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João Carlos Assumpção
futeBol e Barreiras
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João Carlos assumpção
Este artigo é mais um fruto da parceria Devarim-Hilel do Rio de Janeiro
No ano passado fui com quatro amigos acompanhar a Copa do Mundo em Israel e nos territórios palestinos para fazer um documentário que tende a gerar polêmica e muita discussão dos dois lados. Em “Sobre Futebol e Barreiras”, título que demos para o filme e para o projeto, mostramos como judeus e palestinos assistem ao Mundial, discutimos problemas de identidade nacional, entramos na vida de cidadãos comuns e vimos como o futebol pode aproximar ou não os dois povos.
Aproxima se pensarmos que tendem a torcer para os mesmos países, a maioria era favorável ao Brasil, à Argentina e à Espanha. Dos dois lados o jogador preferido, sem dúvida, era Messi. Era só andar com a camisa do Brasil que você abria portas e era bem recebido. Impressionante como conhecem o futebol brasileiro e como Dunga podia ser considerado uma unanimidade, criticado por todos por não ter levado jogadores como Ronaldinho Gaúcho e especialmente Neymar e Ganso, as revelações do Santos, e por defender um futebol burocrático, um futebol de resultados, que deu certo em 1994, mas não obteve sucesso em 2010, na Copa da África.
Ao mesmo tempo, porém, as diferenças ficam mais evidentes. Na goleada da Alemanha contra a Argentina, apesar de grande parte de judeus e palestinos estar torcendo pela segunda, enquanto num assentamento judaico estavam has-
teadas bandeiras argentinas, só para provocar, a vila palestina, vizinha, ostentava bandeiras alemãs.
A necessidade dos contrapontos
Para mim, que sou descendente de judeus – minha avó materna era judia, sobrinha de Lasar Segall, um dos principais artistas que o Brasil conheceu –, a experiência de fazer o filme foi muito difícil, embora estimulante. Conflitos internos surgiram e externos também. Afinal éramos cinco, cada um com uma opinião diferente e o assunto Oriente Médio gera mais polêmica do que qualquer partida de futebol. A causa palestina tem muito apelo no mundo todo e senti que tinha que fazer um contraponto quase o tempo inteiro, embora seja da opinião de que os dois lados têm de ceder, especialmente os judeus, que têm a força em Israel.
Como um dos integrantes do grupo já havia estado na região pouco antes do início do documentário e tinha vários contatos do lado palestino, resolvi ficar apenas em Israel. Mas não só por isso. Porque lá me sentia em casa. Sentia-me mais confortável. Acolhido. Não foi a primeira visita que fiz ao país e espero que não tenha sido a última. Adoro Israel, especialmente Jerusalém, onde alugamos uma casa, e pude encontrar pessoas interessantes, algumas das quais mantêm contato comigo até hoje.
Fazer o filme, porém, foi um árduo processo de tolerância. De todos os envolvidos. E tolerância é a palavra-chave para a região. Muitas vezes pensei: se está difícil chegarmos a um acordo sobre que linha seguir no filme, imagine como é complicado – embora não considere impossível – chegarmos a um consenso no Oriente Médio. Tudo gerava discussão. O próprio blog que criamos (http://sobrefutebolebarreiras.blogspot.com) mostrava a diversidade do grupo e das opiniões de cada um. Talvez eu tivesse seguido outra linha no documentário. Certamente teria em vários e vários pontos, mas acatei a decisão da maioria. Ganhei algumas vezes, perdi em outras ocasiões, sigo defendendo minhas ideias e o filme está aí, inscrito em festivais do mundo todo, estreando em Florianópolis no Festival Audiovisual do Mercosul.
As esperanças, os sonhos e a torcida
Entrevistamos e mostramos a visão, o dia a dia, as esperanças, os sonhos, os conflitos e a torcida de diversos personagens. Em Israel e na Cisjordânia. O personagem de que mais gostei e com quem mais me identifico é o Gregory, um judeu israelense que torcia pela Alemanha. Não, não torço pela Alemanha e mesmo no jogo contra a Argentina, jogo em que muitos brasileiros torceram contra “los hermanos”, no fundo fiquei ao lado do time de Maradona.
Mas Gregory se diz um provocador e justifica que o futebol é só um jogo e que gosta do time da Alemanha. Um direito democrático que tem de ser respeitado, embora muitos compatriotas não concordem com sua escolha lembrando-se da Segunda Guerra Mundial. Mas como disse Shy, outro dos personagens judeus que aparecem no filme, se Hitler estivesse vivo teria um treco ao ver a seleção alemã, que hoje, felizmente, tem jogadores negros defendendo suas cores. A gente tem que aprender com a história...
Gregory dá um depoimento comovente quando conta sua chegada a Israel, ainda menino, com o pai sionista querendo distância do regime soviético. Chega a dizer que ao pisar no aeroporto Ben Gurion sentiu como se estivesse no paraíso. E que considera o mundo antissemita, o que justificaria a existência de um país para os judeus.
Mas no filme há de tudo. Há judeus, por exemplo, que não pensam como ele. Caso de Eytan, que propaga um movimento, o Zochrot, para combater o que chama de “memória suprimida” do povo de Israel, que, segundo ele, deveria lembrar o que aconteceu em 1948, quando muitos palestinos saíram de suas terras com a fundação do país.
Mas a origem do Estado de Israel não está em 1948, ela vem de muito antes, vem do famigerado Holocausto, da perseguição aos judeus que acontecia bem antes dos anos 1930 e 1940. Judeus que viviam em guetos no Leste Europeu, que foram perseguidos na Espanha e em Portugal, nos países árabes, judeus, como meu bisavô, que nasceram na comunidade judaica de Vilna no final do século retrasado e sofreram com o domínio da Rússia czarista. Que foram parar em outros países e em outros continentes. E judeus que tentaram entrar em Israel, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial, e não puderam, tiveram seus navios “devolvidos” para a Europa, quando a região estava sob o domínio britânico, com apoio de muitos árabes.
O filme traz a discussão sobre como tornar o Estado de Israel verdadeiramente democrático, já que há muitos palestinos que dizem ser tratados como cidadãos de segunda categoria. Reclamam dos pontos de controle, re-
conhecem que podem comprar roupa, trabalhar, ganhar dinheiro, mas insistem que não têm liberdade. E liberdade é fundamental. Para a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, autora de Retorno à Questão Judaica, “os israelenses estão confrontados com uma escolha: ou fazer de seu Estado uma democracia ainda mais laica e igualitária, admitindo que um Estado de direito tem de ser não judeu para ser verdadeiramente democrático ou afirma o caráter judeu de seu Estado, aceitando que deixa de ser israelense e democrático e se torna religioso e racista”.
Mas talvez Roudinesco esteja simplificando a questão, pois o judaísmo é uma cultura e não apenas uma religião e assim pode ser possível ser laico e judeu ao mesmo tempo, como provaram os fundadores do Estado. Não existem apenas judeus religiosos e existem correntes modernas que não encontram contradição entre a religião judaica e a democracia. O personagem Gregory, a seu modo, aborda o assunto e prefere que o Estado siga judeu, lembrando das dificuldades que passou na Europa, um continente cada vez mais fechado para os estrangeiros e que volta a discutir como fechar ainda mais suas fronteiras.
Outro personagem que está no filme, um dos principais jogadores da história de Israel, o palestino Zahi Armaly, também toca na questão e explica o porquê de, quando defendeu a seleção local nos anos 1980, recusar-
O Estádio de Johanesburgo, um dos principais da Copa do Mundo na África do Sul de 2010.
Para Roudinesco, “a universalidade do povo judeu é uma maneira de transmitir à humanidade a idéia de que nenhum homem pode ser reduzido à sua comunidade”.

-se a cantar o hino nacional. É que, mesmo sendo israelense, diz que nem o hino nem a bandeira o representam, pois contêm símbolos do judaísmo. É uma questão que podemos transportar para o Brasil, perguntando como ficam um judeu e um muçulmano, por exemplo, diante de um crucifixo num tribunal de justiça do País?
Zahi é árabe e considerado traidor por muitos palestinos que moram em Gaza, na Cisjordânia ou mesmo em Israel por ter defendido a seleção israelense. O que mostra a complexidade do problema. Pois se ele é israelense, ia defender a seleção do Brasil, da Espanha ou da Itália? Não, só podia defender a de Israel. E defendeu com brilhantismo.
Como diz Reut, cuja família emigrou para o país da República Checa e do Marrocos, locais onde seus pais foram perseguidos, chegando a ver uma suástica pichada diante de suas casas, um Estado para o povo judeu se faz necessário. Mas todos vivem numa sociedade que ela define como pós-traumática. É radicalmente contra o muro que os separa dos palestinos, embora reconheça que ele trouxe mais segurança aos israelenses, diminuindo radicalmente o número de atentados e ataques a bomba. Tudo é um paradoxo. Tudo é confuso.
Há palestinos que dizem viver no que chamam de sociedade do apartheid e que querem acabar com isso. Que não aguentam mais. Que o jogo está na prorrogação, quase na disputa por pênaltis... Alguns optam por entrar
no sistema, outros resistem de forma pa- Para entender Israel não podemos jacífica, outros partem para o ataque e ma- mais esquecer o Holocausto, essa grande tam inocentes. O terrorismo é uma reali- vergonha na história da humanidade, cuja dade na região. E uma realidade que tem origem não está nos anos 1930. Está bem de ser combatida. lá atrás, muito antes disso. Pois a perse-
Fico pensando ainda numa declara- guição aos judeus é histórica, data de séção de Elisabeth Roudinesco, para quem culos e séculos e séculos. E talvez tudo a universalidade do povo judeu e sua ca- isso justifique mesmo a existência de um pacidade de resistência a todas as catástro- Estado judeu. E acho que justifica, sim. fes é uma maneira única de transmitir à Mas cada um tem sua opinião. Opinião humanidade a ideia de que nenhum ho- que pode mudar com o tempo e com as mem pode ser reduzido à sua comunida- circunstâncias. O que sei é que vivi uma de, às suas raízes e a seu território. experiência muito rica e percebi que não
Isso é lindo e serve para o mundo sou isento. A nada. todo, embora não deixe de ser de certa Mesmo voz vencida em alguns ponforma utópico. A solução para o conflito tos do filme e tendo optado por permaé difícil, não tenho resposta sobre o que necer o tempo todo em Israel, o que pode fazer, se tivesse, resolveria os conflitos do ser contraditório, e é, sou um ser humano Oriente Médio e do mundo. Como diz o próprio Zahi, como qualquer outro. Cheio de conflitos internos. Minhas “sou um ser humano antes de mais nada”. Todos somos. E raízes judaicas (embora minoritárias – 25% da minha orio bom é podermos expressar nossas opiniões, como fazem gem) talvez tenham falado mais alto – e falaram, o que só os personagens no filme. mostra que não sou um observador neutro –, mas tentei
Focando do lado judaico, deu para perceber o plura- entender o outro lado. Que é nosso também, pois somos lismo de opiniões. De quem se recusou a servir o Exérci- um só, ou pelo menos deveríamos ser. to, de quem ataca os políticos locais, de quem responsabiliza a atual situação pelo que chama de erros cometidos João Carlos Assumpção, jornalista e escritor, é um dos diretores em 1967, de quem considera o país racista... Mas tam- do documentário “Sobre Futebol e Barreiras”. Cobriu cinco Copas bém de quem quer apenas e tão somente viver em paz, do Mundo e três Olimpíadas in loco, é colunista do “Lancenet” e como Gregory e a própria Reut. Que sabem que a histó- colaborador do Lance!, foi repórter da Folha de S.Paulo e corresria de Israel não começou em 1948, como insinua Eytan, pondente do jornal em Nova York, trabalhou nas revistas Carta Cado movimento Zochrot. Começou, como insisto, muito pital e Poder e foi comentarista e chefe de reportagem e redação antes disso. do Sportv em São Paulo.
Outro personagem que está no filme, um dos principais jogadores da história de Israel, o palestino Zahi Armaly, também toca na questão do caráter judaico do Estado e explica o porquê de, quando defendeu a seleção local nos anos 1980, recusar-se a cantar o hino nacional.


Diego Vargas / iStockphoto.com
