O Vale - Edição #02

Page 23

MEMÓRIAS

OUTRAS IDEIAS

Sandro Blume Historiador

Radialista e Diretor da Rede União FM

Os primórdios do Walachei Foto: Daniela Moraes

O protagonismo calçadista

Casa enxaimel de Mathias Mombach no Walachei

Sobre a situação de pobreza existente na Prússia do século XIX, “um terço da população deixara de comer pão, e se alimentava somente de batatas. Nas aldeias da Alemanha Central, homens e mulheres se sentavam em compridos troncos, possuíam pouca roupa de cama e usavam canecas de barro ou de latão, tinham-se tornado tão acostumados à dieta de batatas e de café ralo que durante os tempos de fome os componentes dos serviços de socorro tinham que ensinar-lhes a comer feijão e mingau”. São justamente essas pessoas que, fugindo da miséria, embarcam na aventura transatlântica, se estabelecendo a partir de 1829 em São Miguel dos Dois Irmãos e nos lotes de terras mais ao norte (Morro Reuter e Walachei). Entre os imigrantes pioneiros encontramos Mathias Mombach, imigrante de 1829, natural do Grão-ducado de Luxenburgo. Fez a travessia com a esposa e os cinco filhos. Com experiência militar na Europa, foi também o

Colonos encarregados de defender o Walachei na Revolução de 1893

Rodrigo Giacomet

guardião do Walachei e dos arredores na época da Revolução Farroupilha, lutando ao lado do exército imperial. Por volta de 1858, encontramos descrição do viajante Avé-Lallemant: “A visão da Walachei é grandiosa. Dificilmente se verá mata mais selvagem do que aquela, onde dificilmente se vêem as construções na escura profundidade dos desfiladeiros(...) Sem dúvida é preciso coragem para penetrar no vale, refúgio, outrora, dos índios selvagens, onças e antas. Expulsá-los, sobretudo aos primeiros, custou muitas lutas sangrentas.” Nessa época já estavam estabelecidas no Walachei famílias como os Feiten, Wickert, Dapper, Steffen, Schmitz, Reinheimer, entre outras. Nesse ambiente do Walachei, conexões com o seu passado histórico são possíveis. Unificando natureza, necessidades de sobrevivência, história e patrimônio, encontramos as marcas particulares da cultura, do trabalho e da sociedade no contexto da imigração alemã.

Familia de Nicolau Dapper e Catharina Dapper, nascida Wagner

A

chegada dos alemães, há quase 200 anos, ao Brasil, trouxe consigo muitos hábitos e tradições germânicas para os que aqui moravam. A cuca, por exemplo, uma das delícias gastronômicas até hoje que saboreamos em nossas mesas. Porém, na coluna que agora escrevo, não versarei sobre culinária, nem sobre festas ou tradições. A hora é de falar de trabalho. Entre tantas iniciativas desenvolvidas pelo povo germânico, a indústria calçadista merece um destaque singular, afinal, qualquer pesquisa que se faça nos dias atuais denota o ano de 1824 como o marco para a instalação desse processo fabril em nosso País. O capítulo inicial desta história começa com a chegada dos alemães, em São Leopoldo. Era inegável a habilidade dos imigrantes no artesanato de couro e foi natural passar a produzir em escala industrial seus calçados em meio a outros produtos. Aqui, já tínhamos a produção associada ao couro, para o manuseio dos cavalos e inclusive nas guerras, onde até mesmo canhões eram puxados com tiras de couro, apontam registros da história. Então, natural que os sapateiros começassem a escrever a história da indústria calçadista no território brasileiro no Rio Grande do Sul. E assim foi nos anos seguintes, com a produção primeiro em escala local e depois nacional servindo de sustento para muitas famílias. Entre muitas crises e momentos de bonança, surge a exportação, fazendo o segmento mudar de patamar, tornando o

Vale Germânico . 21 de novembro 2023

Vale do Sapateiro um oásis em um país de crises econômicas. Os gáuchos sempre tiveram o protagonismo, embora em vários momentos o centro do país, a partir do seu poderio econômico e político, reivindicasse a força maior de uma indústria que emprega centenas de milhares em sua cadeia produtiva. Perdemos força, é inegável, mas os novos empreendedores do ramo do calçado, entre idas e vindas, souberam manter a história de dois séculos e de seus próprios antepassados, retomando a força de negócios gerados em solo gaúcho. Neste contexto, impossível não citar Frederico Pletsch, o Fredão, que com suas feiras na serra gaúcha reescreveu a história que alemães começaram aqui em 1824. Voltamos a ter, na terra onde os “Schuster” chegaram há 200 anos, a força do negócio calçadista, alavancando ainda mais as indústrias locais. Forjado no trabalho de muitos, na criatividade e coragem de outros tantos, seguimos honrando aquele que começaram a indústria do calçado no Brasil, há 200 anos e, tomara, nos próximos 200. Viva o calçado!

O capítulo inicial desta história começa com a chegada dos alemães, em São Leopoldo. Jornal O Vale . 23


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.