"Água funda" TAG Curadoria - Abril/2024

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ABR 2024 Água funda

TAG — Experiências Literárias

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Publisher Rafaela Pechansky

Edição e textos Ana Lima Cecilio

Colaboradoras Laura Viola e Sophia Maia

Designer Bruno Miguell Mesquita

Capa Santídio Pereira

Revisores Antônio Augusto e Liziane Kugland

Impressão Impressos Portão

Olá, tagger

Oque um livro escrito no longínquo ano de 1946 tem a nos dizer hoje? Se o livro é como este Água funda, de Ruth Guimarães, a resposta é simplesmente: o poder da literatura.

Ele ensina que um bom livro deve inventar uma linguagem, com os tijolos que a língua falada pelo povo, genuína, sincera, nos dá em cada esquina, em cada estrada, em cada curva do caminho. Ele ensina que as histórias são fantásticas justamente porque aconteceram por aí e que, quando um escritor recolhe acontecimentos para plantar nas páginas dos livros, o que brota é uma árvore frondosa, cheia de frutos dos quais nascerão novas histórias. Ele ensina que a mais fina literatura nasce das vivências reais e que é preciso saber escrevê-las para que vinguem, para que façam sentido e permaneçam vivas tantos anos depois.

Quando nosso curador do mês, o Emicida, indicou este belíssimo livro da Ruth Guimarães para o clube, pareceu curioso que alguém tão proprietário da cultura pop, do que se fala nas ruas hoje, escolhesse um livro de quase 80 anos de idade. Mas, ao lê-lo, ao trabalhar com ele, vimos que seus méritos estão no ritmo, no povo, na terra, na resistência e no infinito prazer de contar e ouvir histórias. E isso, aprendemos a cada dia, não tem data.

Experiência do mês

ABRIL 2024

Seu livro além do livro: para ouvir, guardar, expandir, crescer.

Mimo

TagRô: O tarô literário da Tag

O tarô é composto por arcanos que, escolhidos aleatoriamente, mostram rumos na nossa vida. E com os livros também não é assim?

Cada autor nos mostra algo especial, alerta sobre perigos, dá dicas importantes. Foi assim que nasceu o TagRô: para que a literatura seja seu grande norte.

Para quem sabe que o livro sempre rende boas conversas

Projeto gráfico

Água funda é um livro muito ligado à terra, às plantas, às pessoas que entendem a natureza. As pinturas do artista plástico Santídio Pereira trazem a ideia de uma beleza quase sobrenatural, com delicadeza e lirismo.

APP

Visite o app para saber mais sobre o livro e participar da comunidade

Para ajudar a embalar a sua leitura

PODCAST
PLAYLIST

sumário

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Por que ler este livro

Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais

A autora

Juliana Borges escreve sobre se aproximar de Ruth Guimarães

Entrevista com o curador

Um pouco mais sobre a escolha do curador

Cenário

De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler

Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês

Leia. Conheça. Descubra.

Guimarães Rosa

Vem por aí

Para você ir preparando seu coração

Madame TAG responde

Dor de amor? Dúvidas na vida? Nosso consultório literosentimental responde com dicas de livros

“Ruth Guimarães nos prende porque tem a capacidade de representar a vida por meio da ilusão literária, graças à insinuante voz narrativa que inventou e desperta a credibilidade do leitor, introduzindo-o no mundo dos Olhos D’Água, com a sua história de fazendeiros, empresários, trabalhadores, ao longo das gerações, segundo o ritmo eterno de prosperidade e decadência, alegria e tristeza, guiados pela mão cega de um destino que regula o jogo de todos nós entre o bem e o mal.”

Por que ler este livro 4

Por que ler este livro

Este é um livro que junta uma experiência literária deslumbrante (o romance, a loucura, a aventura) com uma baita análise da realidade social (a decadência do ciclo do café, a escravidão, a dureza da vida). Mas é muito mais: o que Ruth Guimarães faz com maestria é trazer uma parte importante da história do Brasil sem pretender explicá-la, mas trazendo o que há de mais bonito na nossa brasilidade. E, nessa delicadíssima construção, ela reproduz o sentimento abismado que todos nós temos em relação ao mundo, porque ele é espantoso de fato, e muitas vezes a falta de explicação é o mais bonito.

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Reencontro com Ruth Guimarães

Escritora paulista, mulher negra ‘e caipira’, foi invisibilizada pela academia e pelo mundo literário.

Um dos meus passatempos preferidos, quando estudante de letras, era passar na biblioteca da faculdade, escolher um corredor aleatório e percorrê-lo olhando os livros como se estivesse desbravando um território. Se algum título chamava a atenção, folheava as páginas, lia a orelha, às vezes a introdução. Por vezes, quando o assunto me atraía, mas não tinha tanta certeza, puxava um dos banquinhos disponíveis e avançava para o primeiro capítulo. Se essa etapa me prendesse, separava o livro para levar comigo.

Em mais uma dessas visitas desbravadoras aleatórias, fiquei frente a frente com o Dicionário da mitologia grega, de Ruth Guimarães. Na folheada, a página de encontro trazia um verbete sobre o deus Dionísio. Esse valia puxar o banquinho, pensei. Ali, descobri que o deus que conhecia como grego tinha lá seu pé na Ásia e na África e uma história curiosa sobre ter passado o final de sua gestação nas coxas do pai. Você pode estar achando isso bizarro, caso não conheça o mito de Dionísio, ou Baco, mas sua divindade advém do todo poderoso Zeus. Logo, passar os últimos meses de gestação nas coxas do pai não é nada absurdo, mas esperado numa mitologia na qual Afrodite, uma das deusas mais importantes e populares, nasceu da espuma formada pelos órgãos genitais de Urano, que seu filho, o titã Cronos, cortou fora e atirou longe.

Se eu já pendia às letras clássicas, aquela leitura foi um impulso precioso. Mesmo tendo realizado um estudo e uma tradução sobre o mito de Dionísio como iniciação científica, ninguém nunca tinha me falado especificamente sobre a autora, de modo que Ruth Guimarães não estava entre meus autores de referência citados. What a shame!

A autora 6

TANTO TEMPO

Meu reencontro com Guimarães se deu muitos anos depois, quando meu ativismo já havia tomado forma mais pujante. E, para meu espanto, descobri que a autora que tinha dado aquele último e decisivo impulso na minha paixão pelo mundo greco-latino antigo e clássico era uma mulher negra, assim como eu. Essa descoberta me fez querer conhecer mais daquela mulher que me contou, de modo tão apurado, os mitos mais importantes do nascedouro do mundo ocidental.

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©José Botelho Neto

Em 2008, Guimarães foi eleita para a Academia Paulista de Letras e atuou como secretária de Cultura da cidade de Cachoeira Paulista, ponto forte de sua trajetória. Esse é um ponto de virada do meu reencontro com a escritora, ainda que não definitivo. Pelas palavras do mestre Antonio Candido, fui apresentada ao seu livro de estreia, Água funda. A narrativa me levava a Mário de Andrade e seu Macunaíma e, por vezes, até a Jorge Amado. As mesmas perguntas martelavam e interrompiam a leitura: Por que tanto tempo? Por que não a conheci antes?

A ‘BRUXA’ DO VALE DO PARAÍBA

LANÇOU 51 LIVROS, ENTRE ROMANCES, CRÔNICAS, TRADUÇÕES, CONTOS E ENSAIOS

Seu romance de estreia teve um impacto profundo. Primeira tiragem de três mil exemplares, livro mais vendido de 1946, o mesmo ano em que Guimarães Rosa lançou Sagarana — os dois realizaram, inclusive, sessões

conjuntas, Rosa e Guimarães, a Ruth. Com a ótima recepção da crítica à época, o “por quê?” ressoava ainda mais.

IMENSA CONEXÃO

A “bruxa” do Vale do Paraíba era descrita, por críticos e amigos escritores, como mulher da observação, do estudo e da leitura, que lançou 51 livros, entre romances, crônicas, traduções, contos e ensaios. As principais características de suas obras são o folclore, a crítica social, o enaltecimento da oralidade, da cultura negra e indígena e o realismo fantástico. E por que não falamos dela?

O jornalista e ensaísta Tom Farias, responsável por uma das homenagens a Ruth Guimarães em seu centenário, em 2020, foi cirúrgico: a autora “foi invisibilizada pela academia e pelo mundo literário”.

Nesse meu segundo reencontro com Guimarães, que considero no tempo do agora, muitos outros aspectos de sua vida me atravessaram. A escritora

é descrita como pessoa dedicada ao ofício o tempo todo, em processo de produção textual ininterrupta, que não sabia andar de bicicleta nem dirigir e morou na região do Jabaquara, onde moro hoje em dia. Além disso, Guimarães foi responsável pela criação de irmãos, arrimo e suporte de familiares. Quando afirmava ser indissociável de si o fato de ser uma mulher negra, que complementava com “e caipira”, sinto uma imensa conexão e torno a perguntar: por que tanto tempo?

Ruth Guimarães tinha no ritmo da escrita um projeto, mais do que característica literária: escreveu para diversos periódicos importantes do país, gostava de plantas e suas potencialidades de cura, teve uma relação profícua com Mário de Andrade, lecionou por mais de trinta anos e foi uma ferrenha defensora da educação como caminho para a emancipação. Se, de um lado, discordo de algumas de suas posições políticas relacionadas à problemática sobre classe e raça no país, por outro, consigo compreendê-la plenamente. Identifico algo de geracional, já que em seus textos também escuto a voz de minha avó.

Na impaciência que afirmava lhe ser característica e na alegria que defendeu como marca ancestral, Guimarães deixou, para além de sua rica e vasta produção literária, um importante ensinamento: do conhecimento como caminho emancipatório indispensável e incontornável. Assim, termino este começo de conversa com sua obra com suas próprias palavras e voz: “Agarre o livro. É uma arma”. Façamos.

Juliana Borges é escritora e pesquisadora em Antropologia, estuda política criminal e relações raciais. Feminista antipunitivista e antiproibicionista. Autora dos livros Encarceramento em massa e Prisões: espelhos de nós. Foi secretária adjunta de políticas para as mulheres e assessora especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo.

Esse texto foi publicado originalmente em dezembro de 2023 na Quatro Cinco Um, a revista dos livros.

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©José Botelho Neto

“Resgatar Ruth é resgatar o Brasil”

Emicida, o curador do mês, fala sobre como ler Água funda ensina sobre a vida em comunidade e sobre como é preciso estar encantado para produzir beleza.

A Ruth Guimarães é uma autora negra, que publicou seu livro no mesmo ano que o Sagarana, do Guimarães Rosa, mas caiu no esquecimento durante décadas. Qual a importância de resgatar autores como ela?

É verdade, mas eu procuro fazer uma análise mais ampla da situação, porque senão parece que a única coisa que Ruth Guimarães fez foi ser vítima. E ela era protagonista da vida dela. Ela obviamente foi prejudicada pelo estado das coisas, pela pouca abrangência do mercado editorial de seu período, pelo analfabetismo absurdo da época, pelo pouco incentivo à leitura que esse país dá (aliás, dizem que o brasileiro lê pouco, mas, pelo tanto de incentivo que o Brasil dá à leitura, o brasileiro até que lê bastante, viu…).

Estamos falando de uma escritora que publicou, entre coisas de sua autoria e traduções, 51 livros, foi elogiada por gente como Antonio Candido e Mário de Andrade. A qualidade da caneta dela era absurda, e a forma como ela elabora os diálogos é de uma sensibilidade que até hoje é fora da curva. Entre o português falado e o português escrito, essa mulher desatou um nó literário que poucos conseguem desatar, quando nos referimos ao falar brasileiro posto em palavras escritas. É óbvio que não há situação que o racismo não possa piorar, mas ela definitivamente foi maior que isso, e temos que ter cuidado para não limitá-la a ser coadjuvante dentro da própria história.

Resgatar Ruth, resgatar uma sensibilidade como a dela é resgatar a nós mesmos e o Brasil, pois ela é o tipo de personagem que alimenta a utopia brasileira, a possibilidade de termos um amanhã melhor que ontem.

Entrevista com o curador
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©Wendy Andrade 11

O livro Água funda foi publicado em 1946, mas é de uma atualidade incrível. O que um livro de quase 80 anos tem a nos dizer?

Acredito que a primeira grande provocação que esse livro traz é relativa ao resgate de certo misticismo de um território conhecido como Paulistânia, que se perdeu quando São Paulo passou a ser conhecida como essa megalópole de hoje, como a cidade que não dorme e que nunca para. Embora a historiografia mais conservadora tenha, ao longo do tempo, reivindicado isso com um viés de idolatria ao bandeirantismo, existem outras dimensões para se pensar esse território que não é pequeno. A figura do caipira, aqui, não é um estereótipo, como o Jeca Tatu dos primeiros textos de Monteiro Lobato, algo que depois foi ganhando mais complexidade na obra do próprio Lobato e fazendo do Jeca Tatu um Zé Brasil, termo que ele chegou a usar e é reflexo de um povo muito sofrido. Acho que o Mazzaropi também deu um grau de consciência a esse personagem que o fez cair nas graças do povo: embora rústico, ele tinha uma noção muito precisa do que era certo, honesto e bom. Às vezes me lembra aqueles personagens do Clint Eastwood que não são necessariamente politicamente corretos, mas que, mesmo por vias tortas, demonstram sua bondade e sua preocupação com o coletivo. Em Água funda, Ruth Guimarães já parte de um ponto mais avançado do que esse, que Lobato só alcançaria muitos anos depois. Esse livro tem muito a nos dizer sobre o atual mal-estar do paulistano, fruto dessa ideologia da pressa, vamos dizer assim, e também sobre a superficialidade da crítica feita a esse personagem. Em Água funda , está ali a figura que foi soterrada pela ideologia do progresso, mas que faz parte da vida de todos nós de alguma forma. Quanto mais ela se invisibiliza, mais claustrofóbica São Paulo se torna.

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O curador do mês Emicida,

ou Leandro Roque de Oliveira.

Nascimento: São Paulo, 1985.

Profissão: Rapper, cantor e compositor.

Uma curiosidade:

O nome “Emicida” é uma fusão da sigla MC e do sufixo latino cida.

Duas ou três coisas sobre ele:

1 AMARELO

No documentário sobre os bastidores do show no Theatro Municipal de São Paulo, ele resgata a história e a cultura dos movimentos negros desde o fim da escravidão no Brasil.

2 PARA AS CRIANÇAS

É autor de dois livros para crianças, E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas e Amoras, em que fala do medo, do preconceito e dos enfrentamentos presentes desde sempre nas nossas vidas.

3 D. JACIRA

A mãe é a grande incentivadora da leitura, que ela acredita ser capaz de salvar vidas — como a dela e a dos filhos. Escritora, é autora de quatro livros, em que fala sobre ancestralidade, espiritualidade e resistência.

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© Júlia Rodrigues

O livro faz um retrato da língua falada no interior de São Paulo. E, apesar de ser uma criação literária muito poderosa, é bem colado na língua falada, nos sons do povo. Isso tem uma ligação com o rap, de modo geral, e com seu trabalho, em particular?

Aquela língua não é falada somente no interior, tem muita coisa ali que está na minha fala, e eu nasci e cresci em São Paulo, na capital. Existem pesquisas que mostram que a maior parte dos migrantes que vieram à capital era do interior de São Paulo, e isso traz para a nossa fala muitas características de línguas indígenas, entre palavras e sonoridades. Sem falar nas lendas, nos causos, no misticismo e na devoção presentes na vida da gente. Há vinte anos, ainda fazíamos rodas e contávamos histórias em volta da fogueira, os velhos falavam de histórias da vida nas fazendas. Então, sim, ela está próxima do rap nesse sentido, e a razão é que ela não se desprende da sua origem, reconhece a beleza e a verdade daquilo. Existe um pensamento que usa a língua para excluir. O rap, tanto quanto a escrita de Ruth, vai na contramão disso.

É crucial que encontremos formas de reencantar o mundo. Embora a praticidade seja sedutora, a vida é mais que isso.
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©Wendy Andrade

Qual o lugar da leitura na sua vida — tanto como cidadão quanto como músico e compositor?

Central. Eu sou quem eu sou devido ao hábito de ler. Foi a leitura que fez do meu mundo um mundo imenso. Não só pelas referências, mas também pela oferenda que são os mundos que os livros nos trazem. Você pode ser quem você quiser quando abre um livro e isso é mágico, a gente nunca sai igual a como entrou.

O que mais ficou para você da leitura desse livro? O que você gostaria que ficasse para os leitores? É crucial que encontremos formas de reencantar o mundo. Embora a praticidade seja sedutora, a vida é mais que isso. E, para produzir beleza, a vida precisa de encantamento — isso Ruth Guimarães captou perfeitamente.

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: Eu comecei nos quadrinhos, lendo Batman. Eu nunca sei qual foi o primeiro livro que li, talvez Dom Quixote, que amo até hoje.

O livro que estou lendo: Uma breve história do tempo, do Stephen Hawking.

O livro que mudou minha vida: Macunaíma, do Mário de Andrade.

O livro que eu gostaria de ter escrito: Água funda, de Ruth Guimarães.

O último livro que me fez rir: Sete anos bons, de Etgar Keret.

O último livro que me fez chorar: O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbruch.

O livro que dou de presente: Eu dou vários livros de presente, o último foi o Vida à venda, de Yukio Mishima.

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O vale

Ascensão e queda do ciclo do café desenhou toda uma região que viu o esplendor e a miséria — e foi aí que nasceu o romance Água funda.

Uma vasta cadeia de montanhas entre as maiores cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, em volta do rio Paraíba, cercada de mata atlântica por todos os lados. Esse é um retrato do Vale do Paraíba, uma região rica e linda que sofreu as consequências de estar entre esses polos econômicos e de ter uma terra boa e fértil para o cultivo do café. Tudo isso aliado à vastíssima mão de obra escrava era a equação perfeita que resultou na época gloriosa para a economia do café — e nefasta, claro, para os seres humanos comercializados que sustentaram essa economia.

Durante o século XIX, o café era um dos produtos mais valorizados comercialmente no mundo. O Brasil capitaneou a produção, e o Vale do Paraíba foi o epicentro do Ciclo do Café, que era escoado com facilidade pelo porto de Santos. Não demorou para que os fazendeiros e a região recebessem grandes levas da riqueza produzida e construíssem casarões cinematográficos, palacetes luxuosos em fazendas belíssimas, com criação de animais, a modernização possível naquela época, louças e tecidos importados da Europa, ostentando sua riqueza em festas suntuosas e num modo de vida impensável até então no Brasil.

Cenário
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Mas havia também uma população que construiu essa riqueza, mas que não constava na divisão das riquezas. O crítico literário Antonio Candido, no seu clássico ensaio Os parceiros do Rio Bonito, narra com a clareza e elegância da melhor literatura o surgimento do “caipira”: desde a época que bandeirantes portugueses subiam a serra para desbravar o interior do Brasil, havia uma curiosa mistura de violência contra as populações indígenas e certa adaptação ao modo de vida interiorano.

Essa população, assim, ia se acomodando nas pequenas cidades que, a partir da Abolição da Escravatura, em 1888, passavam também a incorporar as pessoas negras, libertas das grandes fazendas de monocultura, sem contar com nenhum apoio do Estado (muito menos dos ex-patrões) para se adaptarem à nova realidade.

Esse é um resumo grosseiro da formação da população local. Mas ajuda a ter um vislumbre de quão complexo é o movimento que criou o cenário deste Água funda, de Ruth Guimarães.

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E VEM A CRISE

A cultura do café era toda fundamentada no trabalho de pessoas escravizadas. Ainda é possível ver listas dos bens das fazendas mais ricas do período e ainda choca ver seres humanos listados ao lado de gado, louças e ferramentas agrícolas. Quando a escravidão é abolida no Brasil, os fazendeiros tentam incorporar a nova mão de obra, mas já não é a mesma coisa.

Assim, desde o final do século XIX, o mercado internacional do café enfrentou uma série de crises, como a superprodução, a queda dos preços e a concorrência de outros países produtores. A crise econômica de 1929 explodiu nos EUA, mas gerou consequências no mundo inteiro. A fuga do dinheiro se espalha como uma tempestade no Vale do Paraíba, e aqueles casarões e fazendas, tão luxuosos, sentem o impacto da falta de investimento, da dificuldade de escoar a produção e de lidar com o fato de que, numa crise, o café não é um artigo de primeira necessidade. Se quiser uma leitura literária dessa decadência, basta visitar o livro A falência, de Júlia Lopes de Almeida, que retrata com engenhosidade ímpar esse momento de queda do ciclo.

Os resultados para a região são devastadores. O solo que era tão fértil, viciado em monocultura, já não produz mais nada. Não é mais possível bancar a manutenção de fazendas tão luxuosas. Não há mais oferta de trabalho. É o fim do ciclo do café, e o que resta são “cidades mortas”, como Monteiro Lobato, nascido e criado na região, batizou em seu livro de contos, todos passados na região.

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TUDO É ÁGUA FUNDA

Pois é nesse cenário que foi possível surgir um livro tão deslumbrante quanto o de Ruth Guimarães. Se ele começa no esplendor da casa-grande da fazenda Olhos D’Água — e Sinhá é um exemplar mimado e impetuoso, fina flor do ponto alto do ciclo do café —, ele se fecha com a belíssima história de amor e loucura de Joca e Curiango, num Vale que sente na pele e nas mentes as consequências da decadência econômica.

Mas, como o leitor logo vê, o que Ruth faz não é um tratado sociológico, nem busca explicações econômicas para o que lemos. Ela consegue, com uma imensa sabedoria e uma sensibilidade preciosa, contar como esse cenário ressoa nas pessoas, na vida delas, nos modos de se relacionarem, recriando, em linguagem e imaginação, um período tão fundamental da história do Brasil, que é pouco retratado, mas que faz parte inseparável do que somos enquanto país.

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Universo do livro

Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês

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1 3

O LIVRO DO MÊS

Tem o frescor das fábulas sobre cidades pequenas com personagens inesquecíveis como as novelas de Dias Gomes

Personagens inesquecíveis, diálogos brilhantes e sempre uma sátira mordaz à sociedade faziam a melhor literatura chegar às casas do Brasil, como em Saramandaia e Roque Santeiro

que ao retratar uma comunidade muito particular acaba descrevendo o mundo inteiro como o podcast Rádio Novelo

que sempre usava um elemento fantástico para contar suas histórias como Gabriel García Márquez

O autor colombiano vencedor do Prêmio Nobel foi o carro-chefe do chamado boom latino-americano e encantou o mundo com o realismo mágico de livros como Cem anos de solidão

Toda semana, um tema reúne histórias sobre gente famosa ou não, fatos extraordinários ou banais, que você nem sabia que precisava ouvir e que sempre faz pensar.

que retratam a miséria de uma população fora das grandes cidades como ÁGUA FUNDA, DE RUTH GUIMARÃES

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4

que nos mostra histórias simples e necessárias como as histórias da Dona Benta

A avó do Sítio do Picapau Amarelo, criado por Monteiro Lobato, fazia a criançada viajar pelo mundo inteiro, da Grécia Antiga à Lua, se divertindo, sonhando e aprendendo.

que têm um delicioso sotaque caipira como os filmes de Mazzaropi

Sucesso nacional a partir da década de 1950, o cinema do ator e diretor fizeram o Brasil rir da ingenuidade esperta do caipira brasileiro, com muito humor e ternura. 21

Da mesma estante

Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto

OLHOS D’ÁGUA ESTÁ EM TODA PARTE

No sertão da Bahia, de Alagoas ou de Minas Gerais, outros povoados que foram palco da mais fina literatura.

CAETÉS, Graciliano Ramos

Record 336 pp.

Um caso de amor proibido, uma disputa pelo poder e a tragédia que nasce desses elementos numa cidadezinha, com toda a crueza de Graciliano.

SAGARANA, João Guimarães Rosa

Global 336 pp.

Publicado no mesmo ano que Água funda, tem surpreendentes pontos de encontro, como a invenção da linguagem popular e a ternura para observar “a gente miúda”.

MATA DOCE, Luciany Aparecida

Alfaguara 304 pp.

Uma família de mulheres fortes lutando com as armas da solidariedade e do afeto para se manterem em pé — a si mesmas, suas casas, sua gente.

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GARANTA SEUS LIVROS AQUI:

Lá no site, além de aproveitar seu desconto de associado TAG, você tem mais informações sobre os livros – além de muitas outras dicas!

A VIDA NOS LUGARES MORTOS

Livros passados em vilarejos esquecidos no tempo, onde nada parece acontecer

URUPÊS, Monteiro Lobato

Unesp 164 pp.

Como Água funda, é todo passado no Vale do Paraíba e fala das cidades que caíram em decadência depois da queda do ciclo do café.

CEM ANOS DE SOLIDÃO, Gabriel

García Márquez

Tradução de Eric Nepomuceno

Record 448 pp.

Talvez Macondo, a cidade onde se passa a história, seja a mais lembrada das cidades esquecidas.

PEDRO PÁRAMO, Juan Rulfo

Tradução de Eric Nepomuceno

José Olympio 176 pp.

A busca do pai em um longínquo povoado abre espaço para um desfile de personagens inesquecíveis. Considerado o pai do realismo mágico.

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LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Guimarães Rosa

Nome

João Guimarães Rosa

Nascimento

Cordisburgo-MG, 27 de junho de 1908.

Morte

Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967.

Profissão Médico e diplomata.

Arquivo Público Mineiro / Acervo DIMUS 24
©

Com Sagarana, Guimarães Rosa estreou na literatura no mesmo ano que Ruth Guimarães. Ele, médico e diplomata, inventava uma nova língua, cheia de traços sertanejos, para comunicar sentimentos universais. Ela, “negra e caipira”, como se definia, fez de Água funda uma homenagem a tudo que não entendemos. Conheça um pouco mais sobre o autor de Grande sertão: veredas, um dos mais importantes escritores de todos os tempos.

Guimarães Rosa nasceu na pequeníssima cidade de Cordisburgo, no sertão de Minas Gerais. Mas, ainda que bebendo muito da fonte da cultura popular, nasceu em uma família de intelectuais, que lhe deu um contato precoce com a literatura, com outras línguas e com a cultura clássica.

Formado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais, foi trabalhando como médico que fez suas primeiras grandes viagens pelo sertão. Rosa tinha um fascínio por mapas, por coisas escondidas, pelo esotérico, por significados ocultos. Tudo isso ia ganhando força no contato com a cultura popular. A experiência como médico “viajante” foi definitiva para a construção do seu imaginário literário.

Mas não só de sertão é feito o universo de Rosa, que foi também diplomata. Ele teve a oportunidade de viajar por vários países, o que lhe proporcionou uma visão mais ampla do mundo e influenciou sua escrita. Nos anos em que morou na Alemanha, ele e sua segunda mulher, Aracy, tiveram um papel importante no resgate de judeus da Alemanha nazista.

Leia. Conheça. Descubra.
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Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. ”

O IMENSO LEGADO

Quando se fala em Guimarães Rosa, despertam-se tantos elementos quantos os que ele traz em cada um de seus livros: realismo mágico, espiritualidade, fala popular, liberdade de invenções linguísticas, neologismos. Tudo isso faz parte, sim, do que fez de Guimarães Rosa um dos maiores autores da literatura brasileira. Mas ele é muito mais.

Rosa é a sublime união da mais fina invenção literária com a mais profunda filosofia, e é impossível pensar em seus contos e romances sem aceitar que uma coisa é apoio e semente da outra (e vice-versa). Rosa inaugurou, assim, uma transformação profunda no regionalismo brasileiro e fez o Brasil entender que “o sertão está em toda parte”.

Ele costumava dizer que sua obra-prima, Grande sertão: veredas, era uma “autobiografia irracional”, marcada por elementos regionalistas, existencialistas e religiosos.

Guimarães Rosa faleceu precocemente aos 59 anos, em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro. No entanto, sua obra e seu impacto no cenário literário brasileiro permanecem vivos, sendo admirados e estudados por gerações posteriores. Guimarães Rosa é lembrado como um dos grandes mestres da literatura, cujo trabalho revolucionou a forma como se escreve e se compreende a literatura brasileira.

Leia. Conheça. Descubra.
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Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS

Reunião de 21 contos que são pequenas pérolas sobre temas muito humanos. Para entrar no universo de Rosa, “A terceira margem do rio” e “Famigerado” são pequenas obras-primas, que comovem e fazem pensar.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Talvez esse seja o livro mais deslumbrante da literatura brasileira. Uma viagem sem volta, em que aventura, amor, metafísica e filosofia se misturam na linguagem mais linda que há.

CORPO DE BAILE

Livro que Rosa escreveu ao mesmo tempo que Grande sertão, é uma espécie de espelho do outro, com histórias de amor e de luta, de uma inteligência que não deixa de lado a emoção. Para guardar para sempre.

PARA COMEÇAR PARA SE APAIXONAR DE VEZ OBRA-PRIMA
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No próximo mês

No livro que vem por aí na TAG Curadoria, um sujeito à beira da morte (e que morte!) retoma a história da sua vida e narra suas memórias de infância e adolescência.

Procure no nosso caça-palavras dicas sobre o livro que chega já, já na sua casa:

por aí Procure seusSPOILERS aqui! 29
Vem

Madame TAG responde

Olá, Madame Tag!

Sou assinante da TAG Curadoria há muito tempo e apaixonado por seus livros. Mas tem uma situação que me incomoda: minha namorida, Ariane, quer ler os meus livros e sou extremamente ciumento, o que é meu não pode ser dividido. Estou em um dilema: quero emprestar somente um livro que passe a mensagem adequada para que ela não queira mais minhas preciosidades. Poderia me indicar o mais apropriado para essa situação?

Ah, meu querido ciumento, Você me pede um livro que “passe o recado” do seu ciúme… Você já leu o magnífico O nome da rosa, do Umberto Eco? Os monges que não queriam que o livro proibido fosse lido passavam veneno no cantinho das folhas. Assim, quando o leitor ousado molhava o dedo na língua para virar as páginas, ia sendo implacavelmente envenenado — e aí estão sujeitos que nunca mais pegariam livros sem permissão…

Maaaaas, se você é apaixonado por livros, deve estar bem ciente de que o ciúme não nos leva a lugares agradáveis: Bentinho ficou tão ferido pelo monstro de olhos verdes que se tornou Dom Casmurro — mal-humorado e solitário. Othelo, o pobre mouro de Veneza, acabou com a vida da amada Desdêmona por causa do intrigueiro Iago. Ciúme, meu caro, só fica bem em tragédias de Shakespeare ou num sertanejo gostoso.

Quanto à Ariane, trate-a com o carinho que ela merece. Não sei se ela tem belos olhos de ressaca, como Capitu, mas já posso imaginá-los, os olhinhos, passeando com vontade pelos seus belos livros da TAG. Ah, meu rapaz, repense suas neuroses e dê um crédito para Madame: poucas coisas são privilégios maiores que ter com quem dividir a leitura, a experiência, a história. Se precisar de uma ajudinha na transição, assine para ela a Tag Inéditos. Vocês terão pelo menos dois livros para trocar no mês.

Quer um conselho de Madame TAG?

Escreva para madametag@taglivros.com.br

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“Existe um pensamento que usa a língua para excluir. O rap, tanto quanto a escrita de Ruth, vão na contramão disso.”

– EMICIDA

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