. Esta é a opinião de Rabbi Eliezer. (Ketubot perek 5 Mishná 6) Rabi Akiva é o maior Esse texto, escrito dois mil anos atrás, sábio da Torá da época, com milhares de aborda a conjuntura familiar de homens que precisavam se deslocar a lugares distantes para trabalhar, e de suas mulheres, discípulos que o seguem que ficavam aguardando por eles em casa. para onde for. Alcançou O conteúdo dessas linhas está inserido o que mais queria sua no contexto de um tratado talmúdico que alma – estudar sem aborda os direitos e as obrigações que o esposo e sua mulher acordam quando assipausa. Ao ultrapassar os nam a ketubá no dia de seu casamento. limites sem se importar Pela época em que foi escrito é um texto com os sofrimentos revolucionário. Em primeiro lugar reivincausados, Akiva foi dica os direitos das mulheres. O homem muito longe procurar tem obrigação de satisfazer sexualmente a sua mulher, destacando o caráter sagrado pela Torá à qual dedicou do sexo na vida judaica. O sexo no judatoda sua alma e todas ísmo não é nem pecaminoso nem sujo ou suas forças. imoral. Muito pelo contrário, o sexo é divino3. É a possibilidade mais concreta de elevar a vida ao plano do sagrado na capacidade de criar nova vida a partir do encontro íntimo de um homem e uma mulher. Nesse sentido, nossa Mishná de alguma forma remete à primeira ordem de Deus a Adão e Eva: “Frutificai, multiplicai e enchei a Terra” (Bereshit / Gênesis 1:28) A mulher, nos ensina a Mishná, tem o direito de exigir de seu esposo a relação sexual, existindo um período limitado de tempo em que ele pode se isentar de sua obrigação: duas semanas de acordo com Shamai e por uma semana conforme Hilel. Essa é a norma geral, mas existem exceções, como, por exemplo, a que contempla os que viajam por longos períodos por obrigação do trabalho. Além destas, Rabi Eliezer também conclui que os talmidei chachamim (os estudiosos da Torá) podem sair trinta dias de sua casa contra a vontade de sua mulher. Resulta interessante que a Mishná só advoga a hipótese da ausência de casa sem a permissão da esposa para os estudiosos da Torá. Imagino a situação difícil de um casal onde a mulher pede ao esposo para ficar por perto e ele, no entanto, vai embora fazendo visitas mensais de apenas um dia. Quando o trabalhador se ausenta, podemos assumir que está fazendo isso para ganhar o sustento indispensável para a família e que se pudesse fazer isso perto de casa o faria. Existe nesse caso um esforço conjunto do casal; os dois estão se sacrificando nessa situação. Isso não acontece quando
o talmid chacham se instala no beit midrash como residência fixa, passando em sua casa muito pouco tempo. Abandonar a esposa aí não é uma obrigação e sim uma escolha.
Até aqui orientam as palavras da Mishná. Um texto bem humano, com o foco no lar e que visa alcançar equilíbrio entre os diferentes interesses e as expectativas do casal.
Próximos dos livros, distantes das pessoas
No Talmud se retoma a discussão e após comentar rapidamente particularidades dos diferentes ofícios citados, os sábios se dedicam exaustivamente a aprofundar os exemplos dos estudiosos da Torá. Vejam como é interessante o que acontece:
Falou Rav Ada bar Ahaba em nome de Rav: [isso dos 30 dias são apenas] palavras de Rabi Eliezer, mas os sábios opinam que os estudiosos da Torá podem sair a estudar sem a permissão de sua esposa por dois a três anos!
Ou seja, os amoraim – sábios da época talmúdica – na Babilônia contradizem a Mishná, que fala em um máximo de trinta dias, e estendem o período para vários anos, seguramente para justificar uma prática habitual entre eles, de sair para estudar em batei midrash distantes, abandonando as famílias por muitos anos. Ao fazer isto eles surpreendentemente contradizem uma norma explícita de fonte mais antiga, como é a Mishná, que é algo que não poderiam fazer pelas regras hermenêuticas tradicionais.
São muitas as histórias registradas no Talmud de sábios que alcançam sua sabedoria próximos dos livros, mas distantes das pessoas. É bem provável que o interesse de quem compilou estes textos era demonstrar a tensão que existe entre a halachá e a realidade, entre o comportamento que se espera que um homem tenha com sua mulher e as atitudes que assumem os homens amantes da Torá. Nesta seção do Talmud aparecem sete contos. Analisarei apenas o primeiro e o último, mas quem tiver interesse em aprofundar no tema pode ler a série completa de histórias no tratado de Ketubot ou na bibliografia de referência que aparece no final do artigo.4
Eis a primeira história:
Rab Rachumi, que estudava na escola de Rabá em Machuzá, costumava ir para casa todo ano, na véspera do dia de Iom Kipur. Porém, certa vez ficou absorvido no estudo da Torá e não foi. A esposa o esperava: “Já está chegando, já está chegando”. Mas ele não veio. Ela ficou tão abatida que as lágrimas começaram a brotar de seus olhos. Neste momento o marido estava sentado num terraço; o terraço despencou e a alma [do rabi] repousou.
O texto esconde várias ironias. Primeiramente o nome do protagonista, Rachumi, deriva da palavra rachamim em hebraico, misericórdia, justamente tudo o que ele não demonstrou no relacionamento com sua esposa. O relato sutilmente coloca o sábio direta e permanentemente no bet midrash. Ele não faz o percurso de sua casa para lá, o texto sugere que ele pertence à casa de estudos e que é um visitante em sua casa. Nessa história o ponto de referência muda completamente. Se na Mishná o foco é a casa e a família, nesta história do Talmud fica bem claro que o lugar do sábio é na casa de estudos e os livros, a sua melhor companhia.
Continuando com as ironias do texto, Rachumi, que voltava à casa apenas uma vez no ano, o fazia precisamente no dia de Iom Kipur! Embora seja este um dia muito sagrado, não é preciso ser um grande conhecedor da Torá para saber que precisamente neste dia estão proibidas as relações sexuais. E que o tempo que Rachumi ficaria em casa neste dia era bem limitado.

Rab Rachumi é um rabino que entende tudo da lei, mas é um homem que se distancia completamente de qualquer tipo de obrigação familiar, que também é lei! Mas quem sabe? Talvez voltar em Iom Kipur seja a forma que ele tem de pedir perdão pelo mal que faz sentir aos que foram abandonados por ele.
Mas um ano se deixou vencer por aquela voz interior que o motiva a permanecer entre os livros e não voltou para casa. Esse “Agora ele vem...” da esposa é a súplica de uma mulher que não deixa nunca de acreditar; que espera o namorado na janela, dando (mais uma vez) um voto de confiança, até que perde as esperanças e chora, e a lágrima que cai de seu rosto expressa esse lar definitivamente destruído por Rab Rachumi. Chora a mulher as lágrimas da ausência, lágrimas de perda, as lágrimas de uma mulher viúva de um marido vivo. E justamente quando ela chora sua viuvez inexplicável, se torna viúva de verdade, pois o terraço desaba e Rachumi morre.
A sétima história, a que fecha o conjunto de contos no tratado de Ketubot que começa com a de Rachumi é a que está abaixo. Com matizes diferentes expressam a mesma tragédia, o mesmo desamparo e o mesmo fanatismo.
Rabi Akiva era um pastor de Ben Calba Savua (um dos homens mais ricos de toda Jerusalém). Vendo a filha dele que Akiva era recatado e honesto, disse-lhe: “Se eu me noivar contigo você irá para a escola?” Sim, ele respondeu. Casaram-se em segredo e ele foi para a escola. Quando o pai dela descobriu, a expulsou de casa e fez um testamento em que ela não obtinha benefício algum de seus bens (por se tratar de um humilde pastor). Rabi Akiva ficou doze anos na escola. Quando regressou trouxe consigo doze mil discípulos e escutou um ancião dizer à sua esposa: “Até quando seguirás sendo viúva de marido vivo?” Se ele me escutar – respondeu ela – ficará ali por mais doze anos. Pensou então Rabi Akiva: “Tenho sua autorização”. Foi-se e permaneceu na escola por mais doze anos, para depois voltar com vinte e quatro mil discípulos.
Os dois protagonistas desta história demonstram uma grande falta de equilíbrio. A mulher era poderosa, herdeira do homem mais rico da região, enquanto Akiva era um simples e pobre pastor. O final do conto inverte os papéis. Ele é o maior sábio da Torá da época, com milhares
Encontra-se de discípulos que o seguem para onde for. fanatismo em todos os lugares. Das Ela é uma mulher desamparada, “uma viúva de marido vivo” que não apenas não compartilha da riqueza do pai, como tamformas mais visíveis bém não compartilha dos grandes conhee devastadoras às cimentos adquiridos pelo esposo. O granalternativas silenciosas de beneficiado dos enormes sacrifícios da e aparentemente esposa foi Akiva, que realiza seu sonho. Alcança o que mais queria sua alma – escivilizadas. tudar sem pausa. Não por acaso dele se diz que na sua vida nunca abandonou o Beit Midrash e nunca interrompeu o estudo, salvo na noite de Pessach e na véspera do Iom Kipur (Pessachim, 109a). O triste desta história é que ele nem percebe o dano que causa e isso o converte no mais extremista de todos os sábios. É isto que se define como fanatismo. Ao ultrapassar os limites sem se importar com os sofrimentos causados, Akiva foi muito longe procurar pela Torá à qual dedicou toda sua alma e todas suas forças. No entanto, só viu a sua esposa três vezes em vinte e quatro anos. Mas, e a Torá dentro de casa? E o casamento? E a mulher? E ter filhos, aquele mandamento básico? Acaso essas normas não estavam na Torá que o grande mestre estudava e ensinava? Será Akiva tão hipócrita como os líderes que dizem uma coisa e fazem outra? Rabi Akiva disse: Todo aquele que incorre no derramamento de sangue (assassinato) despreza sua semelhança com o divino. Rabi Eleazar ben Azaria disse: Todo aquele que não se ocupa de multiplicar a espécie, despreza seu criador, conforme está escrito: “Porque à Sua imagem e semelhança criou ao homem. E quanto a vocês: multiplicai”. Ben Azai disse: Todo aquele que não se ocupa de multiplicar a espécie é como se estivesse derramando sangue e despreza a seu Criador (...). Respondeu-lhe Rabi Eleazar ben Azaria: Agradáveis são as palavras quando saem da boca de quem as cumpre (...).
Tosefta Iebamot 8, 7
A quem responde Rabi Eleazar? De forma direta, a Ben Azai, que era solteiro e, portanto, não cumpria com a mitzvá básica e fundamental de se reproduzir. Mas indiretamente está falando também a Rabi Akiva. Ben Azai sabe que está agindo de forma errada. Ele mesmo diz que quem não tem filhos se assemelha a um
assassino e despreza Deus, mas ele tem a honestidade de confessar que não consegue cumprir a mitzvá porque sua alma está completamente preenchida pela Torá e não lhe sobra tempo para a vida familiar.
Rabi Akiva, no entanto, é quem verdadeiramente pronuncia palavras que não cumpre. E mesmo sendo Rabi Akiva glorificado como o maior estudioso da Torá, Ben Azaria e Ben Azai estão nesse texto simplesmente destroçando a “santidade” de Akiva e denunciando que suas palavras são vazias, posto que não as cumpre.
O tratado de Nedarim 50a registra uma outra versão da história de Rabi Akiva e sua esposa. Após o casamento eles fogem e, de tão pobres que eram, se veem obrigados a dormir no chão de uma granja no inverno.
Ele tirava palha do cabelo dela enquanto lhe dizia: “Se tivesse dinheiro, te compraria uma Jerusalém de ouro (um imponente e delicado diadema de ouro)”. Um dia, passou na frente da sua porta o profeta Eliahu com o aspecto de um pobre. Bateu na porta e disse: “Dê-me um pouco de palha. Minha mulher acaba de dar à luz e não tenho nada para que ela possa deitar em cima”. Rabi Akiva entregou a palha e disse para sua esposa: “Olhe esse homem. Não tem nem sequer palha”. E ela lhe disse: “Vá estudar na casa do mestre”. (Seguramente para não acabar tão pobres quanto Eliahu.)
“Se tivesse dinheiro, te compraria uma Jerusalém de ouro.” Palavras bonitas, sem dúvida, mas vazias de conteúdo, promessas bem distantes das escolhas feitas posteriormente. Essa mulher renuncia à casa do pai em troca de uma outra casa que nunca foi construída.
A que Jerusalém de ouro se referia Akiva? Talvez a “Yerushalaim shel mala”, a Jerusalém celestial, a Jerusalém do tempo messiânico? Essa parece ser a única Jerusalém que o sábio conseguiu enxergar.
Jerusalém é uma cidade propensa ao fanatismo. Cheia de profetas espontâneos, redentores e messias. Cada um com sua fórmula pessoal de salvação instantânea, todos dizem (como disse a conhecida canção israelense) que “vieram à Jerusalém para construí-la e para serem construídos por ela”. Entre aqueles sábios são famosos os midrashim que explicam que no interior de cada ser humano exis-
O sexo no judaísmo não te uma luta entre o ietzer ha tov e o ieté nem pecaminoso nem zer ha ra, o instinto do bem e o instinsujo ou imoral. Muito to do mal. Frenkl, um interessante estudioso do Talmud, interpreta que o drama pelo contrário, o sexo é em nosso relato é que se dá uma luta endivino. É a possibilidade tre o tov e o tov, entre duas coisas boas, mais concreta de elevar dois valores positivos: a Torá e a família. a vida ao plano do Eu discordo desta análise. Vejo nessagrado na capacidade de criar nova vida sas histórias, que acabam em tragédia, um “remake” da batalha milenar dos instintos, só que citados com termos mais moa partir do encontro dernos. É uma luta entre o fanatismo e a íntimo de um homem e moderação e não entre um bom e outro uma mulher. bom. “Entre aqueles que acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios e, os demais, que acreditam que a vida é um fim em si e não apenas um significado”, escreve Amos Oz em seu livro Contra o Fanatismo. “É uma luta – continua o escritor israelense – entre os que acham que a justiça, ou o que quer que se queira dizer com a palavra justiça, é mais importante do que a vida e aqueles para quem a vida tem prioridade sobre muitos outros valores, convicções ou crenças (...) O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana.” Encontra-se fanatismo em todos os lugares. Das formas mais visíveis e devastadoras às alternativas silenciosas e aparentemente civilizadas. Está nas igrejas e nas sinagogas, nas universidades e nos governos, nas favelas e nos condomínios fechados e, sem sombra de dúvida, também nas casas de estudo onde estudiosos da Torá fogem do mundo terreno. Afastam-se de suas casas tanto que se tornam desconhecidos diante de seus próprios familiares. O Beit Midrash é para eles um refúgio das ameaças do exterior. Mas isso é ilusório, porque uma vida de reclusão não protege dos golpes da vida. E, mais do que isso, é um comportamento tremendamente egoísta porque apenas eles cabem dentro do refúgio. Suas famílias e o restante de seu povo ficam do lado de fora, trabalhando para sustentá-los. Para fazer com que os demais os sustentem eles precisam tornar sua atividade nobre aos olhos dos demais e é por isso que no final das contas Rabi Akiva acaba mais reverenciado que Ben Azai e Ben Azaria na memória coletiva judaica. Estranhamente o ser humano tem a propensão de valorizar o fanático. Mas o Talmud denuncia

o comportamento de Akiva e até o ridiculariza (“apenas as palavras dos que agem conforme falam são doces”).
A tragédia de Rabi Akiva

A história de Rabi Akiva acaba com muito sofrimento. Primeiro, conforme documentado no Talmud, com a morte de seus 24.000 discípulos numa peste que aconteceu de acordo com a tradição durante o período do Omer e depois com sua própria morte terrível nas mãos dos romanos.
Mas existe uma outra tragédia na vida dele, uma história não muito conhecida, que aparece num tratado menor do Talmud. Quando Rabi Shimon, filho de Rabi Akiva, ficou doente, este não interrompeu seus estudos no Beit Midrash. Chegaram a ele mensageiros [para reportar o estado de saúde de seu filho]. O primeiro lhe disse: “Ele precisa [de ajuda]”. Rabi Akiva disse a seus alunos: “Perguntem” (ou seja, continuou com o estudo). Veio o segundo e disse: “O estado se agravou”. Rabi Akiva e seus alunos continuaram a estudar a Torá. O terceiro disse: “Está moribundo”. Akiva disse aos alunos: “Perguntem”. Até que o quarto disse: “Ele morreu”. Rabi Akiva se pôs de pé, rasgou suas vestes e lhes disse: “Até agora estávamos obrigados a estudar a Torá, a partir de agora nossa obrigação é ocupar-nos de honrar o morto”. (Semachot 8a)
Se Akiva já estava sendo radical na ausência de casa, no episódio da doença do filho ele ultrapassa todos os limites. Ele aprendeu toda a Torá (o que de forma equilibrada seria digno de louvor), mas a mensagem subliminar do Talmud é que o grande conhecimento de Akiva foi conseguido de forma extrema e com comportamento fundamentalista e que, portanto, foi incapaz de garantir o bem-estar de suas dezenas de milhares de discípulos, de sua família e dele próprio.
É necessário ler com atenção os textos para extrair suas mensagens. As leituras apressadas – “twitter-style”5– produzem apenas fanáticos desconectados da profundidade e da beleza da vida e incapazes de construir um futuro tanto para si como para suas famílias e seu povo.
Traspondo para os dias de hoje, percebo que quem se dedica apenas ao estudo da Torá está na verdade profanando a Torá. Quando em nome da Halachá as pessoas se afastam umas das outras, quando em nome da kasherut os filhos já não se sentam na mesa dos pais e vice-versa. Porque na verdade a Torá é para ser vivenciada na casa e na rua, e não na memorização dos textos nas casas de estudo.
A Torá deve emanar dos livros para a vida e não ficar fechada neles. Não por acaso nossa Torá é chamada de Torat chaim (a Torá da vida) e não Torat sefarim (a Torá dos livros).
Notas
1. Que trazem para a cidade os produtos do campo, em viagens não muito longas para a época. 2. Que partem em caravanas para lugares distantes. 3. Para aprofundar nesse conceito recomendo o livro Heavenly sex. Sexuality in the
Jewish Tradition, New York University Press, 2000. 4. Bibliografia: Boayarin, Daniel, Ha Basar she baruach; Elon, Ari, Alma Di (Shdemot, 1990); Elon, Ari, Ba el ha kodesh (Yediot Achronot, Jerusalém, 2005) e
Frankl, Iona, Iunim be olamo ha ruchani shel sipur hagada (1981). 5. Ver Donniel Hartman em http://www.hartman.org.il/Blogs_View.asp?Article_
Id=742&Cat_Id=273&Cat_Type=Blogs
Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa do Rio de Janeiro – ARI.
Nascida na Hungria, Hannah Senesh escreveu um diário, cartas e poemas.
