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Rabino Alexander Dukhovny

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

20 anos de desafios na uCrânia

rabino alexander dukhovny

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Ainda menino, na Ucrânia, minha mãe me orientou a não acrescentar creme de leite ao meu borsch (sopa de beterraba feita com caldo de carne). Quando eu perguntei “Por quê?”, ela só soube dizer “Tradição!”. Esta foi a minha educação judaica. Foi um desafio...

Muito embora o pai dela tivesse sido rabino hassídico, ela nunca recebeu explicações convincentes de por que os judeus descansam no sábado ou por que observam a kashrut, já que tanto seu pai como a maior parte de sua família fora exterminada no Holocausto. Ela cresceu durante o governo comunista, quando era proibido praticar o judaísmo ou qualquer outra religião. Junto com sua família, minha mãe praticava o judaísmo secretamente. De novo – desafio!

Quando estive na Holanda em 1990, visitando meu irmão, conheci um rabino cuja aparência surpreendeu-me. Pensei que aquele homem não poderia ser um rabino: não usava nem “peyot” nem chapéu e capote pretos (naquela época eu achava que esta era a aparência dos rabinos). Tratava-se do Rabino Awraham Soedentorp. A partir daí eu me apaixonei por esse tipo de judaísmo: um judaísmo humano, com a cara da gente. Meu próximo desafio passou a ser encontrar um judaísmo humanizado.

Um par de anos mais tarde, já tendo trabalhado como cientista na Academia Nacional Ucraniana de Ciências, eu me pus em campo para tentar responder às minhas próprias questões sobre judaísmo. Após a queda do comunismo Quando estive na Holanda em 1990, conheci um rabino cuja aparência surpreendeu-me. Pensei que aquele homem não poderia ser um rabino: não usava nem “peyot” nem chapéu e capote pretos (naquela época eu achava que esta era a aparência dos rabinos). A partir daí eu me apaixonei por esse tipo de judaísmo: um judaísmo humano, com a cara da gente.

entrei para o seminário rabínico “Leo Baeck College Center of Jewish Education” (LBC-CJE) em Londres para iniciar meus estudos rabínicos.

Durante o meu primeiro ano de estudos em Londres eu me considerei superaltruísta, afinal de contas, havia abandonado um bom emprego do qual gostava e que pagava bem, um belo apartamento e um carro, para ir morar numa “cela monástica”. Eu tinha ido a Londres para “sofrer” (bem dentro da maneira tradicional judaica). Foi só durante o meu segundo ano de treinamento rabínico que pude compreender que não tinha vindo só pelos judeus da Ucrânia – eu tinha vindo também para descobrir quem eu era. E, de novo, aqui havia um desafio.

Agora, doze anos depois de ter sido ordenado rabino, ao lado de um grupo de dedicados líderes laicos, profissionais e para-rabinos, estou restabelecendo um movimento progressista forte e irreversível na Ucrânia, desafio e mais desafio.

Uma história que começa em 1826

O judaísmo reformista chegou à Ucrânia em 1826, oito anos após o estabelecimento da primeira congregação reformista em Hamburgo. Em 1991, há vinte anos, após a queda da antiga URSS, dezoito jovens congregantes da comunidade “Há-Tikvah”, em Kiev, reintroduziram o movimento reformista-progressista na Ucrânia.

Hoje estamos no mapa da Ucrânia com sete sinagogas cujos prédios foram doados pelo governo no âmbito da restituição das propriedades judaicas confiscadas durante o comunismo; com 47 congregações reformistas e 13.000 membros engajados em diferentes programas comunitários; com 14 jardins de infância e escolas dominicais; com grupos do vibrante movimento juvenil “Netzer”, e com uma ampla variedade de programas culturais, educacionais e projetos de ação social (Tikkun Olam). São vinte anos de desafios!

Enquanto estive na Inglaterra estudando para ser rabino aprendi algo essencial: o judaísmo tem tanto que ver comigo como com o meu povo. Trata-se de um judaísmo vivenciado. Uma vez um dos meus professores disse:

O judaísmo reformista “É preciso guiar uma congregação com a chegou à Ucrânia em 1826, oito anos após mesma delicadeza com que se grelha um filé de peixe”. O que dizer então das mais de quao estabelecimento da renta congregações às quais hoje em dia primeira congregação eu sirvo? Se vocês me perguntarem como reformista em eu gerencio estas congregações, poderia

Hamburgo. Em 1991, responder como naquela piada do rabino que estava procurando emprego: ao há vinte anos, após candidatar-se para uma posição, os coma queda da antiga ponentes da comissão de seleção infor-

URSS, dezoito jovens maram que estavam à procura de um racongregantes da bino responsável. Nosso candidato rescomunidade pondeu: “Eu sou o seu homem – em to dos os lugares em que já trabalhei, sem -

“Há-Tikvah”, em Kiev, pre que alguma coisa dava errado, a conreintroduziram o gregação afirmava que eu tinha sido o movimento reformista – responsável”. progressista na Ucrânia. Ser rabino do movimento progressista na Ucrânia é uma responsabilidade enorme e uma tarefa carregada de desafios. No decorrer de minha vida aprendi muitas coisas, mas uma é crucial para o trabalho de um rabino: delegar. Não tenho como fazer sozinho o trabalho na Ucrânia. Tenho um colega rabino, uma equipe de dedicados líderes laicos, funcionários congregacionais pararrabínicos, além do apoio da World Union for Progressive Judaism (WUPJ) e do Eastern European Council of the Progressive Rabbis (EECPR), que eu dirijo. As congregações às quais sirvo são diferentes umas das outras. Algumas têm entre 80 e 90 congregantes (não podemos esquecer que a cidade inteira, um antigo shtetl, só tinha estes 80 ou 90 judeus, e todos pertencem a uma sinagoga progressista – que sucesso!). Outras congregações têm mais de mil membros. Algumas têm seus próprios templos, outras são como tribos nômades – os congregantes se reúnem em lugares diferentes a cada shabat. Em algumas congregações que não podem contar com profissionais, líderes laicos preencheram o vácuo, fato notável em um país que não tem tradição de trabalho voluntário, e onde a população luta pelo sustento básico (o aposentado ucraniano médio, inclusive muitos em minhas congregações, ganha o equivalente a 130 dólares por mês, enquanto que o salário médio gira em torno dos 200 a 350 dólares mensais. Este dinheiro não vai muito lon-

ge, vejam que um par de sapatos simples custa entre 60 e 100 dólares).

A hostilidade contra os judeus progressistas

E aqui se nos apresenta mais um desafio: embora não haja mais antissemitismo promovido pelo governo na Ucrânia, os judeus progressistas são hostilizados pelas instituições ultraortodoxas ucranianas do Chabad. Os outros 50 rabinos da Ucrânia, que servem a mais de 160 congregações ultraortodoxas, todos nascidos em Israel ou nos Estados Unidos, não consideram legítimas as congregações progressistas ucranianas; rejeitam a Reforma como um judaísmo que não seria nem autêntico nem adequado. Costumo responder a eles dizendo: “Mas nós não acreditamos em Deus, na Torá, nas mitzvot e em ma’assim tovim (boas ações) igual a vocês?

Claro que acreditamos! Mas o fato de que a questão persiste apesar de todas as evidências define o desafio que o judaísmo progressista enfrenta se realmente pretende impactar o futuro dos judeus da era pós-URSS.

É possível que os meus colegas ultraortodoxos simplesmente não saibam que, ao final do século 18, os judeus se defrontaram com o mundo moderno na Alemanha e o judaísmo reformista foi uma das respostas aos desafios daquele momento. Um dos caminhos foi confrontar os novos pensamentos e as novas ideias da mesma forma como o judaísmo já tinha feito quando se deparara com o mundo greco-romano. A esta resposta damos o nome de Reforma. Um outro caminho foi o de insistir em que nada poderia mudar, por mais irrefutáveis que as ideias modernas viessem a ser. A esta atitude damos o nome de Ortodoxia.

As ideias do judaísmo reformista chegaram à Ucrânia com o Iluminismo, nas primeiras duas décadas do século 19. Entre as primeiras mudanças na educação judaica podemos contar a introdução de matérias seculares no currículo judaico em Lviv, Uman, Kharkiv, Zitomir e Odessa. Depois destas mudanças vieram as primeiras congregações reformistas em Lviv e Odessa, com a construção dos primeiros templos. Quase dois séculos depois, estamos mais uma vez no mapa da Ucrânia. As palavras fortes do Rabi-

Embora não haja mais antissemtismo pelo governo na Ucrânia, os judeus progressistas são hostilizados pelas instituições ultraortodoxas ucranianas do Chabad.

Iurii Konoval / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 51

Moscou é uma das maiores congregações do movimento progressista na antiga União Soviética.

no Dr. Tony Bayfield, líder dos judeus reformistas britânicos, ecoam em nossos corações quando afirmamos que: – Claro que acreditamos em Deus –, mas não no Deus da literatura medieval, que recompensa os justos e fulmina os pecadores. – Claro que acreditamos na Torá –, mas não num documento extra-histórico que atravessou o espaço sideral de Deus a Moisés sem intervenção humana. – Claro que acreditamos em mitzvot –, mas não em uma lista arbitrária de 613 itens congelada em algum momento do século 13. – Claro que acreditamos em “ma’assim tovim” (boas ações) –, de fato louvamos a Deus igualmente pelo comportamento que temos para com os nossos semelhantes, como através das orações durante os serviços religiosos.

Temos aqui uma ótima base para argumentarmos que o judaísmo progressista é pura e simplesmente o judaísmo em sua forma de expressão mais natural e poderosa no início do século 21. “Creio firmemente que juntos podemos formar uma parceria global para cuidarmos do planeta e uns dos outros”, disse o Rabino Dr. Awraham Soedentorp, que atua como Comissário da Carta da Terra, ao receber a renomada Medalha de Ouro Inter-religiosa “Paz Através do Diálogo”. É este o tipo de judaísmo humano que eu amo, e que eu venho trazendo para a Ucrânia de nossos dias.

O papel da WUPJ na URSS

Devemos orgulhosamente prestar homenagem à World Union For Progressive Judaism pelo restabelecimento da vida judaica na antiga URSS: nos últimos 20 anos a WUPJ vem desempenhando papel fundamental na criação de instituições, programas e lideranças formando os alicerces do judaísmo progressista na ex-URSS.

Desde o início destes esforços a WUPJ se manteve comprometida com o princípio de que uma vida judaica duradoura precisa estar enraizada na força da congregação. Os resultados do trabalho da WUPJ são essenciais: o estabelecimento e a capacitação das congregações e dos centros

comunitários que incorporam elementos Claro que acreditamos religiosos, educacionais, culturais, sociais e outros igualmente importantes da vida em comunidade. em Deus, mas não no Deus da literatura

Quando a União Soviética desmoro- medieval, que nou, no final da década de 1980, havia recompensa os justos e ainda quase três milhões de judeus viven- fulmina os pecadores. do em áreas sob controle do regime comunista. A WUPJ imediatamente entrou Claro que acreditamos em ação, mandando voluntários e rabinos na Torá, mas não ao encontro destes judeus e propondo o num documento objetivo histórico de renovar a vida judai- extra-histórico ca para a segunda maior dispersão judaica que atravessou o depois da América do Norte. O desafio para a WUPJ era claro – espaço sideral de com tantos judeus em busca de direção e Deus a Moisés sem precisando ser orientados, como poderia intervenção humana. o nosso movimento reformista, progres- Claro que acreditamos sista, deixar de ser uma das “mãos estendidas” dando as boas-vindas aos judeus de volta aos seus? em mitzvot, mas não em uma lista arbitrária

O mundo judaico maior é pluralis- de 613 itens congelada ta em sua trama, refletindo uma varieda- em algum momento do de de orientações religiosas. Como seria século 13. possível que milhões de judeus da antiga URSS, depois de não terem tido acesso às suas tradições judaicas por quase um século, voltassem à vida judaica sem a possibilidade de optarem pelo judaísmo liberal se assim o quisessem?

De imediato e sem nenhuma dúvida a WUPJ sentiu-se na obrigação de associar-se, assim como outros movimentos religiosos judaicos, à sagrada tarefa de revitalizar o judaísmo na antiga URSS. Até hoje a resposta tem sido avassaladora e um bom exemplo disto é o movimento reformista na Ucrânia.

Desde o estabelecimento da primeira congregação da WUPJ em Moscou, em 1990, Congregação Hineini, a World Union já ajudou a criar quase 100 congregações pela Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e pelos Países Bálticos.

A formação de paraprofissionais comunitários

Comunidades judaicas precisam de profissionais treinados com conhecimento de judaísmo, e também de líderes laicos (voluntários). Através do Instituto de Estudos Judaicos Modernos, fundado em Moscou em 1993, a WUPJ treinou um núcleo de paraprofissionais comunitários instruídos e judaicamente habilitados a liderar a crescente rede de comunidades religiosas filiadas à WUPJ. Alguns dos egressos deste programa de treinamento, assim como outros estudantes, continuaram a sua instrução em seminários rabínicos do movimento (Leo Baeck College de Londres; Abraham Geiger College de Berlim; Hebrew Union College de Jerusalém) e agora trabalham como rabinos nas maiores congregações do nosso movimento na Rússia (Moscou e São Petersburgo), na Ucrânia (Kiev e Simferopole) e na Bielorrússia (Minsk). Eu sou um destes seis rabinos reformistas que trabalham na antiga URSS e gosto muito do meu trabalho na Ucrânia: acho prazeroso instruir judeus para que eles e seus filhos possam saber quem são, de forma diferente do que aconteceu comigo e com meu irmão quando éramos crianças. Gosto de viver e isto me faz compreender como é importante ajudar os judeus ucranianos a manter sua identidade e a compreender, como aconteceu comigo, que um judaísmo com a cara da gente é multicolorido e multifacetado. O judaísmo tem a ver comigo e com cada um de nós.

Minha decisão de trabalhar na Ucrânia representa uma posição especial e outro desafio: eu tinha me casado com minha colega Rabina Erlene Wahlhaus-Dukhovny no dia de nossa ordenação, e minha falecida esposa trabalhava em Londres. Desafio passou a ser uma palavra-chave em nossa família. E ainda não deixou de ser.

No entanto, alguns judeus ucranianos ainda são de opinião que o judaísmo é coisa do passado. Mas o judaísmo não é só coisa do passado, é também do presente e do futuro. E aqui temos um lindo desafio!

O Rabino Alexander Dukhovny é o Rabino Chefe das Congregações Judaicas Progressistas de Kiev e da Ucrânia e o presidente do Conselho de Rabinos Progressistas da Europa Oriental. Traduzido do inglês por Teresa Roth.

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