
– No. 13, setembro de 2024
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Erica Schmidt1
Huélinton Cassiano Riva2
Resumo. O presente artigo propõe a reflexão sobre a interdependência entre língua, linguagem, identidadeecultura,ressaltandoquetaisconceitosestãointrinsecamenteligados,hajavistaqueacultura se constitui e se difunde por meio da língua e que é também por meio dela que ocorrem os processos estruturação de identidades. Nesse sentido, a língua e a linguagem atravessam e ao mesmo tempo criam os conceitos de cultura e identidade (cf. Chauí, 2000; Bakthin, 1997; Barbosa, 2008; Oliveira; Isquerdo, 1998). Este trabalho, em especial, debruça-se em analisar a cultura expressa na língua a partir da análise da obra “Dicionário das expressões mais usadas no Brasil: organização onomasiológica” (Riva, 2013) pois, trata-se de um dicionário especial que apresenta expressões idiomáticas agrupadas ao redor de conceitos, de noções, por exemplo, “vida” e “morte”, para se chegar às expressões idiomáticas presentes na língua, caso, por exemplo, de “são e salvo” e “estar nas últimas”, com o levantamento, como é apontado na obra em questão, nas valorações positivas, negativas e/ou neutras dos idiomatismos mais usados nos anos 2000.
Palavras-chave: Onomasiologia; Linguística; Idiomatismo; Cultura; Léxico.
Resumen.Elcaminoonomasiológicoutilizadoenundiccionariodemodismosquerevelalacultura a través del léxico. Este artículo propone una reflexión sobre la interdependencia entre lengua, lengua, identidad y cultura, resaltando que dichos conceptos están intrínsecamente vinculados, dado que la cultura se constituye y difunde a través de la lengua y que es también a través de la lengua que los procesos de estructuración de la identidad. En este sentido, lengua y lengua cruzan y al mismo tiempo crean los conceptos de cultura e identidad (cf. Chauí, 2000; Bakthin, 1997; Barbosa, 2008; Oliveira; Isquerdo, 1998). Este trabajo, en particular, se centra en analizar la cultura expresada en la lengua a partir del análisis de la obra “Diccionario de las expresiones más utilizadas en Brasil: organización onomasiológica” (Riva, 2013) por ser un diccionario especial que presenta expresiones idiomáticas. agrupados en torno a conceptos, nociones, por ejemplo, “vida” y “muerte”, para llegar a las expresiones idiomáticas presentes en el idioma, como “sano y salvo” y “estar en las últimas”, con la encuesta, como señaló en la obra en cuestión, en las valoraciones positivas, negativas y/o neutrales de los modismos más utilizados en los años 2000.
Palabras clave: Onomasiología; Lingüística; Idiomatismo; Cultura; Léxico.
Abstract. The onomasiology course that was employed in a dictionary of idioms revealing culture throughlexicon. This paper aimsto bringto light reflections ontheinterdependency between language, speech, identity, and culture, highlighting that such concepts are intrinsically linked, given that culture is constituted and spread through language and that it is also through language that identity structuring processes occurs. In that sense, language, and speech cross over and, at the same time, create the concepts of culture and identity (see Chauí, 2000; Bakthin, 1997; Barbosa, 2008; Oliveira; Isquerdo,
1 Possui Graduação em letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP e Doutorado em Estudos Literários pela UNESP. Docente de Língua Portuguesa e Inglesa no Centro Paula Souza. E-mail: kinhasch@gmail.com.
2 Possui Graduação em Letras com habilitação de Tradutor pela UNESP, Mestrado e Doutorado em Estudos Linguísticos pela UNESP. Docente do Ensino Superior na Universidade UEG, autor do Dicionário das expressões idiomáticas mais usadas no Brasil: organização onomasiológica (Editora Appris) e do Dicionário das expressões idiomáticas brasileiras: anos 2000 (Novas Edições Acadêmicas) e líder do LexCult: grupo de pesquisa sobre léxico e cultura do CNPQ. E-mail: huelinton.riva@ueg.br.
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1998). This work, in particular, focuses on analyzing the culture expressed in the language, based on the analysis of the work “Dicionário das expressões mais usadas no Brasil: organização onomasiológica” (Dictionary of the most used expressions in Brazil: onomasiology organization from Riva, 2013) as it is a special dictionary that presents idioms grouped around concepts and notions. Among those concepts we can mention, as for example, “life” and “death”, that reach idiomatic expressions present in the language, such as “safe and sound” and “being on your last legs”, with the survey, as it is pointed out in the work in question, in a positive, negative and/or neutral valuations of the idioms most used in the 2000s.
Keywords: Onomasiology; Linguistics; Idioms; Culture; Lexicon.
1 Introdução
Aristóteles tinha muitas ideias sobre a linguagem humana entre suas reflexões. Ele acreditava que a linguagem era uma característica distintiva dos seres humanos, permitindolhes expressar pensamentos complexos e comunicar informações de forma elaborada. Dentre algumas destas principais ideias do filósofo (Chauí, 2000) incluem-se:
I) acreditar que a linguagem e o pensamento estavam intimamente relacionados. Ele argumentava que a linguagem não era apenas uma ferramenta para expressar pensamentos, mas também desempenhava um papel crucial na formação e no desenvolvimento do pensamento.
II) ver a linguagem como uma manifestação da capacidade racional única dos seres humanos. Segundo Aristóteles, os humanos têm a capacidade de usar palavras para expressar conceitos abstratos e realizar inferências lógicas.
III) identificar várias funções da linguagem, incluindo a comunicação de informações, a expressão de emoções e a persuasão. Ele reconhecia que a linguagem poderia ser usada de várias maneiras, dependendo do contexto e das intenções do falante.
IV) reconhecer a natureza social da linguagem, argumentando que a comunicação linguística era essencial para a vida em sociedade. Ele via a linguagem como uma ferramenta fundamental para a cooperação e a colaboração entre os seres humanos.
Em seu livro Convite à Filosofia, publicado originalmente em 1994 e revisado em edições subsequentes, Marilena Chauí também discute várias questões relacionadas ao homem e à linguagem.
No que diz respeito à linguagem, a pesquisadora aborda sua importância fundamental na constituição do ser humano como sujeito e na construção do conhecimento. Ela defende que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas também um meio pelo qual os seres humanos compreendem o mundo e se relacionam com ele. Além disso, a autora destaca a dimensão política da linguagem, argumentando que ela é inseparável do poder e das relações de dominação na sociedade.
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Da mesma forma, Chauí ressalta a importância da linguagem como uma via de acesso ao mundo e ao pensamento humano. Ela enfatiza que a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas também uma ferramenta que nos permite pensar e compreender nossos próprios pensamentos, bem como os pensamentos dos outros. A linguagem nos permite acessar significados quejásão conhecidos por outros,assim como descobrirnovos significados durante uma conversa, por exemplo.
A teórica segue sua argumentação frisando ainda que a linguagem é uma parte intrínseca da experiência humana, pois nos envolve e nos habita, assim como nós a envolvemos e a habitamos. Essa interação contínua com a linguagem nos ajuda a desenvolver nossa compreensãodomundo e denós mesmos. Portanto,paraelaa linguagem desempenhaum papel central na vida humana, conectando-nos uns aos outros e ao mundo ao nosso redor, enquanto também nos possibilita explorar e compreender nossos próprios pensamentos e experiências.
De fato, Chauí destaca que a linguagem e a língua não são apenas ferramentas de comunicação, mas sim os alicerces de toda vida social. Elas desempenham um papel fundamental na organização e na subdivisão das diversas camadas que compõem a sociedade, incluindo aspectos afetivos, culturais, econômicos, educacionais, familiares, ideológicos, políticos, religiosos e sociais.
Essa inter-relação entre língua e cultura é indissociável e permeia todos os aspectos da vida das pessoas, tanto individual quanto coletivamente. A língua não é apenas um conjunto de signos linguísticos, mas sim um reflexo e um meio de expressão da cultura de um povo. Ela reflete os valores, as crenças, as normas e as tradições de uma sociedade e, ao mesmo tempo, contribui para (re)estruturar e (re)constituir esses elementos culturais ao longo do tempo.
Assim, para Chauí, entender a linguagem e a língua é essencial para compreendermos não apenas a comunicação humana, mas também a complexidade e a riqueza da cultura de uma sociedade. Essa perspectiva nos convida a considerar a linguagem não apenas como um instrumento de comunicação, mas como um aspecto central da experiência humana e da vida em sociedade.
Portanto, refletir sobre a linguagem e a língua é uma questão que permeia a humanidade há milênios e que, muitas vezes, chegava a respostas complementares e/ou controversas. Citamos, por exemplo, o que Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho) deixou registrado em sua obra “Confissões”, escrita por volta do ano 400 d.C. a respeito da linguagem. Em suas obras, Santo Agostinho refletiu profundamente sobre a linguagem e seu papel na comunicação e na compreensão da verdade. Em "Confissões" (AGOSTINHO, 1980), ele abordou a relação entre a linguagem e o pensamento, enfatizando que as palavras são apenas símbolos que representam ideias. Ele também discutiu como a linguagem pode ser tanto uma ferramenta de comunicação quanto uma fonte de mal-entendidos.
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Além disso, Agostinho argumentou que a linguagem humana é limitada em comparação com a verdade divina. Para ele, a busca por significado e compreensão vai além das palavras, sendo uma busca por um entendimento mais profundo que está ligado a Deus. Essa visão destaca a importância da intenção e do contexto na comunicação, bem como o papel da graça divina na revelação da verdade.
Essas reflexões fizeram parte de sua abordagem filosófica e teológica, mostrando como a linguagem é um meio crucial na relação entre o ser humano e o divino.
Alguns séculos mais tarde, John Locke também deixou suas reflexões registradas a respeito da linguagem, inclusive retomando o conceito de “mal-entendido”.
Emsuaobra"EnsaiosobreoEntendimentoHumano",publicadaem1689,Locke(1999) discutiu a linguagem de maneira significativa, abordando sua função e limitações. Ele argumentou que a linguagem é uma ferramenta crucial para a comunicação de ideias e que as palavras servem como sinais que representam nossas ideias.
Lockedestacou que alinguagem não é perfeita, pois as palavras podem serinterpretadas de maneiras diferentes, levando a mal-entendidos. Ele enfatizou a importância de esclarecer o significado das palavras para evitar confusão nas discussões filosóficas e científicas.
Além disso, Locke distinguiu entre palavras e as ideias que elas representam, sugerindo quemuitasvezes as palavras podem serusadas sem um entendimentoclarodoquerepresentam. Para ele, a linguagem deveria ser usada com precisão para que se pudesse transmitir nosso pensamento de forma eficaz e se chegar a um conhecimento mais claro.
Essas reflexões de Locke sobre a linguagem são fundamentais para a filosofia moderna, influenciando debates sobre semântica, epistemologia e comunicação.
Em um salto temporal, chegamos ao final do século XIX e início do XX, com Ferdinand deSaussure,considerado opaidalinguísticamoderna.Seutrabalho revolucionouaformacomo entendemos a linguagem. Saussure estudou em várias universidades, incluindo a Universidade de Genebra e a Universidade de Leipzig, onde se interessou por línguas clássicas, filosofia e gramática. Seu interesse pela linguagem foi moldado por um contexto intelectual rico, que incluía o surgimento das ciências sociais e a análise estrutural.
A principal contribuição de Saussure foi a introdução de conceitos fundamentais que mudaram a formadese estudaralíngua. Dentreeles, destacamos: I)osigno linguísticodefinido como a união de um significante (a forma sonora ou escrita) a um significado (o conceito associado); II) langue e parole, distinguindo langue como um sistema abstrato da língua, as regras e convenções, de parole, ou seja, o uso individual e concreto da língua; III) sincronia e diacronia, propondo o estudo da língua em dois níveis, como, o sincrônico, ou seja, o estado da língua em um determinado momento e o diacrônico, a evolução da língua ao longo do tempo.
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Embora Saussure não tenha publicado muitos trabalhos durante sua vida, suas aulas, compiladas postumamente na obra Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 1969), tornaramse fundamentais. Essa obra influenciou não apenas a linguística, mas também diversas áreas como a semiótica, a antropologia e a filosofia.
Saussure estabeleceu as bases para o estruturalismo, que impactou diversas disciplinas, enfatizando a importância das estruturas subjacentes na análise cultural e social. Seu trabalho continua a ser estudado e debatido, refletindo sua importância duradoura na ciência da linguagem.
A partir dessas considerações iniciais, pode-se inferir que, no passado, a menção à cultura frequentemente evocava a associação exclusiva com as expressões artísticas, fossem elas eruditas, populares ou de massa (caso do cinema, dança, música etc.). Hoje, é indiscutível queoconceitodecultura seexpandiu muito e eleenglobaalíngua.Aliás, alínguaéconsiderada um dos mais importantes alicerces que estruturam a cultura humana e as etnias. A língua adquiriu status de característica intrínseca à cultura porque, sem ela, é impossível se pensar no surgimentoenamanutençãodetudooqueohomemproduzequeéconsideradoeminentemente humano.
Sobre essa inter-relação entre a língua e a cultura, citamos Barbosa (2008, p. 38) que tão bem discorreu sobre tais conceitos e sobre como os estudos do léxico e da Lexicologia3 integram a noção de cultura:
O léxico passa a ser, assim, abordado como um locus privilegiado não apenas para o conhecimento, mas para o reconhecimento de significados culturais presentes em unidades lexicais culturalmente compartilhadas entre locutores nativos, mas que nem sempre se mostram transparentes para falantes de outras línguas, pertencentes a outras culturas. [...] No nosso entendimento, esse instrumento ajuda-nos a perceber que a língua não pode ser vista como uma estrutura que independe dos seus usuários. Ela confunde-se com a cultura daqueles que a utilizam. Sob esse ponto de vista, as palavras funcionam como receptores de conteúdos culturais que nelas se aderem e a elas agregam outra dimensão para além daquelas apresentadas nos dicionários. (Barbosa, 2008, p. 38).
Na contemporaneidade, a Lexicologia tem defendido que a relação entre língua, cultura e sociedade é, na prática, inseparável, ou seja, em quaisquer situações de comunicação, por trás
3 Segundo o Novo Dicionário Aurélio (1996), léxico é, aqui neste contexto, o “conjunto de vocábulos de um idioma.”. Odicionáriodefine Lexicologia como“partedagramática quese ocupa do valoretimológico edasvárias acepções da palavra”, ou seja, o estudo do léxico.
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do léxico usado naquele momento e lugar, há sempre referências à(s) culturas e à(s) sociedade(s), do presente e do passado, que subjazem às escolhas conscientes dos falantes. Por isso, achamos por bem citar o que disseram Oliveira e Isquerdo (1998, p. 07) no que tange à ligação do léxico com valores culturais do ser humano:
O léxico passa a ser, assim, abordado como um locus privilegiado não apenas para o conhecimento, mas para o reconhecimento de significados culturais presentes em unidades lexicais culturalmente compartilhadas entre locutores nativos, mas que nem sempre se mostram transparentes para falantes de outras línguas, pertencentes a outras culturas. [...] No nosso entendimento, esse instrumento ajuda-nos a perceber que a língua não pode ser vista como uma estrutura que independe dos seus usuários. Ela confunde-se com a cultura daqueles que a utilizam. Sob esse ponto de vista, as palavras funcionam como receptores de conteúdos culturais que nelas se aderem e a elas agregam outra dimensão para além daquelas apresentadas nos dicionários. (Barbosa, 2008, p. 38).
O léxico, saber partilhado que existe na consciência dos falantes de uma língua, constitui-se no acervo do saber vocabular de um grupo sócio-linguístico-cultural. Na medida em que o léxico se configura como a primeira via de acesso a um texto, ele representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse nível da língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de uma comunidade. Isto também se aplicar às inovações tecnológicas, transformações socioeconômicas e políticas ocorridas numa sociedade. Em vista disso, o léxico de uma língua conserva uma estreita relação com a história cultural da comunidade.
Desse modo, o universo lexical de um grupo sintetiza à sua maneira de ver a realidade e a forma como seus membros estruturam o mundo que os rodeia e designam as diferentes esferas do conhecimento. Assim, na medida em que o léxico recorta realidades de mundo, define, também, fatos de cultura. (Oliveira; Isquerdo, 1998, p. 07).
Portanto, os estudos fraseológicos, como os apresentados no Dicionário das Expressões Idiomáticas Mais Usadas no Brasil (Riva,2013),desempenham um papel crucialnaexploração da relação entre léxico e cultura. Eles nos permitem entender como as expressões idiomáticas refletem e contribuem para a construção da identidade cultural de uma comunidade linguística, além de oferecer compreensão sobre a interação entre linguagem e sociedade.
3 Léxico, cultura e expressões idiomáticas
As expressões idiomáticas (EIs) são consideradas, dentre todas as dezenas de tipos de construções fraseológicas, um dos mais eficazes artifícios que tanto revelam a imaginação, a subjetividade, a criatividade e herança cultural do homem, tanto quanto as identidades culturais
e Cultura
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dos povos, numa inter-relação entre léxico e cultura que é indissociável. Além disso, os idiomatismos4 resistem ao tempo, transformando interações entre indivíduos em retratos de momentos históricos, o que nos leva a um encontro entre semântica e pragmática, como assevera a lexicógrafa e lexicóloga Cláudia Maria Xatara, em um artigo publicado em coautoria com suas orientandas à época, Paula Christina Falcão Pastore e Thais Marini Succi. (Xatara; Pastore; Succi, 2006, p. 276)
De fato, a pragmática vem contribuir com a semântica das palavras por meio das interações de fala, supostas intenções, condições sociais, sugestões sutis ou leves oposições, ironias, ditos nas entrelinhas, e assim por diante. Por isso, todo léxico está sujeito às mudanças detempo,de situações, de condições; assim, o significado deuma unidade léxica, longe de ser único e estável, dependerá da interpretação que, por sua vez, não é por todo subjetiva, visto ser fruto de um produto coletivo, resultado das concepções e visões de mundo de uma comunidade (Xatara; Pastore; Succi, 2006, p. 276).
Em muitasconstruções fraseológicas, épossível quese estabeleçaum ativodiálogocom diversos outros componentes da língua, proporcionando maior expressividade e incitando uma relação imediata e espontânea entre língua e sujeito.
A nítida relação entre cultura e os idiomatismos de uma língua é reiterada por Jorge; Jorge (1997, p. 11), porque as autoras veem que nas EIs
[...] se encontram registrados traços de ontem e de hoje que descrevem os homens, as relações entre eles e, no sentido mais lato, a própria sociedade. A idiomaticidade oferece-nos a possibilidade de enriquecer o nosso ideolecto, actualizando-o constantemente. Campo quase infinito de mistérios, de jogos, ironias... selado pelo poder que o povo tem de recriar a sua própria linguagem. (Jorge; Jorge, 1997, p. 11)
Da mesma forma, um idiomatismo inserido em um contexto determinado pressupõe uma construção da língua enquanto elemento social. O uso dessas expressões neutraliza, parcial ou integralmente, os significados das unidades lexicais que as constituem, incutindo sentidos cristalizados e compartilhados por sujeitos de uma mesma comunidade. Além disso, o idiomatismo aumenta o grau de subjetividade, revelando marcas do homem, e não apenas do indivíduo, em um período determinado de sua vida, refletindo características pessoais e coletivas. Ele solidifica valores mais perenes em uma linguagem em constante modificação e, muitas vezes, apresenta, no presente, traços culturais do passado.
Cabe ressaltar que pesquisar sobre idiomatismos é muito rico e revelador. Nem sempre dicionarizadas com precisão, tais unidades fraseológicas estão presentes nos mais variados gêneros discursivos e, quando observadas por esse viés sociológico, confirmam que por
4 “Locução, modo de dizer ou construção privativa de uma língua, e muitas vezes de origem popular ou familiar” (FERREIRA, 1996, p. 914).
e
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meio delas percebemos mais claramente os falares de um povo, numa mistura entre léxico e cultura. Isto se dá, pois tais falares estão intimamente ligados às tradições orais, o que não significa que sejam menos importantes do que quaisquer outros elementos culturais de uma determinada língua e comunidade.
Trazerde forma estruturadaas EIs em dicionários e registrá-las com concordânciasreais é promover um registro que vai além do registro linguístico. Significa congregar uma mistura de dados culturais e sociológicos para se chegar a um registro histórico de uma época, por meio do léxico, integrando pensamentos que já se perpetuam na forma de EIs àqueles que estão em destaque e caminham para a lexicalização.
4 Expressões idiomáticas, onomasiologia e motivações culturais
Elementos de uma partilha social e sincrônica, mas, também, de uma partilha de gerações, entre passado e presente, entre a língua de ontem e a língua de hoje, as EIs refletem o movimento, a evolução da língua, as metáforas do passado, os desvios lexicais, sintáticos e semânticos (Jorge; jorge, 1997). Por exemplo, fazer nas coxas, que indica serviço malfeito, feito de modo precário ou descuidado e, sem capricho, tem a suposta origem no período da escravidão quando, diz-se que, os escravizados produziam telhas modelando-as em suas coxas, sem a utilização de instrumentos adequados da olaria (Silva, 2002). Embora essa referência cultural esteja presente em diversos dicionários e artigos científicos de diferentes áreas, sua origem é controversa, pois há muitos pesquisadores que discordam da ideia de que os escravizados produziam literalmente telhas nas coxas (Rodrigues, 2013).
E se a própria língua mantém indubitavelmente relação direta com a cultura do povo queautiliza, fazendopartedesuaidentidade,énas EIs queessaidentidadecultural seevidencia mais. E da mesma forma que a língua não é neutra e está repleta de significações que refletem o meio social onde é falada, os idiomatismos devem ser entendidos como referências metafóricas ou figuradas dos aspectos sociais que regem uma comunidade de falantes. Apenas a título de ilustração, tomamos como exemplo sobre metáforas e expressões idiomáticas aquelas presentes na Bíblia. Mesmo hoje em dia, essas expressões ainda são frequentes, embora suas metáforas originais tenham se tornado opacas devido às suas origens milenares. Isso ocorre, às vezes, por conta das inúmeras traduções já feitas, desde sua criação até edições mais recentes, desse importante conjunto de livros que compõem o Novo e o Velho Testamento. Seja como for, a Bíblia é uma fonte extremamente rica para pesquisas linguísticas e acadêmicas em geral. Além de seu valor religioso e cultural, o texto bíblico oferece uma variedade de aspectos para análise, incluindo história, linguagem, retórica, poder e questões políticas. A diversidade de temas abordados na Bíblia reflete aspectos fundamentais da sociedade e da condição humana, o que a torna uma fonte inesgotável de estudo e reflexão.
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Conforme ressalta Aichele (2000, p. 12), o texto bíblico “fornece elementos sobre a história, a linguagem, a retórica, o poder, como também, questões políticas (gênero, religião, raça, sexualidade, classe)”. Por meio da análise do texto bíblico, os pesquisadores podem examinar não apenas as narrativas religiosas, mas também as dinâmicas sociais, culturais e políticas que moldaram e continuam a influenciar o mundo contemporâneo, inclusive linguisticamente, uma vez que tal texto é bastante profícuo para unidades fraseológicas como provérbios e idiomatismos.
As EIs de origem bíblica, portanto, podem ser vistas como uma ponte que faz ligação do passado com o presente, na medida em que retomam valores e aspectos culturais de milhares de anos atrás e são difundidas atualmente em dezenas de idiomas, preservando, ao menos parcialmente, sua estrutura original e parte de sua conotação. Destacamos, dentre os inúmeros exemplosqueestãononossodicionário, ano (tempo) de vacas magras, beijo de Judas, carregar sua cruz, espírito de porco, jogar pérolas aos porcos, mudar da água para o vinho, onde Judas perdeu as botas, separar o joio do trigo, ser como São Tomé, pregar no deserto etc.
O mesmo ocorre com as EIs que têm origem na Mitologia ou na História. Ainda que o usuário de tais idiomatismos não saiba com clareza a origem dos termos constituintes dessas expressões, justamente por conta do prevalecimento do sentido conotativo sobre o denotativo, as referências ao passado estão cristalizadas e podem ser retomadas em estudos históricos. Por exemplo, a EI de origem histórica agradar a gregos e troianos relaciona-se à rivalidade histórica entre os povos gregos e os troianos (dessa rivalidade também nasceu a EI presente de grego, uma referência ao cavalo de Tróia). Outros exemplos são as EIs de origem na Mitologia como, pomo da discórdia, trabalhos de Hércules e voto de Minerva.
Para identificar os temas mais recorrentes na motivação das expressões idiomáticas (EIs), as possíveis inferências culturais que influenciam seu surgimento e as variações admitidas e frequentes, acreditamos que observar as particularidades dos idiomatismos listados em torno de um mesmo conceito é fundamental. Compartilhar, ao menos em parte, o mesmo campo semântico pode nos ajudar a enxergar com maior clareza as regularidades que regem sua gênese. Ou seja, é importante saber se elas foram construídas com base em substantivos, verbos e adjetivos, se nasceram com referências culturais claras à Bíblia, História, Mitologia, ou a assuntos mais contemporâneos como os memes, reality shows, bordões de personagens e/ou deinfluenciadores digitais etc.Assim surgiuapossibilidadedeagrupamento deexpressões idiomáticas por meio da onomasiologia.
Onomasiologia é um ramo da linguística que se concentra no estudo dos conceitos e na busca de palavras ou expressões para representar esses conceitos. Em outras palavras, a onomasiologia investiga como os falantes de uma língua escolhem palavras ou termos para descrever objetos, ações, emoções, ideias, entre outros elementos do mundo ao seu redor.
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Essa disciplina analisa questões como a criação de neologismos5, mudanças semânticas, sinônimos, antônimos e a relação entre palavras e conceitos. A onomasiologia também pode examinar os fatores sociais, culturais e psicológicos que influenciam as escolhas linguísticas dos falantes.
Em resumo, a onomasiologia é o estudo das palavras e expressões a partir de uma perspectiva conceitual, investigando como os falantes atribuem significado às coisas e como selecionam termos para se comunicar. Em outras palavras, da mesma forma que Borba (2006) defende que a arquitetura onomasiológica pode nos dizer muito das relações do léxico com o conjunto das criações humanas de quaisquer naturezas, material (objetos, lendas) ou nãomaterial (hábitos, ideias, ideologias), acreditamos que organizar onomasiologicamente as EIs usuais de uma língua pode nos ajudar a observar mais nitidamente essas unidades fraseológicas em sua relação com a cultura em geral.
Por fim, atestamos que o recurso à onomasiologia das EIs pode disponibilizar informações que permitem a observação clara das diferenças culturais em uma mesma língua, falada em um só país ou países diferentes. E também entre línguas diferentes, em estudos contrastivos, embora, ao longo da história da Lexicografia, a onomasiologia tenha sido questionada, e muitas vezes deixada de lado, uma vez que se supunha que os dicionários onomasiológicos (analógicos, ideológicos) não representavam a objetividade dos dicionários semasiológicos, organizados em uma estrutura alfabética.
Defendia-se, assim, que na onomasiologia havia certa abstração, uma subjetividade idiossincrática, na classificação extralinguística e tais críticas negligenciavam as vantagens epistemológicas de uma obra organizada onomasiologicamente que, de certa forma, incita-nos a uma análise linguística mais profunda da língua. Cabe lembrar, portanto, que esse tipo de estruturação do léxico é muito rico e abrangente porque disponibiliza informações para análise das unidades lexicais quando agrupadas por meio de temas, campos semânticos, conceitos mais genéricos ou mais específicos.
O trabalho que apresentamos é o resultado de uma pesquisa detalhada sobre esse tema, conforme documentado nos estudos conduzidos por Riva (2009).
5 A onomasiologia para evidenciar valores culturais nos idiomatismos
Toda a tessitura construída pelos sentidos das EIs de uma língua fica mais evidente por meio da onomasiologia, pois percebemos que esse fenômeno linguístico é passível de ser organizado de tal forma que nos permite revelar informações semânticas e/ou pragmáticas a seu
5 “Palavra, frase ou expressão nova, ou palavra antiga com sentido novo.” (FERREIRA, 1996, p. 1189)
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respeito. No entanto, essa organização requer certos cuidados e pode ser aplicada na organização das mais diversas unidades fraseológicas existentes como, por exemplo, num dicionário de provérbios.
Uma obra que ilustra tal observação é o dicionário de provérbios chamado Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs (Delicado, 1651). Trata-se de um trabalho que apresenta cerca de 4 mil provérbios (ou adágios) “reduzidos a lugares comuns”, ou seja, agrupados ao redor de temas e com o intuito de listar, mesmo que subjetivamente, esse tipo de fraseologismo.
Essa possibilidade de organizar também outras unidades fraseológicas por meio de conceitos já ocorre há muitas décadas e, como se observa na obra de Antonio Delicado, tratase de uma maneira de se pensar e estruturar a cultura por meio de uma língua. Na obra citada, por exemplo, há conceitos como BONDADE, estabelecido para provérbios como, Cada cuba cheira o vinho que tem; POBREZA, para Neste mundo mesquinho quando ha para pam, nam ha para vinho; VERDADE, para A verdade ainda que amarga se traga etc. (Delicado, 1651).
Em alguns casos, retomando o caso das EIs na pesquisa de Riva (2009; 2013), nota-se que, apesar de determinados idiomatismos terem elementos comuns em sua constituição (uma ou mais palavras), isso não significa que se refiram a um mesmo tema e possam ser agrupadas ao redor de um mesmo conceito, de um mesmo campo semântico. Por exemplo, a expressão de tirar o chapéu concerne à ADMIRAÇÃO. Por outro lado, passar o chapéu indica NECESSIDADE e fazer caridade com o chapéu alheio, OPORTUNISMO.
Todas essas EIs trazem o substantivo chapéu em sua constituição, mas os sentidos conotativos são bem diferentes. Se se tratasse de uma organização semasiológica, muito provavelmente tais idiomatismos estariam dispostos dentro de um mesmo verbete, no caso de se tomar a lexia chapéu como entrada do dicionário e/ou palavras-chave.
Oidiomatismo armar o barraco,porsuavez,ou a variante registradano Houaiss (2001) armar uma barraca, refere-se ao conceito ESCÂNDALO, sendo usado para descrever desordem, tumulto, confusão, incitação à briga ou quebra da ordem estabelecida. Porém, se mudarmos o gênero do substantivo, do masculino para o feminino, teremos um idiomatismo com um sentido totalmente diverso: armar a barraca, que é menos frequente, é uma EI usada em referência a SEXO, mais especificamente, à excitação sexual masculina, e nada tem a ver com o conceito de ESCÂNDALO.
Também observamos que há referências muito comuns entre as EIs agrupadas em cada conceito. O substantivo mais recorrente, por exemplo, para se tratar de maneira positiva ou negativa dos múltiplos desdobramentos que dizem respeito à emotividade do homem é
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coraçãoem GENEROSIDADE, de bom coração ou coração de ouro, em EMOÇÃO, falar ao coração, emTRISTEZA, de cortar o coração ou de partir o coração,em INSENSIBILIDADE, coração de gelo ou coração de pedra. O mesmo ocorre com cabeça quando o assunto é tratar do intelecto, do discernimento ou da falta dele, em IMPRUDÊNCIA, perder a cabeça, em oposição à PRUDÊNCIA, ter a cabeça no lugar. Outra observação pertinente é a maior recorrência das EIs com nomes de animais na descrição pejorativa das pessoas, por exemplo, para o conceito APARÊNCIA, nariz de tucano, olho de peixe morto, perna de saracura, para IGNORÂNCIA, besta quadrada, burro como uma porta, mula manca, para LENTIDÃO, passos de tartaruga etc.
No conjunto das EIs usuais no português brasileiro, se levarmos em consideração suas definições e contextos de uso, podemos encontrar expressões positivas, negativas ou neutras. Assim, temos a EI fazer jogo duplo, lágrimas de crocodilo e ter duas caras, por exemplo, confirmando um valor negativo que as reúne no conceito FALSIDADE. Aliás, os idiomatismos mais frequentes no Brasil têm motivação negativa, manifestando ideias referentes a situações desagradáveis em suas múltiplas possibilidades de expressão, desde a pré-disposição de alguns indivíduos pelo olhar desfavorável, pelo pior, como no conceito de PESSIMISMO, achar-se um lixo ou nem tudo são flores, até conceitos que são vistos na cultura brasileira, mas não em todas as culturas do mundo, como negativos, caso de MORTE, com a rara exceção eufemística, passar desta para uma melhor
Gráfico 1: Conjunto total de Expressões Idiomáticas
6%
Positivas Negativas Neutras
Fonte: Riva (2009, p. 278).
No Gráfico 1, que representa o número total de expressões idiomáticas pesquisadas por Riva (2009; 2013), compreendendo um total de 1.562 idiomatismos frequentemente encontrados na web na época, podemos observar que 6% desse total corresponde às expressões consideradas neutras. Essas expressões estão agrupadas em conceitos, como FAMÍLIA, JUVENTUDE, MADRUGADA, MANHÃ, MASTURBAÇÃO, SEXO e TEMPO, cuja motivação não envolve juízo de valor.
É interessante observar ainda que há certas diferenças entre a porcentagem das motivações negativas, positivas e neutras encontradas nas EIs e no número total de conceitos (cf. Gráfico 2) em relação à valoração negativa. Verificamos 62% de EIs de prosódia semântica negativa e apenas 46% de conceitos dentro deste mesmo tipo de valoração; no que diz respeito à valoração positiva, observamos porcentagens equiparadas, com 32% de EIS e 32% de conceitos, respectivamente; e no que diz respeito ao valor dito neutro, encontramos apenas 6% de EIs mas 22% dos conceitos.
Tal fato éexplicadoporqueexistem conceitos que abrangem EIs positivas, como sangue azul, e EIs negativas, como Zé mané. O mesmo ocorre com o conceito SURPRESA, que pressupõe um fato inesperado e imprevisto, mas que, a depender do contexto, pode ser classificado como neutro, como em cair de costas, de queixo caído, ou apenas positivo, como em de tirar o fôlego, ou apenas negativo, como ficar com cara de tacho.
Gráfico 2: Conjunto total de conceitos
Positivas Negativas Neutras
Fonte: Riva (2009, p. 279).
Vejamos oGráfico2,apresentadoporRiva(2009), sobreo conjunto total deconceitos. Nele, observa-se uma predominância de expressões idiomáticas de caráter negativo relacionadas a aspectos humanos e ações. Essa constatação é resultado da análise onomasiológica das EIs do português do Brasil, revelando a representação figurada de aspectos negativos do ser humano e de suas ações como o tema central. Esta predominância indica uma tendência para expressões que transmitem juízos de valor negativos. Pode-se inferir que, no contexto da pesquisa de Riva (2009), havia uma preponderância para idiomatismos relacionados aos conceitos de AGRESSIVIDADE - e que foi desmembrado em conceitos mais específicos e também negativos - como AGRESSÃO, CRÍTICA, IRRITAÇÃO, RAIVA, VIOLÊNCIA.
Outro aspecto observado quanto à valoração das EIs é que há conceitos que apresentam, por si só, uma relação de oposição, como HONESTIDADE e DESONESTIDADE. Desse modo, todas as EIs positivas agrupadas em HONESTIDADE se opõem às EIs negativas agrupadas em DESONESTIDADE.
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A pesquisa sobre a organização onomasiológica das Expressões Idiomáticas (EIs) do português do Brasil, conforme abordada na obra 'Dicionário das Expressões Mais Usadas no Brasil: Organização Onomasiológica' (Riva, 2013), revelou um predomínio da representação figurada de aspectos negativos do ser humano e de suas ações. Notavelmente, identificamos que o conceito mais produtivo em relação ao número de EIs abordadas foi AGRESSIVIDADE. Entre os verbos mais frequentemente empregados para caracterizar agressões, tanto verbais quanto físicas, ou o agressor, destacam-se: acabar, acertar, amassar, baixar, bater, esfolar, esmagar, espumar, esquentar, meter, moer, morder-se, pegar, quebrar, rachar, ranger, rosnar, sair, sentir, soltar, tirar, tratar e xingar, entre outros. Além disso, notamos uma recorrência de partes do corpo humano em tais expressões, como braço, cabeça, cara, couro, dente, mão, nervo, osso, pele, pescoço, rosto e unha, assim como substantivos característicos, como cabresto, cavaco, chicote, couro, faca, faísca, foice, guerra, lenha, pau, pedra, porrete, raiva, rédea, sarrafo e vara, presentes em diversas EIs, como 'baixar o sarrafo', 'descer a lenha', 'espumar de raiva', 'pé de guerra', 'soltar faísca' e 'quebrar o pau', entre outras. Outros conceitos negativos predominantes são MORTE, em bater as botas, a sete palmos debaixo da terra etc., em detrimento de VIDA, são e salvo, ou EMBRIAGUEZ, encher a cara, entornar o caneco, em detrimento de SOBRIEDADE, estar limpo. E outros tantos dentre os quais se destacam: IGNORÂNCIA, IMPOSSIBILIDADE, IMPRECISÃO, IMPRUDÊNCIA, INATIVIDADE, INCERTEZA, INCOMPETÊNCIA, INCOMPREENSÃO, INDECISÃO, INDISCRIÇÃO, INFELICIDADE, INFERIORIDADE, INGRATIDÃO, INIMIZADE.
6 Valores brasileiros e valores emprestados
Ainda que as línguas troquem referências e as reconstruam, remodelando ao mesmo tempo as identidades culturais de cada nação, isso ocorre por meio da globalização. O aumento significativo dos tipos de veículos de comunicação e mídias que registram e reproduzem a língua contribui para esse fenômeno. Além disso, o aumento das migrações internas e externas que ocorrem no mundo todo dificulta uma delimitação das fronteiras no que diz respeito às mudançaslinguísticas eculturais.Noentanto,mesmodiantedessecenáriocomplexo,épossível distinguir elementos específicos da identidade cultural brasileira nos idiomatismos descritos. Existem inúmeras EIs de caráter racista, tais como, serviço de preto ou a cor não nega, ambas adjetivando pejorativamente as etnias das pessoas afro-brasileiras. Esses idiomatismos são frequentes na modalidade oral e são proferidos ou por pessoas declaradamente racistas ou por aquelas que reproduzem o racismo estrutural existente na sociedade brasileira. No geral, a maioria dos brasileiros vai responder que conhece ao menos um idiomatismo racista.
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Contudo, não é tarefa fácil encontrar esses idiomatismos publicados em textos reais, ou publicados por pessoas e/ou perfis reais na modalidade escrita, seja em jornais, revistas, na internet etc., uma vez que o racismo no Brasil é crime inafiançável. Desta forma, as pessoas evitam expor esta forma de preconceito e discriminação para não serem punidas. Retifica-se, porém, que isso não quer dizer que não existe racismo no Brasil.
Tal fenômeno é explicável. Há na Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988) uma proibição de manifestação de ideias preconceituosas, “XLII – a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, e se refere à lei n° 8.081, de 21 de setembro de 1990, que estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza.
Assim, embora se encontrem na web idiomatismos racistas, sua presença está ligada à explicação de seus significados, em sites que difundem ideias de tolerância e banimento do racismo em nosso país, ou em blogs, caixas de textos, perfis em redes sociais etc., na grande maioria das vezes, anônimos. Portanto, confirma-se que as EIs de cunho discriminatório, sobretudo na escrita, podem levar o usuário a ser punido, a depender da interação e contexto de uso dessas expressões.
Com a aplicação dos direitos das minorias, citamos os exemplos da busca por equidade de direitos pleiteados pelos LGBTQIAPN+6 no Brasil. É possível que sejam punidos usuários de expressões e/ou gírias de conotação pejorativa LGBTfóbicas, subordinado aos contextos de usos dessas EIs, como agasalhar o croquete, arrolhar uma mandioca, dar ré no quibe, queimar a rosca, sentar na boneca etc. Tais observações mostram que, por conta da evolução das leis e a busca real por igualdade, algumas restrições também já ocorrem na língua, lugar no qual o costume e a expressão se encontram, positiva ou negativamente. É preciso lembrar que as unidades lexicais não têm significado absoluto. Toda materialidade lexical da língua está a serviço da semântica, da pragmática eda interação,oquesignifica queos sentidos seconstroem no uso. Desse modo, não se deve condenar essas unidades isoladamente. Elas praticamente não existem fora do uso.
Riva (2009) constatou que as unidades fraseológicas revelam que brasileiros utilizam metáforas emprestadas de outras culturas, como por exemplo as metáforas bíblicas, e que ainda hoje são utilizadas, como nas EIs e provérbios nada de novo sob o sol, que atire a primeira pedra, um cego guiando outro cego, a fé move montanhas, a união faz a força e a carne é
6 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros / Transexuais / Travestis, Queers / Questionando, Intersexuais, Assexuais / Agêneros, Pansexuais / Não binários e mais, “+”. (Silva; Lopes, 2023; Ferreira, 2023)
de Ciência, Tecnologia e Cultura da FATEC Itu
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fraca. Outras EIs trazem elementos alheios ao nosso território, como olhos de lince e fome de leão, ambos animais nãopresentesem nossafauna. Háainda, metáforas universais, como partes do corpo humano, boca ou língua, para o campo semântico COMUNICAÇÃO ou estereótipos, com referências exclusivas daculturabrasileira, caso de rodar a baiana equeapareceagrupada no conceito ESCÂNDALO, jogar confetes, que faz parte do conceito BAJULAÇÃO, boi de piranha, expressão de origem pantaneira e que consta no conceito VÍTIMA e que divide o mesmo campo semânticocom bode expiatório,oumesmos traços presentes em EIs querevelam oolhardobrasileirosobreoutrospovosouelementosculturaisdeoutrospaíses,casode negócio da China, do conceito VANTAGEM, sair à francesa, do conceito DISCRIÇÃO, para inglês ver, referente a APARÊNCIA, presente de grego, do conceito INCÔMODO (RIVA, 2009).
Nãopoderíamosdeixardemencionarofato dopredomíniodeEIsdeconotaçãonegativa para descrever situações brasileiras sobre temas como violência, injustiça, impunidade, descrença no país, pobreza etc. O brasileiro busca se referir a si próprio e sobre os aspectos negativos da vida na atual circunstância, ou diretamente, como EI menino de rua, POBREZA, ou por meio da ironia, acabar em pizza, IMPUNIDADE, de eufemismo, estar nas últimas, MORTE, da hipérbole, olhos da cara, DINHEIRO.
7 Considerações Finais
Evidentemente, não se pretendeu aqui fornecer todos os elementos para se identificar a culturabrasileira reveladapelas EIs usadas nopaís, dada a complexidadeintrínseca a esse tema.
Coube-nos, apenas, demonstrar que os idiomatismos, de fato, manifestam sentimentos arraigados, constantemente à busca de uma maior expressividade, em nossa língua e em nossa cultura.
Acreditamos, pois, que a rigorosa observação de grande parte das peculiaridades concernentes às EIs e à identidade cultural brasileira permitirá, em pesquisas futuras, a elaboração de trabalhos mais amplos e que venham a contemplar o maior número possível de EIs ou de outras unidades fraseológicas, apresentando, de modo mais abrangente, como os idiomatismos se organizam dentro da língua portuguesa do Brasil, nos outros países lusófonos e em trabalhos contrastivos.
As EIs mostram diretamente a expressividade existente na língua, pela manifestação de sentimentos como a afetividade, emotividade, sensibilidade e subjetividade. Trata-se, portanto, de um importante objeto de estudo da estilística, porque congrega denotação e conotação, criando uma imagem abstrata construída a partir de unidades lexicais individuais. Cada idiomatismo traz em si, em alguma instância, uma carga de valor, um aspecto valorativo
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positivo, negativo ou neutro dependendo das escolhas individuais do falante. No entanto, isso não exclui o valor socialmente compartilhado, cristalizado e constante em cada EI.
As EIs, particularmente, podem ser consideradas uma clara evidência da cultura expressa nalíngua porquetrazem, em diversos casos, motivações, opacas ounão,de referências culturais do passado ou reflexos atuais que identificam uma cultura.
O agrupamento de idiomatismos ao redor de conceitos revela uma intrínseca relação entre cultura e língua. Portanto, as Expressões Idiomáticas (EIs) são fenômenos linguísticos diretamente relacionados à cultura. A identidade de um indivíduo se constrói na língua e por meio dela. Os idiomatismos disponibilizam, por meio de suas metáforas, informações não apenas sobre a organização social e os costumes de um povo, mas também sobre seu contexto histórico e a natureza psicológica das escolhas dos falantes.
Conclui-se, também, que os dados das pesquisas indicaram que, em grande parte dos idiomatismos brasileiros, há uma predominância de expressões idiomáticas (EIs) com motivação negativa a respeito do homem ou da sociedade. Além disso, observou-se uma frequência de EIs relacionadas à proibição, ironia, provocando efeito contrário ao esperado, nocividade, prejuízo, entre outros. Também foram encontradas EIs eufemísticas, que suavizam ou minimizam uma acepção menos agradável, mais grosseira ou tabuística.
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