Pequeno guia para uma ponte entre a memória e o futuro

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ABERTURA A

BAHIA ANTES DO VILA

A partir da década de 1940, a vida cultural na Bahia passou por um processo de efervescência e transformação, sobretudo devido ao crescimento econômico gerado pela descoberta e exploração do petróleo. Salvador, a capital do estado, refletia esse período com transformações em diversos campos, como o cultural, o urbanístico e o político.

O teatro amador da Bahia foi beneficiado por esse ambiente de efervescência. Entre os anos 1950 e 1960, a Federação Baiana de Teatros Amadores era composta por vários coletivos. Esses grupos, e outros que realizavam suas produções artísticas na cidade, ajudaram a criar as bases e um público cúmplice que permitiram o passo seguinte para a linguagem, em Salvador. À época, por exemplo, os Amadores dos Fantoches tinham uma produção orientada por ensaiadores designados pelo Serviço Nacional de Teatro.

Essas experiências, anteriores à criação das escolas de arte da Universidade Federal da Bahia –UFBA, deixaram dezenas de artistas amadores criando e atuando com qualidade na cena local. E, sem dúvida, ajudou à Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob

a liderança do reitor Edgard Santos, a fomentar a profissionalização e o desenvolvimento das artes na Bahia com a criação da Escola de Teatro, a Escola de Dança e os Seminários de Música.

Inaugurada em 1956, a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia teve cursos livres até 1963, quando se formalizaram o curso de direção teatral, em nível superior, e o de formação do ator, em nível médio. Para dirigir o projeto, o reitor Edgard Santos convidou um pernambucano com experiências artísticas e acadêmicas em seu estado, em São Paulo e no Rio de Janeiro: Eros Martim Gonçalves.

Foi dentro desse ambiente que surgiu o Vila, projeto de estudantes oriundos da Escola de Teatro da UFBA.

Em 1959, no último ano do curso, os formandos

Sonia Robatto, Carlos Petrovich, Carmen Bittencourt, Echio Reis, Maria Francisca (Thereza Sá) e Othon Bastos – que já planejavam formar um grupo após a formatura – e mais Nevolanda Amorim, Mário Gadelha e Martha Overbeck decidiram abandonar a Escola de Teatro. Aos alunos juntou-se o professor carioca João Augusto Azevedo e, juntos, criaram o primeiro grupo de teatro profissional da Bahia, a Sociedade Teatro dos Novos.

Uma postura que atraiu outros jovens artistas ao grupo que se formava, como Wilson Mello, Mário Gusmão - que, com vivência e consciência no campo da negritude, muito influenciou o grupo e o diretore vários outros. Estabelecia-se a formação inicial do Teatro dos Novos.

ATO I

O VILA COMO IDEIA E ESPACO: O VILA

DOS NOVOS E DO TEATRO LIVRE

No mesmo ano do desligamento da Escola de Teatro, no dia 19 de dezembro, o grupo trouxe à cena a sua primeira criação. O Auto do Nascimento, com texto de Sonia Robatto e direção de João Augusto, estreou na cidade de Itabuna e foi apresentada nos cinemas de Ilhéus, Mataripe e Pojuca, no Club da Cidade (Catu), nos conventos da Mercês e Soledade (Salvador).

Em 1961, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, houve um golpe parlamentar, com o impedimento de João Goulart, vice-presidente eleito e sucessor legítimo, de ocupar o cargo vago.

Neste mesmo ano, o Teatro dos Novos buscava um espaço e condições para construir sua sede. O grupo já tinha montado oito peças, feito mais de

100 apresentações por várias cidades da Bahia, e uma residência em Ouro Preto (MG), onde montaram Moriana e Galvan. Por fim, depois de ocupar vários espaços, conseguiu um terreno, no Passeio Público, cedido pelo Governo do Estado da Bahia para construção de sua sede definitiva.

O Teatro Vila Velha foi construído com o apoio da Prefeitura de Salvador, de vários artistas e da sociedade baiana. Finalmente foi inaugurado em 1964, quatro meses após o golpe militar que instaurou um período de censura, repressão e autoritarismo no Brasil.

O Teatro dos Novos promovia ações que abordavam questões sociais e políticas relevantes em diálogo com o contexto nacional. Foi esse pensamento que trouxe a Batucada da Escola de Samba Juventude do Garcia para ser o primeiro coletivo artístico a se apresentar na programação de inauguração do Vila, seguido por uma diversidade de linguagens e gêneros, incluindo o show Nós, Por Exemplo…, com os então iniciantes Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé.

Durante os anos da ditadura (1964-1985), o teatro atuou como um importante local de insurgência artística. A criação de peças, eventos e movimentos

que desafiavam a censura e denunciavam as injustiças do regime, foi uma constante no espaço do Vila Velha.

Em 1968, ano marcado pelo endurecimento da ditadura com o Ato Institucional n° 5 (AI-5), o Vila passou a enfrentar uma censura ainda mais severa. Nesse contexto, o teatro teve várias peças censuradas e foi pressionado pelas autoridades a evitar temas “subversivos”. Essas intervenções não conseguiram, no entanto, sufocar a criatividade dos artistas, que passaram a desenvolver linguagens e formas alternativas para continuar a expressar-se e conectar-se ao público.

Mas esse estado de coisas muito afetou o Vila. Também em 1968, encerrou-se um ciclo da Sociedade Teatro dos Novos como criadora de conteúdos no teatro. Em abril daquele ano, o grupo assinou a última produção: Stopem/Stopem, com direção de João Augusto e Haroldo Cardoso para um texto-colagem de João. Mas, apesar de ter a assinatura do grupo em sua produção, já não havia sócios do Teatro dos Novos no elenco.

Com o fim das atividades artísticas da Sociedade Teatro dos Novos, em 1968, João Augusto passou a dirigir o Teatro Livre da Bahia. O espetáculo inicial dessa parceria foi GRRRRrrrrrr, texto colagem escrito e dirigido por João Augusto para o grupo. A banda

Creme criou a parte musical da peça e iniciou uma parceria duradoura com o Teatro Vila Velha.

Entre 1969 e 1979, o Teatro Vila Velha enfrentou crises estruturais, financeiras e políticas. E a tudo respondeu com arte.

Em abril de 1971, chuvas intensas provocaram o desabamento de uma das paredes do teatro, inviabilizando seu funcionamento. A temporada de Orin Orixá (Sinfonia dos Orixás), espetáculo que havia estreado em Belo Horizonte e trazia textos e direção de João Augusto e Mário Gusmão, foi transferida para outro espaço. A necessidade de se reformar o teatro era urgente e a classe artística baiana novamente se mobilizou em movimento que trouxe recursos e grande visibilidade à importância do teatro, levando o governo a investir na reforma do prédio.

Em janeiro de 1972, após um período de obras, o Teatro Vila Velha reabriu suas portas para o público. Com um outro grupo residente e uma série de shows, inclusive o lendário FA-TAL, de Gal Costa. Foi criado o Baile das Atrizes, que teve vida longa, coroando uma rainha a cada ano. O Baile foi uma importante fonte de renda para manter o funcionamento do teatro.

Ainda em 1972, o Teatro Livre encenou Teatro de Cordel nº 2, elogiada por Jorge Amado e considerada

por ele como uma das experiências teatrais mais relevantes do Brasil no período. Daí, em 1973, nasceu a adaptação de João Augusto para Quincas Berro D’Água, que contou com a colaboração visual de Calasans Neto.

Em 1974, a programação musical do teatro ganhou mais força com a Temporada de Verão 74, que trouxe Caetano Veloso, Luiz Melodia, Jorge Ben (Jor) e novamente Gal Costa, dentre outros. No mesmo ano, o espetáculo Um, Dois, Três, Cordel levou a literatura popular nordestina para São Paulo, em uma apresentação na Feira da Bahia no Ibirapuera.

Entre 1977 e 1978, o Teatro Livre da Bahia circulou nacional e internacionalmente, apresentando-se em festivais no Brasil, França, Itália, Colômbia e Venezuela. Paralelamente, o Vila Velha manteve-se aberto a diversos grupos teatrais e musicais, consolidandose como espaço democrático e plural. Também em 1978, foi revogado o AI-5, iniciando-se um processo de distensão. Mas as consequências do período de ditadura militar no Brasil ecoam até hoje.

No ano seguinte, na tarde de 25 de novembro, em decorrência de um câncer, morreu João Augusto, fundador e figura central do Vila. Deixou um legado importante para as artes, mas difícil de preservar.

ENTREATO

UM TEATRO GUERREIRO CONTRA

O DRAGAO DA MALDADE

Entre 1989 e 1994, com a morte de seu diretor, o Vila enfrentou transformações administrativas. Nesse cenário de incertezas, a gestão passou para Echio Reis, que assumiu o desafio de dar continuidade ao projeto artístico e administrativo do Vila.

Echio buscou manter a essência inovadora e culturalmente rica do espaço, dirigindo e produzindo montagens que dialogassem tanto com a tradição quanto com as novas demandas do público. Na gestão de Echio percebe-se um alargamento nos períodos de pautas, possibilitando uma maior permanência dos espetáculos em cartaz.

Mas, apesar do empenho de Echio, os desafios eram significativos. O Brasil vivia as tensões da abertura política. No âmbito municipal, houve um deslocamento do centro da cidade de Salvador com a construção do Centro Administrativo, do Shopping Iguatemi e da nova Estação Rodoviária na direção do litoral norte; e o Palácio do Governo foi transferido do Passeio Público (vizinho ao vila Velha) para Ondina, esvaziando o Centro Antigo, que, paradoxalmente, recebia novos teatros como o Gamboa, a Sala do

Coro, o teatro do ICBA e do ACBEU, mais modernos, confortáveis e bem equipados.

As situações física e financeira do prédio do Vila Velha se agravaram, tornando cada vez mais difícil a manutenção das atividades regulares. O teatro passou a enfrentar também questões institucionais que culminaram com a possibilidade da dissolução da Sociedade Teatro dos Novos e venda do teatro.

A solução intermediária, imposta por parte dos sócios, foi e a transferência do Vila Velha para o controle da Fundação Cultural do Estado da Bahia, como uma tentativa de garantir a sobrevivência do teatro, mas com o ônus da perda de sua independência artística e administrativa. Echio Reis e Carlos Petrovich resistiam à transferência. Defendiam a importância de preservar a autonomia do teatro, argumentando que sua identidade estava intrinsecamente ligada à liberdade de criação e à gestão independente. Para eles, a subordinação a um órgão governamental poderia comprometer a capacidade do Vila de inovar e atuar como espaço de experimentação cultural.

Essa resistência envolveu mobilizações da comunidade artística e cultural de Salvador, que reconhecia a relevância histórica do Vila e a importância de seu papel revolucionário e de rebeldia, só possível como teatro independente.

Em 1985, Echio Reis retornou ao Rio de Janeiro, deixando a gestão do Teatro Vila Velha, sem que houvesse dívidas financeiras relacionadas ao Teatro ou à Sociedade. Depois, voltou para o Sul da Bahia, onde criou o Teatro Popular de Ilhéus.

A pressão pela retomada do Vila Velha foi contínua e crescente. Por outro lado, a Fundação Cultural não cumpriu suas obrigações contratuais, acumulando dívidas com os Novos e com o fornecimento de energia, água e telefone, que foi cortado. Diante disso, houve um distrato, o governo devolveu à Sociedade Teatro dos Novos o comando do espaço e parcelou e pagou as dívidas.

Carlos Petrovich assumiu a direção do teatro e, ao longo desse período, o Vila Velha continuou promovendo apresentações, graças ao esforço de artistas e técnicos. Enfrentando uma capacidade limitada de recursos o teatro permaneceu ativo, reinventando-se diante das dificuldades.

Para garantir a sobrevivência do Vila, Petrovich investiu pesadamente no público infantil e em projetos de formação. Também se abriu a propostas de ocupação de pautas com produções variadas, inclusive algumas entre o sensual e o pornô.

Àquela altura, o Vila adentrava os anos 1990 e contava com apenas três de seus antigos sócios: Carlos Petrovich, Sonia Robatto e Thereza Sá. Novamente era necessário um novo movimento, um novo despertar, para que seu legado fosse preservado e sua história reinventada.

ATO II

O VILA SE REINVENTA:O SONHO NAO DORME

Nos anos 1990, o Brasil havia superado a crise da inflação galopante, também resultado das políticas da ditadura, e com a redemocratização conseguiu uma certa estabilidade econômica.

O Teatro Vila Velha passou por um novo período de transformação. As mudanças do desenho arquitetônico do prédio, totalmente reconfigurado, corresponderam a um processo de revitalização que adaptou o teatro às demandas culturais e artísticas mais atuais. A direção de Marcio Meirelles e Ângela Andrade trouxe novas ideias e energia ao teatro, fortalecendo-o como um espaço de vanguarda.

Artistas diversos, a comunidade e a imprensa, como há 30 anos, unem-se ao Novo Vila. Com os

Shows Pruvila, artistas doam a bilheteria de suas apresentações para o projeto. O Meia-Noite se Improvisa, shows de variedades com inscrições abertas, tem na sua estreia um cortejo final, conduzido por Carlinhos Brown e os Zárabes, levando e trazendo o público do Teatro Vila Velha ao Campo Grande. Somam-se a esses eventos espetáculos dos novos grupos residentes - Bando de Teatro Olodum, Cereus, Nossa Cara e Tribo de Teatro; as feijoadas; as caminhadas para o Bonfim; e vários outros encontros. Tudo mostrava a necessidade urgente da reforma.

O movimento toma conta de Salvador e repercute no Brasil. Chama a atenção. É apresentado um projeto de reconstrução do teatro, assinado por Carl von Hauenschild, ao secretário de Cultura do Estado, Paulo Gaudenzi, e ao Ministério da Cultura. O poder público resolve investir na reconstrução e mobiliza empresas estatais para serem patrocinadoras do novo empreendimento cultural.

Em dezembro de 1995 é iniciada a reforma. O prédio passa a ter salas de ensaio, área administrativa e um café-teatro. Uma nova caixa cênica flexível, modernos equipamentos e praticáveis - com altura variável - permitem configurações diversas de palco e plateia, ampliando as possibilidades para encenações.

O Vila renasce e, em 1998, é reinaugurado com a peça Um Tal de Dom Quixote, com Carlos Petrovich, aos 62 anos de idade, no papel título, liderando um elenco de 60 pessoas, que incluía Lázaro Ramos, com 19 anos, como Sancho Pança; e Cristina Castroque introduzia uma política para a dança no Vila -, no papel de Dulcinéia.

O Teatro dos Novos reestrutura-se, o Bando de Teatro Olodum consolida-se como uma referência de teatro negro, o Viladança surge. A seguir, a Companhia Novos Novos de Teatro, o VilaVox, a outra Companhia de Teatro ocupam o Teatro Vila Velha, reconstruído a partir de duas paredes do prédio original, uma ideia e a mobilização de muita gente.

Novamente o Vila Velha se posicionou como espaço acessível e inclusivo, abraçando movimentos sociais e promovendo atividades para públicos que, historicamente, estavam excluídos dos grandes teatros. Para além das apresentações cênicas, acontecem oficinas, debates, festivais e eventos, nacionais e internacionais.

Século XXI adentro, o Vila continua a expandir seu papel, promovendo projetos como o Festival Vilerê, destinado às infâncias; o Vivadança Festival Internacional, criado no Vila em 2008, por Cristina Castro, que ganha autonomia e outros espaços

e cidades em suas 15 edições; também Cristina realiza o Pé de Feijão, projeto de formação de crianças a partir da arte.

A criação da universidade LIVRE de teatro vila velha, em 2013, sistematiza um programa de formação para novos atuadores, capazes de discutir o momento atual através do teatro, além promover também a qualificação em outras habilidades necessárias à realização do espetáculo: técnicas de palco, gestão, produção, comunicação, entre outras.

Em 2020, durante a pandemia, novamente o Vila se reinventa como Novo Vila Virtual, experimentando o espaço virtual para realizar espetáculos, oficinas e debates.

Em 2024, o teatro passa por uma nova requalificação, desta vez patrocinada pela Prefeitura de Salvador. Preserva-se sua caixa cênica de múltiplas possibilidades em uma edificação que integra as novas diretrizes de acessibilidade e segurança. No segundo semestre de 2025, o Teatro Vila Velha será entregue ao público, em sua mais nova configuração, dando continuidade à sua trajetória de quem acredita que o mundo precisa da contundência disruptiva da arte.

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parceria
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Pequeno guia para uma ponte entre a memória e o futuro by Teatro Vila Velha - Issuu