O VILA SE REINVENTA
Edson Rodrigues com a colaboração de Marcio Meirelles e texto de Jarbas Bittencourt
Ministério da Cultura e Banco do Brasil apresentam:
Edson Rodrigues com a colaboração de Marcio Meirelles e texto de Jarbas Bittencourt
Ministério da Cultura e Banco do Brasil apresentam:
Apoio
Realização
Produção Coprodução
Salvador. Bahia —2024
Edson Rodrigues com a colaboração de Marcio Meirelles e texto de Jarbas Bittencourt
Banco do Brasil apresenta e patrocina Vila Velha, por Exemplo – 60 Anos de um Teatro do Brasil, uma exposição que mostra a vida de um teatro construído e gerido por artistas, que se reinventou com a cidade e os tempos.
O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) será vizinho do Teatro Vila Velha e, a partir desse momento, as duas histórias passam a dialogar, criando um potente parque artístico, junto com outras organizações, no Corredor Cultural do Centro de Salvador.
Enquanto prepara sua instalação definitiva no Palácio da Aclamação, o CCBB já se faz presente na cidade com programação em parceria com diversos espaços culturais, a exemplo do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), que calorosamente nos acolheu para a realização desta importante exposição.
Ao realizar este projeto, o CCBB reafirma o compromisso de ampliar a conexão dos brasileiros com a cultura e com a valorização da produção cultural nacional. Viva! O CCBB chegou à Bahia.
Cultural Banco do Brasil
O Teatro Vila Velha retoma o projeto Cadernos do Vila a partir da publicação dos artigos curatoriais para a exposição Vila Velha, por Exemplo: 60 Anos de Um Teatro do Brasil, patrocinada pelo Centro Cultural Banco do Brasil. São quatro Cadernos nos quais os conteúdos são apresentados e aprofundados, oferecendo uma outra experiência ao leitor no contato com o vasto material histórico e iconográfico que compõe o Acervo do Teatro Vila Velha.
Mais do que um teatro que exibe produções artísticas diversas – o que já seria muito –, o Vila é um espaço de construção cidadã através da arte. Atento e consciente de sua responsabilidade frente às questões do tempo, tem uma história marcada pelo ativismo em seu palco, mas também em espaços públicos diversos, em Salvador, em cidades do interior da Bahia e pelo mundo afora.
Essa série de quatro publicações dentro do projeto Cadernos do Vila foi pensada para oferecer ao leitor a história do teatro, mas também das diversas relações construídas durante seu percurso de décadas. Adentrar essa história é acompanhar trajetórias de artistas e coletivos de arte, militantes sociais e políticos, gente das periferias e dos postos de comando. Também é conhecer como determinados fatos da história do Brasil levaram o Vila a se superar, reinventar-se tantas vezes quantas se fez necessário, sempre defendendo aquilo que lhe é inegociável: sua independência.
O Cadernos do Vila Volume 8 – O VILA SE REINVENTA é a quarta publicação da série desenvolvida a partir da exposição Vila Velha, por Exemplo: 60 Anos de Um Teatro do Brasil. Este número traz a segunda parte da história do Vila, iniciada no volume anterior, acompanhando-a do planejamento de seu projeto de reconstrução, em 1994, até os dias atuais. Um período em que o teatro retomou seu lugar de destaque nas artes brasileiras, como usina de pensamento e produção.
A exposição Vila Velha, por Exemplo: 60 Anos de Um Teatro do Brasil viabiliza a reunião de vasto conteúdo que passa a ser disponibilizado a pesquisadores e ao público em geral. Os novos volumes do projeto Cadernos do Vila (de 5 a 8) já são um dos desdobramentos do levantamento histórico e iconográfico empreendido para a exposição. Outros virão.
Boa leitura!
Teatro Vila Velha
Carlos Petrovich estabiliza as contas do Vila e deixa o prédio limpo e organizado, mas sem equipamentos e com uma estrutura defasada. Marcio Meirelles entende que é o momento de ter um espaço para seu trabalho, que incluía o Bando de Teatro Olodum. Ângela Andrade adere ao projeto e, juntos, buscam firmar parceria com o Teatro Vila Velha. A Sociedade Teatro dos Novos, proprietária do Vila, aceita a integração dos dois ao grupo, caso aportem valor igual à avaliação patrimonial do Teatro Vila Velha.
Inicia-se um movimento para a revitalização do teatro, protagonizado também por Chica Carelli, Cristina Castro, Gordo Neto, Hebe Alves, Marísia Motta, Tereza Araújo, Débora Landin e vários outros. O publicitário João Silva abraça o projeto Novo Vila , que ganha estrutura profissional de marketing. Artistas diversos, a comunidade e a imprensa, como há 30 anos, unemse ao Novo Vila .
Com os Shows Pruvila, artistas com carreiras iniciadas no teatro doam a arrecadação de bilheteria de suas apresentações para as obras. O Meia-Noite se Improvisa, série de espetáculos de variedades com curadoria a partir de inscrições voluntárias, tem sua estreia marcada pelo cortejo final, já ao amanhecer, conduzido por Carlinhos Brown e Os Árabes, levando o público do Teatro Vila Velha até o Campo Grande e depois retornando ao teatro. Esses eventos, além de espetáculos dos novos grupos residentes: Bando de Teatro Olodum, Cereus, Nossa Cara e Tribo de Teatro; as feijoadas; as caminhadas para o Bonfim; e vários outros encontros, como o de Branford Marsalis com o Olodum, também foram imprescindíveis para visibilizar a necessidade urgente da reforma.
O movimento toma conta de Salvador e repercute no Brasil. Chama a atenção dos administradores públicos da arte. O Governo do Estado da Bahia e o Ministério da Cultura são procurados e é apresentado um projeto de reconstrução do teatro, assinado por Carl von Hauenschild. Resolvem investir na reconstrução e mobilizam empresas estatais para entrar também com patrocínios.
Em dezembro de 1995 é iniciada a reforma e, em meio à demolição e operários transitando, o Vila não para de oferecer surpresas. A série O que o S. Bertolt Tem a Ver Comigo traz artistas de várias gerações, como Harildo Déda, Daniela Mercury, Jurema Pena, Lucélia Santos, Paulo Betti e Lúcio Tranchesi, para ler peças de Brecht. O Revilavolta , em três dias de apresentações, une bandas como Munda Mundistas, Crack, Brincando de Deus e Apaches do Tororó a cineastas, artistas performáticos e visuais, como Marepe.
O prédio, de um pavimento, passa a ter três, triplicando sua área construída. São criadas salas de ensaio, área administrativa, um café-teatro. O orçamento atinge o triplo do que tinha sido avaliado para o prédio. Dois terços dele foram empregados na compra e instalação de equipamentos de ponta, inclusive uma central de ar-condicionado. O Vila renasce e, naquele 1998, é reinaugurado com Um Tal de Dom Quixote , com Carlos Petrovich, aos 62 anos de idade, liderando um elenco de 60 pessoas.
O Teatro dos Novos reestrutura-se, o Bando de Teatro Olodum consolida-se como uma referência de teatro negro, o Viladança surge inaugurando uma política de dança no Vila. A seguir, outros grupos ocupam os espaços do Teatro Vila Velha, reconstruído a partir de duas paredes do prédio original e uma ideia.
O Teatro Vila Velha notabilizou-se como um espaço de grupos. Em sua trajetória fica evidente a escolha por projetos que não se limitam à aparição esporádica de um espetáculo ou show em determinado espaço de pauta. De maneira diferente, o teatro foi se moldando junto à formatação de diferentes núcleos de produção de arte, transformando-se em lugar de formação. No Vila desenvolveram-se movimentos, tendências, artistas, políticas públicas, maneiras de produzir e exibir arte. Nessa construção, foram muitos os coletivos que ligaram suas histórias à do Teatro Vila Velha.
A própria construção do Vila, inaugurado em 31 de julho de 1964, deu-se pelos esforços de um grupo, o Teatro dos Novos, atuante desde 1959. E quando o teatro passou a ser uma realidade, outros coletivos foram sendo formados, por vezes a partir de iniciativas já existentes na casa. Foi assim, por exemplo, com o Teatrinho Chique-Chique, dedicado a espetáculos para crianças, coordenado por Maria Manuela, atriz de João Augusto em vários espetáculos, inclusive Eles Não Usam Bleque-Tai (1964). O grupo de teatro de bonecos estreou em 1965. Em 1967, Maria Manuela realizou o espetáculo Boi de Carro , a partir de texto de Guimarães Rosa, e participou do II Festival de Marionetes e Fantoches da Guanabara (no atual Rio de Janeiro), conquistando Menção Honrosa.
Um grupo de músicos que se reuniu no Nós, Por Exemplo… continuou trabalhando em rede e criando outros shows em que atores e atrizes se revezavam lendo textos ou fazendo a luz.
A peça Stopem/Stopem , de 1968, foi a última montagem com direção de João Augusto, assinada pelo Teatro dos Novos. Nessa época, cada participante havia tomado diferente rumo
na carreira e o grupo parou de produzir espetáculos por um longo período. À época, João Augusto ficou no Vila com atores e atrizes que participaram dos elencos dos Novos, mas sem um grupo estruturado como tal. Isso não por muito tempo. A partir da montagem de GRRRRrrrrrr , em 1971, iniciou-se uma relação com o Teatro Livre da Bahia, para o qual João criou o espetáculo, e com a banda Creme, que fazia a parte musical. O Teatro Livre era formado por Sônia dos Humildes, Nilda Spencer, Kerton Bezerra e Nonato Freire, e já tinha uma história fora do Vila Velha. Depois de GRRRRrrrrrr , Sônia dos Humildes e Kerton Bezerra continuaram com João, e vieram Teatro de Cordel n º 2 (1972), Quincas Berro D’Água (1973) e vários outros; participações em festivais de teatro pelo país e excursões internacionais, em uma parceria artística que só terminou com a morte de João Augusto, em 1979.
Mesmo durante sua maior reforma, entre 1994 e 1998, o Vila Velha não deixou de fomentar a ideia da construção artística coletiva. O período marca a chegada de Marcio Meirelles e Ângela Andrade à Sociedade Teatro dos Novos, que é proprietária e administra o teatro. Nessa época, a política de ocupação por meio de coletivos ganhou novas cores e dinamismo. Em um primeiro instante passaram a ser grupos residentes o Bando de Teatro Olodum, o Grupo Cereus (coordenado pela diretora, atriz e educadora Hebe Alves) e os grupos Tribo de Teatro e Nossa Cara (ambos formados pelo Centro de Referência para a Infância e Adolescência (Cria), tendo à frente a atriz, educadora e diretora teatral Maria Eugênia Milet, a atriz Tereza Araújo e o ator Gordo Neto.
Essa nova política de ocupação do espaço foi incrementada por Marcio Meirelles, inspirada pelo histórico do próprio Teatro Vila Velha. Os momentos em que o Vila havia passado por dificuldades foram exatamente aqueles em que o grupo teatral em residência estava em crise ou se repensava artisticamente. Ter vários grupos produzindo diminuiria as chances de surgirem espaços vazios na programação do teatro. Dessa forma, a partir de 1994, o Teatro Vila Velha transformou-se em um equipamento cênico de contínua criação por parte dos coletivos, que foram tendo o espaço como seu lugar de elaboração de projetos e exibição de produções.
Durante esses quase quatro anos (1994 a 1998) o Cria ganhou
uma sede no Centro Histórico de Salvador e transferiu para lá a residência de seus grupos, Tribo de Teatro e Nossa Cara, mantendo a parceria com o Vila. E o Cereus encerrou sua carreira como grupo, sendo que alguns de seus participantes continuaram atuando em outros projetos no teatro.
Ainda em 1995, o grupo musical Confraria da Bazófia apresentou um projeto de shows no teatro. O Vila articulou a participação do grupo no Show Pruvila , feito por Tom Zé para apoiar a reforma do teatro. Jarbas Bittencourt, da Confraria da Bazófia, passou a ser artista residente do Vila, compondo e dirigindo trilhas musicais para os vários grupos da casa; e Ray Gouveia, também “confrade”, foi responsável por trilha sonora e direção musical de espetáculos do grupo que se formaria em 2000, a Companhia Novos Novos de Teatro.
Em março de 1996, o Teatro dos Novos, agora sob a direção artística de Marcio Meirelles, inicia uma reestruturação com a criação do projeto 3&Pronto e a realização de oficinas. Em homenagem aos 40 anos de eternidade de Bertolt Brecht, foi viabilizado um ciclo de leituras cênicas de peças do dramaturgo alemão – O Que o Sr. Bertolt Tem a Ver Comigo? – em uma parceria com o Instituto Goethe. No ano seguinte, um dos frutos das oficinas que vinham sendo feitas, a peça Barba Azul, estreou. Todas essas ações foram configurando o “novo velho” Teatro dos Novos.
Em 1998, Cristina Castro criou o Viladança, primeira companhia de dança residente no teatro, que estreou com 200 e Poucos Megabytes de Memória e implementou uma política e um olhar sistemático sobre a linguagem no Vila Velha. Sua criadora gerou ainda outros projetos, como o Baila Vila , o Improvilação e finalmente o Vivadança Festival Internacional , que teve 15 edições dirigidas por ela.
Em 1998 também estreou Um Tal de Dom Quixote , espetáculo especialmente construído para a reinauguração do Teatro Vila Velha. Trouxe no elenco dois atores do grupo originário do Teatro dos Novos: Carlos Petrovich, no papel-título, e Sonia Robatto, que ainda residia em São Paulo, em uma participação especial. O elenco contou com o Bando de Teatro Olodum (residente do teatro), em que Lázaro Ramos participava, interpretando Sancho Pança. Cristina Castro, que acabara de formar o Viladança, criou as coreografias da montagem e
fazia Dulcineia. O elenco tinha ainda artistas que vieram dos projetos e grupos que a essa altura já gravitavam pelo Vila. Somando elenco e músicos, mais de 60 artistas trabalhavam no espetáculo, que tomava o palco principal e as galerias, explorando a caixa cênica e outras possibilidades do novo espaço do Teatro Vila Velha reconstruído.
O processo também serviu para marcar em definitivo a nova fase do grupo Teatro dos Novos. A partir de Um Tal de Dom Quixote ficou decidido que aquele coletivo de artistas que dividiam o espetáculo com o Bando de Teatro Olodum era o novo elenco do Teatro dos Novos.
A produção no Teatro Vila Velha reinaugurado foi intensa. Em 2000, Marcio Meirelles faz a adaptação do livro Pé de Guerra , de Sonia Robatto, e dirige a encenação. Para contar a história de uma família que tem seu cotidiano alterado pela Segunda Guerra Mundial, monta um elenco com o Teatro dos Novos e 11 crianças que responderam a uma chamada pública de seleção. Nesse projeto, Marcio convidou dois então jovens artistas para o auxiliarem como assistentes de direção: Elísio Lopes Jr. trabalhava com o elenco adulto e Débora Landim, com o infantil.
Em Pé de Guerra , o desempenho do elenco de crianças foi de tal forma importante que gerou um pensamento: não seria o momento de, na nova fase do Vila, reconfigurar a exitosa, mas rápida, experiência de Maria Manuella com um grupo de teatro para as infâncias, desenvolvendo projetos no teatro? A ideia fortaleceu-se e Débora Landim foi convidada para dirigir esse coletivo, que, em uma homenagem ao grupo primeiro do Vila, passou a chamar-se Companhia Novos Novos de Teatro, tendo Sonia Robatto como referência e madrinha. Em 2001, a Novos Novos monta seu primeiro espetáculo, Imagina Só... Aventura do Fazer , e depois, como grupo residente, leva à cena as peças Mundo Novo Mundo (2003), Alices e Camaleões (2004), Diferentes Iguais (2006), Ciranda do Medo (2007) e Paparutas (2012).
O ano de 2001 ainda marca a primeira produção de outro residente: com Trilhas do Vila , um espetáculo-show com músicas criadas para montagens do teatro, o VilaVox iniciou sua construção cênica, tendo a expressão vocal como importante ferramenta estética. Coordenado pelo ator e diretor Gordo Neto e pelo músico Jarbas Bittencourt, o VilaVox estreou no Vila os espetáculos Almanaque da Lua (2002), Primeiro de Abril (2003) e Canteiros de Rosa (2006).
Em 2004, outro grupo é criado no Vila Velha. A Outra Companhia de Teatro surgiu do encontro de artistas da casa e de outros vindos por meio dos projetos Tomaladacá, que promovia o intercâmbio com grupos amadores de periferia, e Teatro de Cabo a Rabo, que fazia a ligação entre as diversas cidades da Bahia e o Vila. O Tomaladacá permitiu a junção de interesses artísticos do diretor Vinício de Oliveira Oliveira com o grupo Trilharte, dirigido por Inácio D’eus. O encontro rendeu duas montagens teatrais antes da efetivação d’A Outra Companhia - com a peça Arlequim, Servidor de Dois Patrões (2004) - como grupo residente do Teatro Vila Velha.
Com as novas ferramentas de políticas culturais, oferecidas a partir de 2007 pela recém-criada Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, e do consequente fortalecimento e consolidação de estruturas de criação, produção e difusão das artes cênicas, muitos grupos alçaram voos. Assim, o VilaVox, a Outra Companhia de Teatro e a Companhia Novos Novos de Teatro montaram sedes para desenvolvimento e apresentação de suas pesquisas. São centros de encontros e apoio a outros grupos e artistas, espaços de liberdade para criar e produzir micropolíticas para o desenvolvimento da linguagem e da economia artísticas: todos reverberam o DNA do Teatro Vila Velha.
Em 2011, o Teatro dos Novos e o Bando de Teatro Olodum eram os grupos residentes; e o Viladança constituiu-se como um núcleo de pesquisa e produção da dança. Repensado o sistema
e adequando-se à nova realidade, foi feita uma chamada pública para grupos em residência. Nessa fase, e sob esse status , vieram para o Teatro Vila Velha os grupos: Supernova, de Ciro Sales, Luisa Prosérpio e Will Brandão; NATA (Núcleo AfroBrasileiro de Teatro de Alagoinhas), liderado por Fernanda Júlia (Onysagé); e o Teatro da Queda, tendo à frente Thiago Romero.
Todos os grupos que viveram a experiência de residência no Teatro Vila Velha contribuíram para sua história e tiveram suas trajetórias reforçadas por ela. Alguns decidiram sair do teatro e continuam produzindo, outros foram desativados por circunstâncias diversas. Em comum a todos esses coletivos, a experiência no Vila Velha fortaleceu uma forma de ver a arte como construção que reflete a sociedade de maneira crítica, na busca da transformação do mundo para o melhor.
Muitos dos esforços iniciais do Teatro dos Novos, anteriores à inauguração do Teatro Vila Velha, foram amparados por projetos bem delineados. A exibição de espetáculos em bairros de Salvador e cidades do interior foi resultado dessa organização.
As muitas campanhas para construir o teatro são projetos. Somente com organização um grupo de artistas conseguiria não só erguer, como reformar por algumas vezes e manter um equipamento dedicado à cultura, à educação e às artes no Brasil.
Já antes do início do Vila, desde 1959, a Sociedade Teatro dos Novos desejava uma sede, objetivo concretizado em 1964. Nesse intervalo, diferentes iniciativas foram levadas à frente: livro de ouro, bingos, leilão de obras de arte, shows, apresentações e campanhas, como Ajude os Novos a Dar um Teatro à Bahia e a Campanha da Cadeira. Projetos, todos, que tiveram como objetivo a criação do Teatro Vila Velha.
Nesse caminho, o Vila foi construindo uma trajetória de luta e de defesa das liberdades e da equidade social. Tem participação histórica e de destaque em temas como teatro popular, bossanova, tropicalismo, negritude, diversidade, crítica social, participação política cidadã, enfim, lutas que necessitam de voz ativa na defesa de posições contra-hegemônicas. E todos esses temas foram desenvolvidos em projetos que propiciaram exposição e leitura transversais dos assuntos, em espetáculos, mostras, oficinas, intercâmbios, festivais, leituras cênicas, enfim, projetos.
No período em que necessitou ser totalmente reestruturado, foi sede, entre 1994 e 1998, de apresentações memoráveis de diversos artistas em Shows Pruvila e no Revilavolta.
À época, o teatro estava em obras e ganharia equipamento de iluminação e sonorização de ponta, como também sua caixa cênica atual, com um alto pé-direito que propicia aos encenadores voos criativos diversos, em variadas configurações de palco/plateia, como nos mais modernos teatros do mundo.
Outro projeto exitoso do Vila é o Meia-Noite Se Improvisa. De 1995 a 2004 (com exceção de 1998, ano principal das obras no Vila), sua programação semanal nos meses de verão foi um sucesso na cidade, proporcionando a centenas de pessoas, a cada edição, uma experiência artística múltipla. Da meia-noite de sexta-feira até quase o raiar do sol do sábado, o palco do Vila era ocupado por apresentações de dança, música, performance, teatro, artes visuais, shows de drag queens e transformistas, capoeira, maculelê, manifestações diversas da cultura popular, circo, cinema… enfim, o cardápio sempre foi variado.
Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Paulo Miklos, Chico César, Marina Lima, Lazo Matumbe, Bagageryer Spielberg, bandas como o Mundo Mundista e The Dead Billies são alguns dos literalmente centenas de nomes que passaram pela programação do MeiaNoite Se Improvisa em sua trajetória. E tudo em celebração das artes e da diversidade.
Depois do período entre 1995 e 2004, o Meia-Noite... teve uma edição em 2009, dentro da programação de comemoração pelos 45 anos do teatro. E no período da pandemia de Covid-19 (2020) foi realizada uma versão web do projeto. Em suas diferentes fases e edições, foi coordenado por Marísia Motta, Tereza Araújo, (Adelina) Dedé Rebouças, Débora Landim e Sara Victória.
Depois da primeira etapa das obras, com a inauguração do café-teatro Cabaré dos Novos e das salas de ensaios, vieram as Oficinas Livres e as Oficinas Vila Verão, oferecidas pelo teatro e inicialmente coordenadas por Hebe Alves e Chica Carelli.
Depois, o Viladança criou um programa de oficinas continuadas de dança para crianças e a Companhia Novos Novos de Teatro fazia oficinas e montava espetáculos. Outros grupos residentes também montaram espetáculos para esse público. Criou-se o Vilerê, um festival de artes para crianças, com ênfase nas cênicas.
Nessas experiências, as ações abrangiam o público de crianças e jovens, mas também seus pais, responsáveis e profissionais do ensino. Iniciação teatral, sensibilização pela arte, canto, dança, música, capacitações nas áreas técnicas de teatro e arteeducação foram alguns dos temas e linguagens desenvolvidos.
Na dança, vários projetos foram criados por Cristina Castro. O BailaVila, coordenado também por Rita Brandi e Selma França, em 1997, com programação mensal, homenageava diversos coreógrafos fundadores da cena de dança na Bahia e trazia ao palco intérpretes de diferentes gerações e tendências. Uma iniciativa que teve impacto na cena local, fortalecendo artistas e grupos e fomentando inclusive o surgimento de outros coletivos, como o próprio Viladança.
Além do BailaVila, outros projetos foram realizados: o Improvilação, sessões de improviso de dança e música; o Vivadança Festival Internacional, que surgiu como Mês da Dança no Vila, teve 15 edições, todas dirigidas por Cristina Castro, e gerou muitos frutos de integração internacional e fomento à dança local. E, mais recentemente, as Residências Artísticas Internacionais de dança resultaram em espetáculos que circularam internacionalmente, abrindo portas para dançarinos baianos, em sua maioria negros, moradores de bairros periféricos.
A partir de 2006, o Vila Velha levou à frente um projeto que circulou por grande parte do interior da Bahia em diferentes edições.
Apenas no seu primeiro ano, o Teatro de Cabo a Rabo realizou oficinas diversas e apresentou espetáculos em Madre de Deus, Jacobina, Santo Antônio de Jesus, Ilhéus, Camaçari, Alagoinhas, São Francisco do Conde, Feira de Santana, Rio de Contas e Bom Jesus dos Pobres. E, mais importante, conectando grupos dessas cidades entre si, numa mostra no Teatro Vila Velha. Muitos deles criaram circuitos entre suas cidades e voltaram a Salvador, cumprindo temporadas no Vila, ou em outros teatros, como O Teatro Popular de Ilhéus e o grupo NATA, de Alagoinhas.
Em relação ao teatro negro, destacam-se: as três edições do Fórum de Performance Negra, que foram encontros para pensar, propor e implementar políticas para o teatro negro, em uma parceria entre o Vila, a Cia. dos Comuns (RJ), dirigida por Hilton Cobra, e o Bando de Teatro Olodum; e o festival de artes A Cena tá Preta, que continua sendo realizado pelo Bando.
Em 2013, o Vila iniciou seu mais planejado e amplo projeto na área da formação para as artes. A universidade LIVRE do teatro vila velha nasce de uma preocupação com a diminuição de público para o teatro. Da necessidade de refletir que teatro ainda é necessário e qual formação um artista precisa desenvolver para dar conta desta questão. É criado um projeto alicerçado em metodologia própria de formação, com ênfase em atuações nos diversos territórios necessários à realização do teatro.
Por conta da pandemia de Covid-19, o Vila teve que se reinventar para cumprir sua função de repensar o mundo através da experiência da arte. Foi criado então o Novo Vila Virtual, usando as experiências com a inter-relação entre teatro e as tecnologias de transmissão e de audiovisual. E o teatro cumpriu sua missão, ajudando o público a se sentir um tanto mais vivo naquele período de confinamento.
Com a reforma, o Teatro Vila Velha revive suas origens, os tempos antes do prédio-sede, e cria o programa O Vila Ocupa a Cidade . Vem realizando uma série de projetos ao longo de 2024, reafirmando seu lugar na vida cultural do país, distribuindo suas ações em outros espaços da cidade. O Pé de Feijão, por exemplo , é um projeto que tem ido para escolas e comunidades. Nesse cenário, o Museu de Arte da Bahia (MAB) estabeleceu um contrato de colaboração acolhendo o Vila e algumas de suas produções. O Teatro Casa do Comércio, o Cine Glauber Rocha, O Teatro do Icba, o Teatro Moliére, o Teatro Sesc/Senac do Pelourinho são outros espaços ocupados pelo Teatro Vila Velha.
O Teatro Vila Velha foi criado para a cidade, para o público e para os artistas e produtores culturais. Assim, todas as linguagens sempre tiveram espaço nos palcos e salas do Vila. Pode-se perceber uma linha de atuação e reinvenção no teatro, na música, em relação às ações para a infância e juventude, bem como para a arte negra e a produção LGBTQIAPN+. Mas no que se relaciona à dança, mesmo estando a linguagem representada no Vila desde sua inauguração, percebe-se que não havia uma linha de pensamento de produção e nem uma política de ações no teatro até a chegada da coreógrafa e dançarina Cristina Castro, já na década de 1990. Nesse trajeto, muitos projetos de dança foram exitosos no Vila, mas dispersos em atuações que, ainda que importantíssimas, foram pontuais e descontinuadas.
Na programação de inauguração do Teatro Vila Velha, em 31 de julho de 1964, esteve presente a Escola de Samba Juventude do Garcia, com sua música negra e seus passistas. Quase um mês depois, o palco do Vila recebeu o Conjunto Folclórico do IEA, sob a direção de Emília Biancardi. Em setembro, foi a vez da dança moderna da Escola de Dança da Universidade da Bahia realizar uma temporada de apresentações no teatro. Também é possível destacar a dança contemporânea da coreógrafa Lia Robatto, com o espetáculo Invenções (1969); as Oficinas Internacionais de Dança Contemporânea, organizadas por Dulce Aquino; e as apresentações do Grupo Tran-Chan e de outros coletivos e artistas.
A dança popular e a dança de matriz africana – que se misturam e se confundem como denominação, de acordo com as épocas em que atuaram –, por sua vez, tiveram o teatro como espaço parceiro desde o início do Vila. Além do já citado Conjunto Folclórico do IEA, grupos como Afro Bahia, Baiafro, Folclórico Oxum, Frutos Tropicais, Chama, África Poesia e Gesto, dentre outros, trouxeram ao teatro artistas como Augusto Omolú, Armando Pekeno, Paulo Fonseca, Mestre King e Clyde Morgan.
No Vila foram realizados os concursos anuais dos passistas da Escola de Samba Juventude do Garcia, coletivo que inaugurou o palco do teatro com sua “batucada”, como anunciado à época. E a capoeira marcou presença, naquela fase inaugural do Vila, com atividades diversas, como a participação da Roda de Angola de Mestre Pastinha no espetáculo Auto da Liberdade e da Independência da Bahia, criação do Teatro dos Novos que foi a palco em 1963; e até hoje, como prática de preparação de atores e dançarinos e em eventos de troca de cordões periodicamente realizados no teatro, “terreiro” de várias rodas e vários mestres.
Dentro das realizações do Teatro Vila Velha, no período da reforma que modificou sua estrutura arquitetônica e lhe deu a formatação geral que hoje dispõe (1994-1998), o projeto BailaVila marca o momento de repensar a dança no espaço. Coordenado por Cristina Castro em colaboração com as dançarinas Rita Brandi e Selma França, o BailaVila foi uma iniciativa exitosa, que começou com um chamamento geral de acolhimento à dança, ocupando o palco com uma diversidade de estilos e gerações de artistas. Foi modelo de micropolítica de incentivo à dança, fazendo conexões importantes entre a história e o futuro. O projeto antecedeu aquele que foi o passo definitivo para o incremento da linguagem no teatro: o surgimento do grupo Viladança.
Cristina Castro, em 13 de abril de 1998, criou o Viladança, que surgiu impondo-se o desafio de propor diálogos entre as culturas local e universal através da dança contemporânea. Estreou no recém-reinaugurado Teatro Vila Velha com uma nova leitura da coreógrafa para 200 e Poucos Megabytes de Memória , espetáculo que teve uma versão anterior criada para o Balé Teatro Castro Alves. E, produtivo desde o nascedouro, no mesmo ano o grupo oferecia ao público o espetáculo Sagração da Vida Toda , que ganhou o reconhecimento do Prêmio Mambembe de Revelação Nacional (Funarte, 1998). Além de Sagração … e 200 e Poucos …, o grupo apresentou, ainda em 1998, outras duas coreografias de menor duração, como pequenos contos ou curtas-metragens: Exposição Sumária e HOT . A sequência de espetáculos de dança, logo no primeiro ano de atividades do Vila após a reforma, ajudou a trazer para o espaço um público diferente: os apreciadores da dança.
Ter na casa um grupo residente de dança fez com que a linguagem, de maneira natural, ganhasse ainda maior
importância na construção dos espetáculos teatrais do Vila, à semelhança daquele que inaugurou o espaço cênico pósreforma, em 1998: Um Tal de Dom Quixote, realização conjunta do Teatro dos Novos e do Bando de Teatro Olodum. A produção marca a continuação de uma colaboração artística entre Cristina Castro e Marcio Meirelles, que tinha se iniciado na montagem d’A Ópera de 3 Mirréis, de Brecht, criada para o Bando de Teatro Olodum. Uma colaboração artística que se mostrou, com o passar dos anos, duradoura e produtiva.
Os diversos grupos que passaram a ser residentes do Vila logo incorporaram o interesse, em suas criações, por essa linguagem múltipla em sonoridades e movimentos. VilaVox e Companhia Novos Novos de Teatro passaram a ter seus próprios coreógrafos, que em muito ajudaram a fazer do movimento parte da narrativa de seus espetáculos. Em especial, o Bando de Teatro Olodum destacou-se nesse sentido, apresentando as propostas de José Carlos Arandiba, o Zebrinha, que assinava as coreografias do grupo e ajudou a construir espetáculos contundentes e memoráveis. Em seu trabalho, criando a movimentação cênica e coreografias do Bando, pulsa uma estética de reafirmação da identidade racial como pilar do trabalho do grupo e do próprio Teatro Vila Velha.
Da mesma forma que o trabalho do Viladança, como grupo de dança, influenciou na estética das produções de teatro, o constante contato com a linguagem teatral também influenciou o Viladança. Os entrelaçamentos e as inspirações advindos da relação com outras linguagens artísticas foram sendo incorporados às criações do grupo de Cristina Castro. Mas sempre tendo a dança como fio condutor do processo.
O Viladança começou a apresentar suas criações em outras cidades do estado e do país. Conquistou o EnCena Brasil, da Fundação Nacional de Artes e Ministério da Cultura, em dois anos seguidos (2001 e 2002); o Prêmio Unesco (Prize to Promote the Arts –2003); e o edital do Prêmio Funarte-Petrobras de Fomento à Dança, em 2005; dentre outros. No período, o Viladança viabilizou, construiu e circulou com os trabalhos CO2 (2000), no qual os dançarinos interagem com um cubo de tela de seis metros de altura em cenário de Moacyr Gramacho; Hai-Cai Baião (2000), com o coletivo traçando paralelos entre a cultura regional e a construção delicada e sofisticada do haicai (breve composição
poética escrita, de origem japonesa); e José ULISSES da Silva (2002), que trata de andanças, mudanças e desafios a partir da inspiração do herói mitológico grego.
Em 2003, o grupo iniciou carreira internacional. Foi convidado para o Festival Movie Berlin, onde apresentou CO2. Logo depois, veio o espetáculo Headhunters, resultado da parceria, na criação, entre Cristina Castro e a coreógrafa alemã Helena Waldmann, com estreia no Teatro Burghof Lörrach, também na Alemanha. Após a estreia internacional, Headhunters teve longa temporada no Teatro Vila Velha.
Em 2006, o Viladança ganha, de Milton Nascimento, uma composição inédita para ser coreografada por Cristina, e ela propõe novo mergulho nas referências brasileiras com Aroeira – Com Quantos Nós Se Faz Uma Árvore. O espetáculo incorporou o audiovisual à narrativa, explorando fotogramas e fotografias, numa relação contínua com as “imagens sonoras” oferecidas pelo universo musical do artista mineiro.
Outros compositores também colaboraram com a coreógrafa em criações: Jarbas Bittencourt, em Um Tal de Dom Quixote, CO2, José ULISSES da Silva (com Marcos Póvoas) e Da Ponta da Língua à Ponta do Pé (espetáculo para crianças); João Milet Meirelles, em HABITAT e Muvuca (esse com Roberto Barreto). Artistas plásticos participaram de projetos, como no caso de ULISSES, espetáculo que contou com a colaboração do coletivo NAP (Núcleo de Artes Plásticas do Vila).
Nessa sequência de montagens e ações na área da dança, a linguagem fortaleceu-se no Teatro Vila Velha. E, em 2007, a primeira edição do Vivadança Festival Internacional – ainda com o nome de Mês da Dança no Vila – marcou um novo momento dessa relação. Com direção e curadoria artística de Cristina Castro, o festival passou a ter edições anuais e sucessivas, trazendo ao palco do Vila, e de outros espaços de Salvador, cidades do interior e de outros estados, espetáculos, oficinas e discussões acerca da linguagem, além de promover uma série de intercâmbios, residências e rodadas de negócios que ajudaram a colocar a Bahia como referência na rota internacional da dança.
Existe outro teatro que teve seu palco batizado por uma escola de samba na abertura de sua programação? Talvez. Não sabemos.
O que sabemos é que a Escola de Samba Juventude do Garcia, campeã do Carnaval, em 1964, fez o primeiro espetáculo do Vila, no dia 7 de agosto.
E, como prova de confluências, a Juventude do Garcia foi criada em novembro de 1959, mesmo mês e ano da Sociedade Teatro dos Novos.
Mas, ainda antes da apresentação da Juventude do Garcia no Vila, o Anjo Negro, Mário Gusmão, e outros atores e atrizes trouxeram suas contribuições às montagens do grupo dos Novos em praticamente todos os seus espetáculos. E tudo isso numa Bahia que até bem pouco tempo não conhecia e reconhecia esses artistas como artistas.
A partir da inauguração do Vila, a cultura negra sempre esteve presente: na participação da Juventude do Garcia e de Mário Gusmão também em Eles não Usam Bleque-tai, primeira peça do Teatro dos Novos, no Vila; nos concursos de samba-enredo e de passistas da Juventude e da Escola de Samba do Politeama; nas trocas de cordão de academias de capoeira; nas apresentações de grupos de dança tradicionais, folclóricas e afros, como o Frutos Tropicais, Chama, África Poesia e Gesto. E na participação de muitos dos poucos artistas negros que subiam aos palcos soteropolitanos: em elencos, solos, coreografando ou dirigindo. Poucos tinham visibilidade na Bahia, mas a maioria deles tem história no Teatro Vila Velha.
Até a chegada do Bando de Teatro Olodum, como grupo residente em 1994.
Novamente convergências, a peça que o grupo ensaiava era Bai Bai Pelô, terceira da trilogia que incluía Ó Paí, Ó!. A peça tratava da retirada dos moradores do centro histórico pela reforma perpetrada pelo governador Antônio Carlos Magalhães.
O grupo também dizia “bai bai” geograficamente ao território onde começou e do qual guardava a identidade e se transferia para o também histórico Teatro Vila Velha. Eram duas histórias se encontrando: a do teatro - que contava 30 anos de trabalho politicamente inclusivo em relação à raça, gênero, classe social, cultura -, e a do Bando, com seus recentes quatro anos, mas com uma trajetória que já incluía participações em festivais e excursões por outras cidades.
No Vila Velha, o grupo consolidou-se e tornou-se referência, não só pelos muitos espetáculos que montou, mas por sua atuação política antirracista.
A partir da estreia de Bai Bai Pelô foi remontada a trilogia, incluindo Essa é Nossa Praia e Ó Paí, Ó. Foram produzidas novas peças, inclusive Zumbi, que teve sua versão londrina, com a mesma equipe de criadores: Cícero Antônio (música), Zebrinha (coreografias) e Marcio Meirelles (encenação). E a versão cortejo de rua Zumbi Está Vivo e Continua Lutando, que incluía cerca de 200 participantes entre estudantes de escolas públicas e as bandas mirins do Ilê Aiyê, do Olodum, dos Filhos de Gandhi, do Araketu, do Malê Debalê, dos Apaches do Tororó e o coral do Gantois.
Zumbi foi a despedida de Mário Gusmão do teatro nesta dimensão. Logo após foi para o Orum iluminar outras esferas. Mas continua presente no Vila em energia e inspiração.
No Vila, o Bando de Teatro Olodum construiu a maior parte de seu repertório e maior sucesso, Cabaré da RRRRRrrrrraça, espetáculo que segue em cartaz desde 1977, quando estreou com a polêmica de propor o pagamento de meia-entrada para negros. Numa política afirmativa, que se discutia à época e ao mesmo tempo um chamado para que a população negra ocupasse o teatro para discutir suas questões, uma vez que somente 1% das pessoas que frequentavam teatro em Salvador naquele momento eram negras. E deu certo, a partir de Cabaré pelo menos 60% da plateia era negra, formada de público espontâneo, não de convidados.
O Bando também desenvolveu projetos no teatro: A Cena tá Preta, festival de artes negras, com ênfase nas artes cênicas e na música, a partir de 2004 e realizado anualmente. O Fórum de Performance Negra, com três edições, reunindo representantes de coletivos de teatro e dança de todas as regiões do Brasil para discutir questões pertinentes à pratica, estética, poética e política do exercício do teatro e da dança por artistas negros e negras. Desenvolveu-se também o programa formativo Oficinas de Performance Negra, inicialmente como forma de selecionar novos participantes para o grupo, mas, a seguir, para discutir questões sobre o que de fato seria uma performance negra e preparar artistas nessa direção.
A partir daí, outros grupos e muitos artistas pretos começaram a frequentar, propor, atuar e apresentar seus trabalhos no Teatro Vila Velha, berço de atores e coletivos que são referências na luta antirracista, como Lázaro Ramos, Gustavo Melo, grupo Nata, Onisajé, Thiago Romero e tantos outros.
O Teatro Vila Velha tem especial atenção ao público infantojuvenil. Desde seu surgimento, foi ocupado por produções diversas para essa faixa etária, contribuindo para a formação de diretores, elencos e plateias, além de também contribuir para a sensibilização das crianças pela arte.
O grupo Teatro dos Novos, antes da inauguração do Vila, realizou várias produções e nelas voltou-se também para o público infantojuvenil. Em 1959, encenou O Auto do Nascimento, texto adaptado por Sonia Robatto e direção de João Augusto, em um projeto que interessava ao público adulto, mas, por conta do tema e do fato de ter sido apresentado em espaços abertos, atraiu muito a atenção de crianças e jovens.
A montagem de O Casaco Encantado, em 1960, é outro marco. O texto de Lúcia Beneditti é um dos primeiros escritos para crianças na dramaturgia brasileira e sua montagem baiana teve direção de Carlos Petrovich, com apresentações em vários espaços, escolas particulares e públicas, comunidades e teatros. Um ano depois, veio a montagem de Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado, com direção de João Augusto.
No ciclo de apresentações do período de inauguração do Teatro Vila Velha, em 1964, ou seja, com o prédio já em atividade, consta Bumba Meu Boi, com alunos da Escola Parque, em evento que voltou a ocupar o teatro um ano depois. E também um festival de bandinhas infantis. Em 1965, a partir das realizações de Maria Manuela com o Teatrinho Chique Chique, foi iniciado um projeto para crianças no Vila; seu grupo passou a construir diferentes produções com foco na linguagem do teatro de bonecos.
Dando um salto na história, na década de 1980 o Vila Velha recebeu diversas produções realizadas para o público infantojuvenil. E, tanto no período de gestão de Echio Reis quanto no de Carlos Petrovich, as produções para crianças, deles próprios ou de
parceiros, ajudaram e muito financeiramente o teatro. Essas parcerias se deram, dentre outros, com Maria Manuela, Yumara Rodrigues, Lúcia de Sanctis e Manuel Lopes Pontes, assim como realizações com projetos de arte-educação, de escolas e de centros de formação de artes cênicas para as infâncias.
Até 1994, o Vila seguiu abrindo espaço para o teatro infantojuvenil, mas sem um projeto definido e contínuo que expandisse a experiência desse público com a arte. Isso começou a mudar com as oficinas promovidas a partir de 1997, coordenadas inicialmente por Hebe Alves, com inclusão de algumas voltadas para essa faixa etária.
Em 2000, Pé de Guerra, a partir de texto de Sonia Robatto, contou com um grupo de crianças participando do elenco. Para auxiliálo, o diretor Marcio Meirelles convidou Débora Landim para ser sua assistente para trabalhar com o núcleo infantil. A peça foi um sucesso e, a partir dessa experiência, Débora foi chamada para coordenar um grupo de teatro com e para crianças. Sonia Robatto foi madrinha da empreitada e contribuiu para a escolha do nome do coletivo: Novos Novos, que nascia trazendo a homenagem ao primeiro grupo do Teatro Vila Velha, o Teatro dos Novos.
A Companhia Novos Novos de Teatro representa um diferencial à cena baiana, antes só experimentado nas peças de Adroaldo Ribeiro Costa (1917-1994), com A Hora da Criança: ter um elenco formado por crianças e jovens para falar para crianças e jovens. Depois, a companhia acrescentou a participação especial de adultos em elencos que continuaram a ter, em maioria, crianças e jovens. No Teatro Vila Velha, construiu e estreou seis espetáculos como grupo residente, de Imagina Só... Aventura do Fazer (2001) a Paparutas (2012). Depois, passa a manter parcerias com o Vila e, nessa condição, estreia no teatro a peça Caderno de Rimas do João e Sem Rimas da Maria (2017), de Lázaro Ramos.
Débora Landim assina todas as encenações da Companhia Novos Novos, auxiliada por artistas-colaboradores que participam dos processos ativamente, sendo os mais constantes Marísia Motta (cenários, figurinos e participação como atriz), Ray Gouveia (criação e direção musical), Lulu Pugliese (movimentação cênica e coreografias) e Edson Rodrigues (dramaturgia).
A Paparutas da Novos Novos (2012) foi uma nova montagem do texto que Lázaro Ramos, também autor da peça, dirigiu no Vila Velha em 2002 e que foi incorporada ao projeto Teatro de Cabo a Rabo, percorrendo vários municípios da Bahia. No mesmo ano, 2002, o núcleo que viria a ser A Outra Companhia, residente do teatro, apresentou a peça Remendo Remendó. Em 2004, Zeca Abreu dirigiu o espetáculo infantojuvenil H2O – Uma Fórmula do Amor. No ano seguinte, o Viladança fez um musical coreográfico para esse público com a montagem Da Ponta da Língua à Ponta do Pé. Em 2009, o Bando de Teatro Olodum estreou sua primeira peça para o público infantojuvenil, Áfricas, dirigida por Chica Carelli.
Em 2008, como evolução do pensamento prático e ativo sobre a importância da fruição e vivência de crianças em relação a experiências de teatro e dança, foi criado o Vilerê. Festival de arte para as infâncias e adolescências, o Vilerê surge a partir de uma provocação de Gordo Neto, que dirigiu o espetáculo Rerembelde no Teatro Vila Velha, em 2005.
JARBAS BITTENCOURT
As palavras aqui vêm da memória. Do que vi e vivi como um jovem músico que pisou pela primeira vez no palco do Vila como baixista de uma banda punk chamada Dissidentes (abrindo o show da banda Cólera) e que anos depois voltaria ao mesmo palco como integrante do grupo Confraria da Bazófia. Que se tornou em 1996 diretor musical do Bando de Teatro Olodum e membro de um colegiado de artistas que geriu o Teatro pós-1998. Que assumiu a função de curador musical dos projetos de música do teatro e que aqui tem a oportunidade de contar parte dessa história incrível que é a história do Teatro Vila Velha.
No início da década de 1990, a cidade de Salvador vivia um desses momentos de efervescência cultural que não se vê toda hora e no qual a música teve um papel crucial. A música produzida para o carnaval de rua da Bahia havia dado um passo importante na descentralização do mercado fonográfico brasileiro, havia rompido fronteiras e ganhado status de gênero musical. Todas as áreas da cadeia produtiva da música em Salvador foram impactadas pelo fenômeno axé music.
Veio a reboque dessa revolução a profissionalização de músicos, técnicos, produtores, estúdios, compositores, cenógrafos, designers, profissionais de outras áreas envolvidas na gravação, difusão e circulação de música. Artistas de outros gêneros também em atividade naquele momento tiveram suas produções impactadas pelo axé, ainda que estivessem esteticamente em posição por vezes antagônica ao mesmo. A música instrumental, o rock em suas mais variadas matizes, a música de câmara (experimental ou não), o blues, a MPB, o samba e todas as fusões que eram possíveis de se imaginar no caldeirão afrodiaspórico da música baiana: tudo foi afetado.
Foi nesse contexto que o Vila ressurgiu com a força do projeto de revitalização chamado Novo Vila!. E foi para lá que todos esses artistas olharam ao mesmo tempo. Isso porque àquela altura o Vila já era um teatro desejado por artistas de todas as vertentes da música. Era como se cantar e tocar ali fosse um batismo pelo qual teriam que passar aqueles e aquelas cujas carreiras seriam abençoadas pelo que de força ancestral cerca aquele lugar.
Os ecos do que havia acontecido no palco do Teatro Vila Velha décadas atrás com o Nós, Por Exemplo... ainda se mantinham no ar, e qualquer artista da música baiana queria estar ali. Desde os que estavam protagonizando o sucesso do axé aos que estavam apenas dando os passos iniciais em suas carreiras, passando pelos que haviam se consagrado nacional e internacionalmente e que voltariam, quando convocados a contribuir para esse renascimento do teatro, capitaneado por Marcio Meirelles.
Naquele período, quem adentrava o Teatro Vila Velha levando nas mãos uma fita cassete, um CD ou um release para apresentar seu trabalho e pleitear uma pauta, para mostrar sua arte naquele palco, era recebido por um grupo de artistas que havia ocupado as suas trincheiras para dar vez a uma grande reforma que reconstruiria o teatro. E era o próprio Marcio, muitas vezes, quem receberia a cada um e a cada uma que chegava lá.
Marcio estava muito atento ao que acontecia musicalmente naquele período e com a mente sempre aberta à novidade. Acho que, para além da música que alguém lhe apresentava, ele queria saber quem eram as pessoas que estavam ali entregando o material, que forças estavam atuando nesse ou naquele projeto artístico, que movimento era “esse” ou “aquele” que ali se mostrava às vezes ainda embrionário. E, ainda, rapidamente era imaginada e proposta uma maneira de reunir alguns desses artistas que
chegavam com seus trabalhos-solo, gerando ações de cooperação musical que resultaram em diversos projetos de programação do teatro. Alguns inesquecíveis, como os encontros de Caetano Veloso com a atriz Arlete Dias; Carlinhos Brown com Gereba; e Tom Zé com a Confraria da Bazófia, para citar apenas três dos inúmeros realizados nos shows pró-reforma.
Muitas vezes alguém chegava ao teatro com o intuito de conseguir uma data para fazer um show, ou de ser selecionado para participar de algum projeto específico, como o Meia-Noite se Improvisa, e saía de lá com uma ideia na cabeça para desenvolver algo a convite do Vila.
Além dessa capacidade de Marcio como agitador cultural e programador musical, um outro traço de sua personalidade artística influenciou e influencia a forma como a linguagem musical se faz presente no Vila: o fato de ter sempre sido um entusiasta da composição de músicas originais e da execução ao vivo dessas músicas em todas as peças teatrais dirigidas por ele e por outros diretores e diretoras que viriam a atuar no Novo Vila. Foi isso que me trouxe para dentro do teatro.
Virei uma espécie de “compositor residente” do Vila entre 1996 e 2014. Enquanto eu compunha e dirigia musicalmente as peças do Bando de Teatro Olodum, da Companhia de Teatro dos Novos, do Viladança e do VilaVox, outros dois compositores assumiram de forma constante mais dois grupos: João Meirelles, com A Outra Companhia de Teatro, e Ray Gouveia, com a Companhia Novos Novos de Teatro. Nós três atuamos de forma constante ao longo de grande parte desse período, nessas posições, mas não de forma estática. Compusemos, todos, para a maioria dos seis grupos residentes, atuando sozinhos ou em parcerias.
Também não fomos os únicos. As Trilhas do Vila, por exemplo, foram compostas ao longo desse período com a participação de artistas como Capinam, Tom Zé, Carlinhos Brown, Ronei Jorge, Pablo Sotuyo, Pedro Filho, Carlos Alberto Augusto, Aloízio Menezes e outros, que você pode ir descobrindo ao investigar mais de perto os programas dos espetáculos. Conseguimos gravar trilhas sonoras no próprio Vila Velha e algumas delas começam a ficar disponíveis para a escuta a partir desta exposição.
No rastro dessa atividade de música original e ao vivo, não posso deixar de lembrar do projeto criado e tocado pela coreógrafa Cristina Castro, intitulado Improvilação, com o qual colaborei intensamente. Eram sessões de livre improvisação de dança e música que reuniram no palco principal do Vila, não poucas vezes, mais de 30 intérpretes das duas linguagens, conduzidos por nós numa investigação que nos proporcionou, e ao público, momentos grandiosos de experiência e arte.
Durante todo esse período de grande produção interna, o Vila continuou a receber shows que se tornaram históricos, como a apresentação de Ramiro Mussoto lançando seu álbum Civilização e Barbárie, e o show de Itamar Assunção chamado Preto Brás (que inclusive tocou com meu violão nesse dia!).
Importante registrar aqui a Roda de Choro do Teatro Vila Velha. Projeto idealizado e coordenado pelos musicistas e pesquisadores Juvino Alves Filho e Elisa Goritzki. Era um sucesso de público que o Cabaré dos Novos, espaço do teatro, abrigou durante muitos anos e que marcou a agenda cultural da cidade enquanto existiu.
No final dos anos 2000, o Vila afirmou-se uma vez mais como espaço de encontro e música. Os projetos Encontro de
Compositores e Vila da Música intensificaram o diálogo do teatro com a cena musical daquele período e mostraram que a música da Bahia tinha um lugar especial nos palcos do Vila.
Foi o Cabaré dos Novos do Teatro Vila Velha que pariu o Encontro de Compositores. Em 2009, diferentemente de outros momentos, o Vila não tinha projeto continuado de música em sua programação mensal. E parecia que as paredes do teatro estavam sentindo falta de acordes, melodias e ritmos para além daqueles produzidos nas salas de ensaio pelos seus seis grupos residentes.
Fui convocado por Vinicius Oliveira (que àquela época dirigia o teatro) para propor algo, e foi numa conversa no Cabaré dos Novos que, olhando e escutando o que aquele espaço parecia nos dizer sobre o que lhe cairia bem naquele momento, nasceu o Encontro de Compositores. A vocação daquele lugar sempre apontou para algo além da divisão tradicional de palco/plateia, como já havia sido experimentado nas linguagens cênicas, mas agora era a vez de a música arriscar outra relação espacial no diálogo artistas e público. Decidimos pelo abraço. Teríamos o público ao centro de uma quase roda de compositores, cada um com seu instrumento e suas canções.
À medida que íamos conversando com os departamentos do teatro sobre a ideia do Encontro de Compositores, um entusiasmo coletivo foi surgindo e, quando demos por nós, o projeto era de fato um projeto do Vila, com todos os seus departamentos envolvidos: técnica, comunicação, administração, bar e estúdio. Após alguns telefonemas e reuniões, tínhamos um time fixo de dez artistas que receberiam, ao longo de três anos, dois convidados por noite. Éramos Manuela Rodrigues, Ronei Jorge, Tiago Kalu, Carlinhos Cor das Águas, Sandra Simões, Arnaldo Almeida, Pietro Leal, Deco Simões, Dão e eu. Como
convidados tivemos tantos e tantas colegas de Salvador, do interior da Bahia e de outros estados que seria impossível elencá-los aqui sem deixar de fora alguém muito importante.
Desse fluxo constante provocado pelo encontro de músicos circulando pelo Vila toda semana, e dos pedidos de pauta para apresentações musicais que passaram a chegar de forma mais intensa nesse período, nasceu um outro projeto que trouxe para o Vila, na metade dos anos 2010, grupos e artistas das mais variadas expressões musicais em atuação na cidade. Era o Projeto Vila da Música!
O Vila da Música! teve uma dinâmica de trazer a programação musical do teatro para as quintas-feiras. Os artistas que eram convidados para participar do Encontro de Compositores na última quinta do mês se apresentavam nas quintas seguintes, criando uma divulgação em rede e permitindo uma mistura de públicos de artistas de linguagens bem diversas, como Grupo de Percussão da Ufba, Banda Velotroz, Claudia Cunha, Marcela Bellas, Álvaro Assmar, Maglore e muitos outros trabalhos musicais.
O repertório musical criado para os espetáculos dos grupos da casa e a programação musical do Vila foram nesse período de mais de duas décadas as duas asas com as quais a música no Vila voou. Voou alto, voou lindo!
Os espetáculos As Palavras de Jó (2014), um monólogo que trouxe Marcio Meirelles à cena, com música de João Meirelles, e Erê pra Toda a Vida (2015), montagem do Bando de Teatro Olodum com música minha, marcam um período de muitas mudanças que, a meu ver, deram-se no próprio modo do fazer artístico e teatral da cidade.
Agradeço por ter vivido boa parte dessa história em que pude presenciar ali, de pertinho, alguns episódios preciosos da nossa música. Ali pude compor canções que foram pra cena nas vozes de artistas como Virgínia Rodrigues e Lázaro Ramos; ali escutei Ricardo Castro, de retorno ao Brasil, expor pela primeira vez a ideia do Projeto Neojibá; ali escutei Beto Barreto esboçar uma ideia do que viria a ser o Baiana System; ali pude escutar Álvaro e Eric Asmar tocarem juntos, mostrando a força do blues na Bahia; ali a Confraria gravou e lançou seu segundo álbum autoral e tantos outros projetos; ali pude ver João Meirelles lançar o projeto Tropical Selvagem ao lado de Ronei Jorge e Lia Cunha e, pouco depois, o Plataforma Largo; ali vimos Jadsa Castro despontar com sua música antes de seguir para o mundo.
Ali, dentro do Passeio Público, em Salvador, na Bahia, há um teatro vivo! Ele respira e inspira a invenção artística;
Como nós, ele tem seus ciclos de vida;
Como nós, ele também atravessou tempos difíceis de regimes autoritários no passado e sofre com a ascensão política de grupos que acham que a arte é uma ameaça;
Como nós, ele atravessou uma pandemia que impediu as pessoas de estarem reunidas;
Como nós, ele aguarda o que virá como resposta às crises que enfrentamos como sociedade e que parecem nos arremessar sem retorno ao individualismo;
Ali, dentro do Passeio Público, em Salvador, na Bahia, há um teatro vivo e cheio de música.
É o Vila! Teatro Vila Velha de Todos os Sons.
O Teatro Vila Velha também é um espaço de formação. Atores, diretores, cenógrafos, iluminadores, músicos, coreógrafos, dançarinos e outros artistas, técnicos e gestores têm a oportunidade de desenvolver seus ofícios no Vila. Desde sua fundação, várias ações desta natureza foram se fortalecendo com o tempo. A partir de 1998, com o novo prédio do Vila, o programa de formação ganha espaço, com diversas iniciativas realizadas por projetos e pelos grupos residentes.
Em 2013, com a preocupação de formar artistas conscientes de seu papel na sociedade e da relação com o público, instala-se a universidade LIVRE de teatro vila velha, marcando um novo capítulo no campo da formação no Vila.
A LIVRE é uma iniciativa do Teatro dos Novos que visa à renovação de seu elenco e do Vila, a renovação de seus quadros. Com metodologia própria e caráter profissionalizante, a LIVRE periodicamente abre inscrições para aqueles que desejam integrar suas turmas e se capacitar para atuar nas artes cênicas, em diversas funções.
O programa de formação da LIVRE inclui atividades técnicas, gerenciais e artísticas, sempre com a percepção de que o teatro é um sistema em que o público e o palco se complementam e dialogam. Onde o coro é uma representação do público que pode se rever no palco e se repensar. Assim se formam artistas como pessoas de atuação sociopolítica. As montagens da LIVRE colocam seus integrantes em diversas funções, para além da interpretação. Os espetáculos, desde sua elaboração, servem como exercício das diferentes funções necessárias à realização da cena.
Os espetáculos são precedidos de Experimentos, apresentações públicas de processos. São apresentadas as etapas de construção de uma montagem. Proposições de cenas, leituras de textos em elaboração, células coreográficas ou musicais, debates sobre determinados temas que estão no texto escolhido para a montagem em textos complementares a ele.
Passam pela Livre muitos colaboradores, artistas ou outros profissionais que guardam em suas práticas e métodos de trabalho determinados repertórios e se dispõem a compartilhálos. Assim, para trabalhar o gesto, podem ser colaboradores que vêm do futebol, e a cena de rua que antecede a morte de Mercúcio, em Romeu e Julieta, torna-se uma partida coreografada desse jogo. E, por aí, outras experiências e experimentos surgem e as vivências desses artistas em formação se abrem junto com as muitas possibilidades que cada colaborador compartilha.
Assim, nesses 11 anos, foram apresentados em torno de 40 experimentos, em que foram organizadas as vivências com mais de 200 colaboradores. Foram levados à cena mais de 30 espetáculos, alguns assinados com o Teatro dos Novos e dirigidos por diferentes encenadores.
O Teatro Vila Velha sempre esteve preocupado em oferecer ao público o que ele ainda não sabe que quer. Propondo novas experiências e vivências no diálogo entre o palco e a plateia, mesmo quando a plateia – o lugar de onde se vê teatro – é na rua, em salas de ensaio ou outros espaços do laboratório sempre vivo, na usina de pensamento e ação cênica que é o Vila.
Preocupado com o público, criou a universidade LIVRE, que apresenta ferramentas das artes do palco, e modos de usá-las, a jovens artistas que querem se formar. Na perspectiva de que, nessa formação, a centralidade está na questão “que teatro é útil e necessário hoje?”.
Mas não basta, é preciso formar o público, e isso se faz desde a infância. A experiência com as artes é necessária e prazerosa. Para uma criança, as memórias do que viveram num teatro, numa oficina criativa, são para sempre e formam adultos mais sensíveis e críticos, e com a cultura de ir ao teatro.
Foi criado então o Projeto Pé de Feijão – Arte e Educação, por Cristina Castro. Coordenado por ela, desenvolve atividades em escolas da rede pública de ensino, em comunidades e no teatro, com acompanhamento pedagógico junto ao corpo técnico das unidades escolares e comunitárias, culminando na fruição de produções artísticas (montagens de teatro e de dança) por parte de educadores e seus educandos. O projeto, muitas vezes proporciona a estudantes a experiência de entrar pela primeira vez em um teatro.
Os professores e líderes comunitários recebem material especialmente preparado para o desenvolvimento, em sala de aula ou em suas comunidades, do conteúdo artístico que será apresentado, promovendo uma relação para além da experiência do estar na plateia, um incentivo a pensar o espetáculo e seu tema de diferentes formas, com produção de conteúdo diversificado a partir dessa vivência.
O Pé de Feijão faz com que crianças e jovens de várias comunidades, classes sociais, credos, orientações e bairros se encontrem, como humanidade, no território único e múltiplo do teatro.
Em janeiro de 2020, A Tempestade, de William Shakespeare, do Teatro dos Novos e da universidade LIVRE, estreou. A peça mostrou-se premonitória. Tanto pelo tema – estávamos, todos, próximos de vivenciar uma tempestade na sociedade –quanto pela utilização, em cena, de possibilidades diversas das ferramentas digitais.
Menos de dois meses depois, a Covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia. Isolamento social e restrições de circulação foram necessários.
Diante disso, o Teatro Vila Velha, através dos Novos, construiu sua primeira peça totalmente virtual, potencializando as experiências de muitos espetáculos com as ferramentas digitais.
Fragmentos de um Teatro Decomposto, com textos do dramaturgo romeno-francês Matéi Visniec e direção de Marcio Meirelles, estreou em agosto com transmissão ao vivo pelo Youtube e atores atuando e contracenando cada um em sua casa. Mais seis espetáculos foram realizados dessa maneira, explorando, cada um, novas possibilidades dessas ferramentas.
O Meia-Noite se Improvisa ganhou versão digital, com artistas participando da Bahia, do Brasil e de outros países. Virtualmente também foram realizadas oficinas artísticas e, em sintonia com o momento, debates sobre a relação entre o teatro e o audiovisual, dentre outros temas. Tudo transmitido virtualmente. Registros de trabalhos anteriores do Vila foram disponibilizados na rede mundial de computadores e duas exposições virtuais construídas.
Desde 1964, quando inaugurado, o Vila nunca parou. Mesmo em tempos de grandes dificuldades, reinventou formas de exercer a arte e disponibilizar sua produção à sociedade. E nem a pandemia de Covid-19 modificou essa postura.
O Vila começou antes do Vila. Ocupou as praças, os adros de igrejas e os palcos disponíveis nas cidades da Bahia, desde o surgimento da Sociedade Teatro dos Novos (1959) e até a inauguração do prédio do Teatro Velha (1964).
Nos anos 1970, através do Teatro Livre, retornou às ruas com o Teatro de Cordel. E, nos anos 1980, com Echio Reis, voltou a montar autos religiosos nas praças e igrejas.
Entre 2002 e 2004, o projeto Teatro de Cabo a Rabo foi um retorno à circulação. Por três edições, percorreu doze territórios/ cidades da Bahia e promoveu oficinas de teatro, dança, produção, iluminação e captação de recursos para projetos artísticos, além de exibição de espetáculos e da promoção da vinda dos grupos para se apresentarem no Vila.
Vivendo atualmente um novo período de recuperação de sua estrutura, surge o projeto O Vila Ocupa a Cidade e, através dele, vêm sendo realizadas ações em diversos locais: Museu de Arte da Bahia, Museu de Arte Moderna da Bahia, Teatro Sesc, Cine Glauber Rocha, Teatro do ICBA, Espaço Cultural da Barroquinha, comunidades e escolas da educação municipal de Salvador. São apresentações de espetáculos e performances, lançamentos de filmes, oficinas, o festival Vila Lacre (uma mostra da cena LGBTQIAPN+ com artistas locais e internacionais), as leituras cênicas do VilaLê,
A atuação em escolas municipais e comunidades é parte do programa de formação artística e mediação cultural Pé de Feijão - Arte e Educação. Na edição 2024, o projeto também ocupa a cidade com sessões gratuitas de espetáculos, contação de histórias e promoção de encontros com educadores em outros teatros parceiros.
O Vila Velha é um teatro de atuação, sempre foi assim. Atuação na ampla concepção da palavra e isso desde sua gestação, quando um grupo de jovens artistas se rebelou e abandonou a Escola de Teatro da Ufba para constituir uma companhia profissional, a Sociedade Teatro dos Novos, e foi para ruas, praças, comunidades da cidade e de outros municípios com seus espetáculos.
Assim, desde sua construção e inauguração em 1964, quatro meses depois do golpe militar que causou uma ruptura no processo democrático, até sua existência agora, o Teatro Vila Velha é um ato político.
Deve-se a essa postura o seu nome ser Vila Velha, em homenagem à cidade anterior a Salvador, em vez de Teatro dos Novos; como também sua inauguração com 12 espetáculos que mostravam a diversidade cultural da Bahia, sendo o primeiro uma apresentação da Escola de Samba Juventude do Garcia, em vez de uma peça do grupo, que só viria a estrear quatro meses depois: Eles Não Usam Bleque-Tai, texto sociopolítico de Gianfrancesco Guarnieri com direção de João Augusto. Uma postura que é uma marca, uma ousadia, um manifesto.
Durante o período da ditadura, o Vila recebeu reuniões clandestinas para a reorganização do movimento estudantil e no teatro foram realizados festivais de arte e música com esse fim. Também sempre acolheu artistas e os apoiou na missão de divulgar de forma livre suas ideias. Como quando, em 1971, foi para onde elenco, técnicos e público da peça Senhoritas se dirigiu, em protesto, após serem espancados pela polícia, quando encerrado um ensaio aberto realizado no Teatro Castro Alves. Em tempos de escancarada repressão, o texto havia sido censurado para todo o território nacional. Álvaro Guimarães, diretor da montagem, organizou o ensaio aberto e pretendia promover
uma discussão sobre censura ao final da apresentação. Mas, terminado o ensaio, a sala foi invadida por policiais que, de forma violenta, levaram todos os presentes à delegacia de polícia. Quando liberados, foram para o Vila e lá realizaram um protesto que repercutiu por todo o país.
Quando emergiram movimentos pela anistia, entre 1978 e 1979, o Vila foi lugar de debates e apoio para arrecadar fundos para as diversas iniciativas realizadas na Bahia em favor da liberdade e exigindo retorno daqueles que foram exilados.
Em 1995, o teatro não se calou frente às ameaças ao povo Kiriri em Mirandela, no município de Banzaê, e realizou uma semana de atividades com artistas indígenas e soteropolitanos para dar visibilidade ao que acontecia.
Criou, com o Bando de Teatro Olodum e a Cia. dos Comuns, o Fórum Nacional de Performance Negra, onde foram propostas políticas públicas para a cena preta. Também criou o festival A Cena Tá Preta depois de ter comprado a briga de oferecer meiaentrada para negros no Cabaré da RRRRRrrrrraça, peça do Bando.
Desde a década de 1960, desfiles e eventos artístico-culturais LGBTQIAPN+ têm espaço no Vila, como o Miss Universo Gay, realizado anualmente por Bagageryer Spilberg. E como os Novos trouxeram a Juventude do Garcia ao teatro, o Vivadança Festival Internacional trouxe a Batalha de Break para o palco dessa casa das artes e da liberdade.
O projeto Teatro de Cabo a Rabo reuniu, no Teatro Vila Velha, grupos de outros municípios, que visitou por meio do Teatro dos Novos, mais uma vez circulando pela Bahia. Esses grupos tiveram a oportunidade de participar de projetos e mostras no
Vila, apresentando suas produções. E, com O Que Cabe Nesse Palco, outro projeto, o Vila trouxe grupos amadores da periferia e do centro de Salvador e da Grande Salvador para encontros, oficinas e apresentação de suas produções.
O Teatro Vila Velha foi escolhido para ser o local dos julgamentos e aprovações das anistias políticas (post-mortem) dos grandes brasileiros Glauber Rocha (2010) e Carlos Marighella (2012). Foi no Vila que ambos foram absolvidos e suas famílias ouviram do Estado brasileiro um pedido formal de perdão.
As ações cidadãs do Teatro Vila Velha são numerosas. O Movimento Desocupa Salvador mobilizou a cidade, em 2012, e promoveu, no Vila, discussões sobre o uso do solo urbano. E, um ano depois, estenderam-se ao Vila os encontros do Movimento Passe Livre, realizados no Passeio Público. Já em 2014, o Vila criou o projeto Palco Aberto, que promoveu discussões no momento em que se pressentia um novo golpe, que realmente veio a acontecer com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
Em 2020, com a pandemia de Covid-19, o Vila não aceita a imobilidade e alarga o uso de ferramentas digitais, produzindo espetáculos, oficinas, debates e disponibilizando conteúdo crítico, e também por vezes de puro entretenimento, em momento social de grande tensão.
Em 2024, o teatro restringe a atuação em seu prédio devido às obras de reforma. Mas outra vez se nega a parar. Com o projeto O Vila Ocupa a Cidade vem realizando suas atividades em vários espaços de Salvador. E assim será até a sua reabertura, totalmente reformado e requalificado, no primeiro semestre de 2025.
O Vila Velha é um teatro de atuação, sempre foi e sempre será assim.
Edson Rodrigues
Jornalista, documentarista, dramaturgo, doutorando em Cultura e Sociedade pela Ufba.
Jarbas Bittencourt
Cantor e compositor, diretor musical do Bando de Teatro Olodum.
Coleção CADERNOS DO VILA
Volume 8
Projeto Editorial: Edições do Vila
Coordenação Editorial: Marcio Meirelles e Edson Rodrigues
Projeto Gráfico, Design e Capa: Ramon Gonçalves
Marca da Coleção: Luciana Aquino
Revisão de Textos: Cristiane Sampaio e Edson Rodrigues
A coleção CADERNOS DO VILA
é uma realização do TEATRO VILA VELHA através do selo Edições do Vila.
BITTENCOURT, Jarbas; MEIRELLES, Marcio; RODRIGUES, Edson. Vila Velha, por Exemplo: 60 anos de um teatro do Brasil – O Vila se Reinventa. Salvador, Edições do Vila, 2024.
Coleção Cadernos do Vila, v. 8.
ISBN Nº 978-65-984609-7-6
1. Teatro. 2. Arte. 3. Teatro Vila Velha.
TEATRO VILA VELHA – Edições do Vila
Sociedade Teatro dos Novos
Avenida Sete de Setembro 1303 – Dois de Julho
CEP: 40.060-000
Salvador – Bahia
2024
01. HAYDIL LINHARES - 4 PEÇAS de Haydil Linhares (2002)
02. O TEATRO DO BANDO - NEGRO, BAIANO E POPULAR de Marcos Uzel (2003)
03. TEATRO DE CABO A RABO: DO VILA PRO INTERIOR E VICE-VERSA org. Marcio Meirelles (2004)
04. MAIS TEATRO DE CABO A RABO org. Marcio Meirelles (2006)
05. VILA VELHA, POR EXEMPLO - 60 ANOS DE UM TEATRO DO BRASIL CONTEXTO HISTÓRICO de Ricardo Sizilio (2024)
06. VILA VELHA, POR EXEMPLO - 60 ANOS DE UM TEATRO DO BRASIL DESENVOLVIMENTO URBANO E TRANSFORMAÇÕES
de Nivaldo Andrade (2024)
07. VILA VELHA, POR EXEMPLO
- 60 ANOS DE UM TEATRO DO BRASIL O VILA, DA GÊNESE À METAMORFOSE
org. Edson Rodrigues de Edson Rodrigues, Marcio Meirelles, Lucas Fróes, Ronei Jorge e Ricardo Sizilio (2024)
08. VILA VELHA, POR EXEMPLO - 60 ANOS DE UM TEATRO DO BRASIL O VILA SE REINVENTA
org. Edson Rodriges de Edson Rodrigues, Marcio Meirelles e Jarbas Bittencourt (2024)