Se tem algo que a vida pede de todos nós é adaptação. Talvez as mais radicais sejam aquelas que a gente nem lembra: imagina o baque de sair do conforto uterino e respirar por conta própria. Mas há situações que nos devolvem a esse desamparo original e obrigam a gente a reaprender o mundo. E, como no nascimento, essas doloridas e necessárias metamorfoses só são possíveis com o amparo do olhar amoroso de quem caminha ao nosso lado. O livro que você acaba de receber é, fundamentalmente, sobre isso.
Se adaptar, premiado romance da escritora francesa Clara Dupont-Monod, é a história de uma família e suas transformações a partir do nascimento de uma criança com deficiência. O olhar dos irmãos será seu guia por essa jornada, revelando como as paisagens internas de cada um deles se movimentam com a chegada do menino. É um livro conciso e imenso, que convoca nossa capacidade de contemplar e sentir o material e o imaterial: quem já somos, aqueles que amamos, a natureza ao nosso redor, nossas emoções mais bonitas ou condenáveis.
Quem olhou para essa narrativa e nos aconselhou a enviá-la a você, tagger, foi Ana Lima Cecilio, uma das pessoas mais qualificadas para indicar um livro no Brasil — curadora da Flip, editora, livreira, grande leitora, criadora da newsletter A Lábia e persona original da Madame TAG. Um primor de curadoria para atravessar profundezas e alargar as dimensões do seu encontro com este livro.
Boa leitura!
sumário
Experiência do mês
Um espaço todo seu, para aproximar e celebrar a maior comunidade leitora do Brasil 04 06 08 14 19 22 24 26 29
Para inspirar o olhar e as ideias antes, durante e após a leitura
Por que ler este livro
Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais
A
autoria
Um retrato caprichado de quem está por trás da história
A
curadoria
Conheça Ana Lima Cecilio, que escolheu seu livro do mês
Dois dedos de prosa
De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler
Da mesma estante
Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês
Universo do livro
Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês Leia. Conheça. Descubra.
O excêntrico e a complexidade humana em Flannery O'Connor
Espaço da comunidade
Experiência do mês
Seu livro além do livro: para ouvir, guardar, expandir, crescer
Mimo
Em um clube feito de leitores para leitores, que mimo pode ser melhor do que um… livro? E este está cheio de detalhes especiais: Vida fóssil é uma obra inédita da Laerte, feita em uma parceria igualmente inédita com Rafael Coutinho, seu filho. Além de uma edição exclusiva com dedicatória especial dos autores para os taggers, você ganha três meses de acesso gratuito ao curso que percorre todo o processo de criação deste pequeno grande livro por duas das maiores referências dos quadrinhos no Brasil, da ideia inicial até a finalização.
Projeto gráfico
Para aprender a se adaptar, é preciso observar os seres ao nosso redor. E as borboletas são grandes professoras: da lagarta à fase adulta, em cada etapa da vida, elas assumem formas e características diferentes que garantem sua sobrevivência durante toda a metamorfose. Foram elas, em sua diversidade de cores, tamanhos e texturas, que inspiraram a capa do livro deste mês, desenvolvida por Luísa Zardo.
Por aqui, o fim do livro não precisa ser o final da sua jornada de leitura! Ao virar da última página, convidamos você a escutar o Podcast da TAG e conferir uma entrevista exclusiva com a curadora do mês, Ana Lima Cecilio, para seguir pensando e sentindo a história que você acabou de ler.
Seja durante ou após a leitura, a música é capaz de nos levar ainda mais longe na imersão em uma história poética e cheia de emoções complexas. Vem dar o play na nossa seleção especial de faixas que têm tudo a ver com o romance de Clara Dupont-Monod. A playlist flutua de artistas franceses até sonoridades bem brasileiras, instrumentais e superconectadas com o ambiente natural, como Hermeto Pascoal e Uakti.
Visite o app para saber mais sobre o livro e participar da comunidade.
“Poético, delicado, terno, Se adaptar é um conto ao mesmo tempo trágico e luminoso.”
Le Figaro Magazine
“Um livro profundamente comovente, escrito em um estilo intenso e vívido.”
Le Parisien
Por que ler este livro
E se as pedras pudessem contar histórias? Neste livro, são elas que conduzem o leitor por uma viagem intensa, profunda e inesquecível pelas montanhas do sul da França, onde a imensidão da natureza encontra o vasto e complexo território emocional de uma família em metamorfose diante do nascimento de uma criança com deficiência. Pelo olhar honesto e sensível dos irmãos desse menino, o romance de Clara Dupont-Monod, consagrado com o prêmio Goncourt des Lycéens, expressa a complexidade da nossa relação com a diferença e a ambivalência do amor entre irmãos, convidando o leitor a refletir sobre sua própria capacidade de adaptação. Uma leitura emocionante e profundamente humana, que ressoa muito além das páginas.
Um pacífico sorriso de pedra
Das pedras que narram a história até seu próprio laço com um irmão que viveu com paralisia cerebral, a autora do mês se inspirou em elementos de sua história pessoal para construir um romance que provoca o leitor a se render com humildade e resiliência aos fluxos da vida
“A montanha tinha simplesmente esperado que a crise terminasse. Vinha fazendo aquilo havia milênios, esperar que os humanos se acalmassem.”
A cena é a seguinte: você está vivendo um dia terrível, mas o sol brilha, não há nuvens no céu, pessoas se deslocam para o trabalho e riem de coisas banais. Enquanto sofremos, os rios seguem seus fluxos, o sol percorre decididamente sua trajetória pelo céu, montanhas reverberam sinfonias de pássaros e refletem desenhos de luz. A insistência da vida em continuar, mesmo nos nossos momentos mais difíceis, é ao mesmo tempo cruel e alentadora. A natureza nos dá espaço para sentir e aponta sem alarde o único caminho: a adaptação.
No livro de Clara Dupont-Monod, a paisagem da região de Cévennes, no sul da França, é testemunha e cúmplice da história de uma família em que nasce um menino com deficiência. O acontecimento mobiliza cada integrante daquele núcleo a se adaptar para atender às necessidades daquela criança e mediar sua relação com o mundo. E não é sempre esse o papel da família? Mas essa criança é diferente das duas que vieram antes, e é no processo de estranhamento, ternura, repulsa e aproximação dos irmãos com o menino que as inusitadas narradoras da história — as pedras que compõem o muro do jardim — vão nos lançar.
Se adaptar explora o impacto do nascimento de uma criança no território existencial de uma família inteira e, fundamentalmente, das outras crianças dessa família. Como o olhar para um irmãozinho diferente deles afeta sua própria formação como pessoas? O que eles ganham com essa experiência, e o que perdem? Em que medida conseguem se abrir para o imenso aprendizado de conviver com alguém que tem outra maneira de experimentar a vida? Quem os ajuda nesse processo?
Em entrevista ao jornal L’Orient-Le Jour, a autora contou que o ponto de partida do romance foi, antes da deficiência do menino, o desejo de escrever sobre o laço entre irmãos. “Esse é um tema muito pouco explorado na literatura. O que é magnífico na fraternidade é que, quando você ouve irmãos e irmãs discutindo sobre um mesmo evento, nunca é a mesma versão de acordo com o lugar de cada um, eles não vivenciam as coisas da mesma forma”, afirmou. E essas múltiplas formas de se relacionar com um mesmo acontecimento são, certamente, um prato cheio para a literatura.
Formada em Letras e mestra em Francês Antigo, Clara Dupont-Monod nasceu em Paris, mas tem suas origens familiares nas montanhas de Cévennes, a duas horas de Montpellier. Nesse cenário, as pedras escolhidas como narradoras da história fizeram parte de seu convívio íntimo. “Eu cresci entre as pedras, tenho uma familiaridade com o universo mineral. Evocar as pedras era, para mim, como ligar para velhas amigas”, declarou a autora. A escolha narrativa também vem acompanhada de um simbolismo que se conecta ao enredo do livro: apoiadas umas nas outras, as pedras precisam equilibrar forças para que o muro permaneça em pé. Adaptar-se, afinal, nunca é uma tarefa individual, e é um tanto mais possível quando cada parte do organismo vivo que é uma família — e também uma comunidade, uma sociedade, um ecossistema natural — encontra sua maneira de contribuir, a cada momento, com os movimentos daquele arranjo.
Uma criança com deficiência traz muito para aqueles ao seu redor. Sempre me perguntei por que a sociedade exclui as pessoas diferentes, quando vejo a riqueza que isso representa. Com o tempo, a experiência me tornou mais tolerante, infinitamente mais rica.
A relação com o corpo, com a norma, o fato de não julgar e a familiaridade com a diferença fazem você crescer. Se a sociedade os integrasse desde pequenos, em vez de os ostracizar, se eles tivessem um lugar verdadeiro, o olhar sobre eles seria muito mais flexível. E, pensando bem, quem sabe se, para eles, não somos nós os diferentes?”
— Clara Dupont-Monod em entrevista ao jornal L’Orient-Le Jour
No livro, o mais velho e a do meio tomam posições muito distintas em relação ao menino. O primeiro, no começo da transição da infância para a adolescência, logo assume um papel de cuidado e doação: limpa, dá comida, acomoda o irmãozinho sob a sombra das árvores e com ele aprende o silêncio, a contemplação, a existência em um vasto presente, a beleza das coisas como elas são. Encontra ali um amor puro e imenso. “Junto do menino, ele se descobria alguém paciente”, as narradoras nos contam a certa altura.
Depois de mergulhar na calma amorosa desse laço delicado e terno, a transição para a perspectiva da irmã do meio coloca o leitor em confronto com sentimentos mais complexos. A menina é tomada pela raiva e pelo ressentimento, já que, com a chegada do irmãozinho, ela perde a atenção do mais velho e testemunha o desgaste emocional dos pais com a burocracia fria que dificulta o acesso a direitos. Tudo o que ela quer é ter uma vida banal e viver as experiências comuns de uma menina da sua idade. Durante anos, ignora o irmãozinho e praticamente não o toca.
Mas neste livro não há unidimensionalidade nem espaço para julgamentos simples. Clara DupontMonod escreve a partir da memória emocional de sua própria experiência crescendo ao lado de um irmão que teve paralisia cerebral e viveu até os dez anos de idade. A percepção crua e sem máscaras da infância é uma via para expor sentimentos difíceis de assumir, que fazem parte do processo afetivo de familiares de pessoas com deficiência. A autora personifica nos personagens os paradoxos afetivos que experimentou enquanto crescia: vergonha, raiva, proteção, cuidado. “Eu sou a mais velha, mas passei por todas as etapas com meu irmão deficiente, porque, ao contrário do livro, na vida real as coisas não são tão compartimentadas, tudo estava misturado”, afirmou Clara ao L’Orient-Le Jour.
A verdade é que a honestidade brutal das crianças escancara questões que dizem respeito a toda a sociedade, associadas à própria ideia de normalidade e ao isolamento da diferença. Ao longo da narrativa, Clara demonstra o quanto o sofrimento de cada familiar está conectado a entraves coletivos — de uma comunidade, de um país, de uma cultura que extrapola fronteiras — com aqueles que escapam à norma. Conforme a história avança, conhecemos os adultos que esses irmãos se tornaram e vemos que a experiência com o menino tem impactos particulares, mas decisivos, na forma como cada um se relaciona com o mundo. E, nesse percurso sempre delicado, a autora nos permite vislumbrar o horizonte que guia nosso próprio olhar para a paisagem que habitamos.
“O livro é a metáfora de todos os encontros que a gente tem pela vida, com pessoas diferentes de nós.”
Munida de um extenso e profundo repertório literário, Ana Lima Cecilio compartilha sua leitura da obra indicada aos taggers, além de algumas dicas valiosas para expandir a experiência com Se adaptar e as sensações de assumir a curadoria da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip
O que te cativou em Se adaptar, livro que você escolheu para enviarmos aos associados da TAG neste mês?
Se adaptar é um livro muito especial, um desses em que a literatura consegue fazer um pequeno milagre. A sinopse, o mote da história, é uma das coisas mais dolorosas que podem acontecer na vida: o nascimento de uma criança inadaptável, com um abismo entre ela e todos os que a cercam. No entanto, o que a autora faz ao descrever e criar essa família é mostrar para o leitor que o afeto, a humanidade e a curiosidade são capazes de transformar qualquer experiência humana numa oportunidade para estarmos mais perto. É difícil falar isso sem parecer cafona, mas, quando eu li o livro, fiquei com vontade de bater na porta de todo mundo pedindo para lerem. E que coisa mágica é a literatura quando ela faz a gente se sentir mais próxima das pessoas!
A curadora do mês
Nome:
Ana Lima Cecilio
Nascimento:
1978, Campinas (SP)
Profissão:
Editora e livreira
Duas ou três coisas sobre ela:
1 ELENA FERRANTE
Formada em Filosofia pela USP, a curadora do mês da TAG trabalhou em diferentes eixos da cadeia do livro nos últimos 20 anos, de editora a livreira. Na Globo Livros, foi a editora responsável por trazer ao Brasil as obras de grandes nomes da literatura, incluindo a escritora italiana Elena Ferrante.
2 CURADORA DA FLIP
Em 2024, Ana assumiu uma posição fundamental na organização de um dos eventos literários mais importantes do Brasil como curadora da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty. Depois de uma experiência muito feliz, ela seguirá seu trabalho na Flip em 2025.
3 A LÁBIA
Nossa curadora transborda generosamente seu precioso repertório de leituras em uma newsletter semanal que a gente recomenda fortemente. Nas palavras da própria Ana, lá ela busca falar de livros “de um jeito que aproxime as pessoas, que seja gentil com possíveis leitores, que fale sobre o mundo real”. Imperdível!
Este livro trata de um tema fundamental para o debate coletivo, que é a experiência de pessoas com deficiência e suas famílias. Na sua opinião, o que a ficção traz de potencialidades para o olhar sobre esse e outros assuntos pertinentes à coletividade?
A gente pode olhar o livro do jeito mais pobre, que é tentar caçar nele uma espécie de manual de como lidar com uma pessoa com deficiência — sejamos empáticos, sensíveis, vamos aprender com essa família tão especial etc. Mas eu acredito muito fortemente que a literatura produz leituras polissêmicas e que um livro como esse não se presta só a dar lições de moral. Ao contar uma experiência muito particular, ele fala da humanidade inteira e é uma metáfora linda de como a gente olha o mundo (e não necessariamente a relação de uma família com uma criança com deficiência). O livro é a metáfora de todos os encontros que a gente tem pela vida, com pessoas diferentes de nós. E de como a delicadeza, a paciência, o conhecimento, a sabedoria podem ir se engendrando para lidar com o diferente, seja ele qual for. Quando a gente aprende isso, a literatura nos torna mais humanos, e aí a gente pode dispensar qualquer manual de conduta, porque já estamos aptos a lidar melhor com o mundo.
O que torna um livro especial para você? E o que faz você abandonar uma leitura?
Eu acho que, antes de tudo, a linguagem. Acredito muito que literatura não é “sobre” — sobre maternidade, sobre abandono, sobre relacionamentos
humanos. Literatura é o que a linguagem pode falar sobre o mundo. Então, se o livro tem uma linguagem interessante, eu acho que ele é especial. Mas eu sou uma leitora curiosa e vou adiante em muitas leituras que não são exatamente as minhas preferidas, naquela vontade de saber onde é que aquilo vai parar. O que me faz abandonar a leitura é a banalidade, o moralismo, o lugar-comum, o reacionarismo. Em alguns livros, bastam umas poucas páginas pra gente saber que a menina geniosa que torce o nariz pro rapaz marrento e o rapaz marrento vão ter um tórrido caso de amor. Eu às vezes acho que a literatura está muito contaminada por manuais de escrita, e aí se resume a um guia de procedimentos. Aí eu acho imperdoável, porque fica chato, e largo sem dó. Mas, em geral, sou generosa e termino a leitura.
Como foi a experiência de ser a curadora da Flip em 2024, e como estão os preparativos para a próxima edição do evento?
Foi uma das coisas mais divertidas, animadoras e estimulantes que já fiz trabalhando. Eu sempre li muito, e ter a chance de botar os livros e os autores para conversar é como realizar um sonho. E, além disso, dá pra conhecer um monte de gente incrível no caminho, participar muito ativamente de uma comunidade literária, ver minhas ideias tomando forma no palco da Flip. É gostoso demais. E agora, no segundo ano, é ainda mais gostoso, porque já estou um pouquinho mais segura do que funciona e do que não, e mais azeitada com o organismo vivo e lindo que é a Flip.
MINHA ESTANTE
Primeiro livro que li: Reinações de Narizinho, do Lobato, foi o primeiro livro “sem figuras” que encarei inteirinho e sozinha, absolutamente deslumbrada com o poder da imaginação.
Livro que estou lendo: Dias lentos, encontros fugazes, da Eve Babitz, uma surpresa maravilhosa de um livro engraçado, sexy, divertido e tão, mas tão inteligente.
Livro que mudou minha vida: Grande sertão: veredas, do Guimarães Rosa, porque é um livro que fala de todas as coisas do mundo, e a gente nunca mais sai dele igual.
Livro que eu gostaria de ter escrito: Uma mulher singular, da Vivian Gornick, porque é brilhante e me fez entender que a vida de todas as mulheres pode ser digna de virar um livro estupendo — basta encontrar a sua linguagem.
O último livro que me fez chorar:
O verão em que mamãe teve olhos verdes, da Tatiana Tibuleac, pela imensa humanidade, pela beleza e por aquela mãe, que é um pouco a minha.
Último livro que me fez rir: Felizes os felizes, da Yasmina Reza. (Me fez chorar também, mas a graça desse livro é essa.)
Livro que dou de presente:
Caprichos & relaxos, do Paulo Leminski, porque é o poeta mais generoso do mundo e mostra que a poesia está ao alcance de todo mundo.
Livro que não consegui terminar: Eu geralmente sou corajosa e, quando o livro é importante, vou até o final. Acho que abandono os muito tolos, os moralistas e os muito mal escritos.
Há alguns meses tivemos acesso a dados preocupantes sobre a redução no número de leitores no Brasil. Como alguém que trabalha nessa área há mais de vinte anos, quais desafios e caminhos você enxerga para incentivar a leitura no nosso país?
Eu acho que não há nenhuma outra resposta além de educação e política pública. Os trabalhadores do livro no Brasil são verdadeiros guerreiros, e eu conheço mil histórias de gente que deu e dá a vida para tornar a leitura uma realidade maior no Brasil. Do meu lado, por exemplo, me empenho para fazer uma Flip convidativa, generosa, aberta, para mostrar às pessoas que a leitura é transformadora, agradável, prazerosa. Também escrevo semanalmente uma newsletter, A Lábia, em que não poupo recursos para convencer as pessoas a lerem livros que, acredito, são transformadores, como este Se adaptar. Mas as ações individuais são minúsculas perto do que significaria uma política de Estado em prol da leitura, com a multiplicação das bibliotecas, o incentivo fiscal para pequenas editoras e livrarias e o controle rigoroso contra tubarões do mercado, como a Amazon. É ambicioso, claro, mas enquanto a gente age no pequeno, é importante ir pensando no grande.
Que outros livros você indicaria para complementar a experiência de leitura de Se adaptar?
A Natalia Ginzburg, uma autora italiana brilhante, tem um livrinho de pequenos ensaios chamado As pequenas virtudes, que fala, entre muitas outras coisas, sobre criar filhos, e é das coisas mais lindas do mundo. O Richard Powers, um autor estadunidense, também tem o belo Deslumbramento, um romance fantástico sobre um menino especial, e que ainda é um dos romances mais lindos sobre o mundo contemporâneo e as ameaças climáticas.
“Precisamos
de seres humanos com conexões empáticas reais.”
Para aprofundar nossa conversa sobre o livro do mês, a TAG escutou o Instituto Serendipidade, uma organização sem fins lucrativos que acolhe pessoas com deficiência e suas famílias
O nascimento de uma criança marca sempre o renascimento de uma família inteira. Por isso, quando nasce uma criança atípica, é preciso que surja um olhar para toda a rede de pessoas ao redor — e assumir a construção coletiva desse cuidado é uma responsabilidade afirmada no cotidiano.
Para entender como cada pessoa pode contribuir com uma sociedade verdadeiramente aberta e inclusiva com todas as formas de diferença, conversamos com a Gerente Institucional do Instituto Serendipidade, Débora Goldzveig. Ela também é fundadora do Projeto Irmãos, que oferece acolhimento específico aos irmãos de pessoas com deficiência. A iniciativa foi criada há 11 anos a partir da experiência da própria Débora com seu irmão, David, portador de síndrome de Down e autismo leve.
Só podemos ser resilientes quando praticamos a empatia, em que você precisa fazer o exercício intencional de se conectar com o outro. E para isso, muito mais do que se colocar no lugar dele, é necessário estar em conexão consigo mesmo. ”
Qual o papel dos familiares e cuidadores no desenvolvimento e na qualidade de vida de pessoas com deficiência?
A rede de apoio primária (família e cuidadores diários) e estendida (amigos e familiares que não convivem diariamente) é extremamente importante para o protagonismo das pessoas com deficiência, na medida em que possibilita o acesso com igualdade de direitos em todas as esferas da sociedade. No artigo “Minhas palavras favoritas”, publicado em 2011 por Rosenbaum e Gorter, do centro de pesquisa canadense CanChild, eles apresentam seis palavras representando áreas da vida que demandam total atenção para que pessoas com necessidades específicas possam criar suas identidades e senso de pertencimento. São elas: funcionalidade, família, amigos, saúde, futuro e diversão — baseadas em um documento da OMS. É importante que a rede de apoio também tenha consciência de que precisa ser apoiada. Caso contrário, é muito fácil cair no capacitismo, o preconceito disfarçado de mérito, onde o olhar limitante, mesmo que sem intenção, acaba predominando sobre as PcD. Entender a importância do autocuidado é: 1. manter a alteridade, entendendo os limites de cada um, sem perder sua identidade, e contando com outras redes de apoio para o cuidador; 2. valorizar o convívio inclusivo, onde a todo momento é possível aprendermos uns com os outros e também sermos apoiados pelas próprias PcD, à sua forma e potência, sem querer “curar” ou esperar que elas ajam sempre conforme nosso ideal.
O que há de particular na experiência dos irmãos nesse contexto? Por que é importante olhar para as outras crianças que estão crescendo junto com PcD?
Os irmãos são impulsores que trazem um olhar — na maior parte das vezes, atento, porém orgânico, livre — sem a grande responsabilidade dos pais ou cuidadores diretos. A convivência entre irmãos é fundamental, contanto que cada um possa manter seus desejos e aprender a lidar com as diferenças sem perder sua individualidade. É muito importante que os pais não atribuam a responsabilidade de cuidador ao irmão sem deficiência — o que muitas vezes acontece
desde o seu nascimento. Isso pode gerar diversos sentimentos desfavoráveis ao longo de seu crescimento, como culpa, ciúme excessivo, incompreensão, rejeição e raiva. Como irmã do David, me enxergo como embaixadora da inclusão, no sentido de compartilhar essa vivência ao longo de 37 anos através do meu olhar, com minhas forças e fraquezas, contribuindo com um pouco de informação a respeito dos direitos das PcD, validando e acolhendo sentimentos. Mas esse não é um olhar de certo ou errado. Cada irmão tem seu jeito de contribuir com uma vivência harmônica, de amizade, que apoia o desenvolvimento mútuo. A única regra básica é o amor. Com isso, vamos aprendendo a construir acessos para as barreiras que surgem ao longo da vida.
O que a sociedade tem a ganhar com a ampliação da participação de PcD nos espaços de convivência, troca e construção de conhecimento?
Resiliência. Esse é o primeiro ativo que adquirimos quando convivemos com pessoas diferentes do nosso círculo comum, fora da nossa zona de conforto. Só podemos ser resilientes quando praticamos a empatia, em que você precisa fazer o exercício intencional de se conectar com o outro. E, para isso, muito mais do que se colocar no lugar dele, é necessário estar em conexão consigo mesmo. Precisamos de seres humanos com conexões empáticas reais. Uma sociedade com mais resiliência tem um olhar mais respeitoso, cuidadoso e uma mente ampla, com olhar para o outro de forma holística. Cada qual com suas potencialidades e pontos a serem desenvolvidos, para além do seu diagnóstico.
Cuidar e acompanhar uma pessoa com deficiência ao longo do seu desenvolvimento envolve muitos desafios emocionais, que muitas vezes estão relacionados ao isolamento social e à falta de uma rede de apoio. De que forma as pessoas próximas de famílias especiais podem atuar como rede de apoio e criar um ambiente acolhedor para essas famílias?
A escuta ativa, sem julgamentos, uma conversa sobre outras pautas, que fujam das dificuldades diárias que envolvem a deficiência, um programa para descontrair e, muito importante, a proximidade sem infantilização, através do convívio com esses familiares. São alguns exemplos que fazem a diferença para deixar o cotidiano mais leve. Pequenas coisas, como um olhar atento, oferecer ajuda para comprar algo no mercado, um sorriso, aquela carona de última hora, uma mensagem sincera no WhatsApp, um abraço ou até mesmo o silêncio respeitoso em situações críticas. É comum, por falta de conhecimento, as pessoas que não convivem com o universo da PcD tentarem encontrar soluções rápidas para extinguir o problema: o som repetitivo, os gritos, o choro, o mau cheiro, entre outras situações desconfortáveis que podem gerar estigmas e conflitos. Por isso, é muito importante que se informem e que haja um caminho aberto para o diálogo, de ambos os núcleos. Além disso, a rede de apoio é uma rampa social para ajudar a solucionar questões em um núcleo familiar atípico, onde nem sempre os membros se escutam. Seja através de profissionais especializados ou até mesmo um familiar ou amigo próximo que tenha escuta naquele núcleo.
Da mesma estante
Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto
OUTROS JEITOS DE ESTAR NO MUNDO
Uma coleção de histórias que mergulham na experiência de pessoas com deficiências
ENQUANTO
OS DENTES, Carlos Eduardo Pereira
Todavia, 96 pp.
Em um retorno indesejado para a casa dos pais, um homem negro de classe média se desloca pelo Rio de Janeiro em uma cadeira de rodas capenga, circulando pelos entraves das ruas e por memórias de uma vida, permeadas pela discriminação e pela intolerância escondidas nas casas, famílias e instituições.
O FILHO ETERNO, Cristovão Tezza
Record, 224 pp.
A jornada afetiva e simbólica de um casal é transformada pelo nascimento de uma criança com síndrome de Down. Nesse livro corajoso, emocionante e aclamado pela crítica e pelo público, o autor expõe as volumosas dificuldades e as saborosas pequenas vitórias de criar um filho com deficiência nos anos 1980.
FELIZ ANO VELHO, Marcelo Rubens Paiva Alfaguara, 272 pp.
Livro de estreia do autor de Ainda estou aqui, essa obra remonta à juventude de Marcelo Rubens Paiva a partir do acidente que o deixou tetraplégico aos 20 anos. Em meio a uma odisseia por médicos e hospitais, ele assimila sua nova condição e a compreensão de que “o futuro é uma quantidade infinita de incertezas”.
O SER HUMANO E A NATUREZA
Três narrativas que diluem fronteiras entre a paisagem natural e os personagens
SEXTA-FEIRA
OU OS LIMBOS DO PACÍFICO, Michel Tournier
BestBolso, 256 pp.
Nessa obra que reinventa Robinson Crusoé, o náufrago solitário recria na ilha deserta a sociedade que conhecia. O encontro com o nativo Sexta-Feira desafia suas estruturas e reformula noções de civilização, interdependência e integração com a natureza, transformando sua relação com a diferença.
ÁGUA TURVA, Morgana Kretzmann
Companhia das Letras, 264 pp.
Expressando as vozes de sua região, a autora ambienta esse thriller ecológico no Parque Estadual do Turvo, fronteira do Brasil com a Argentina, narrando a luta de uma comunidade pela preservação ambiental sob a ameaça da construção de uma hidrelétrica no local.
A MONTANHA MÁGICA, Thomas Mann
Companhia das Letras, 856 pp.
Um jovem engenheiro é arrancado de sua previsível carreira na construção naval quando resolve internar-se em um sanatório para tuberculosos nos Alpes suíços. Na majestosa e isolada paisagem, ele interage com uma miríade de visões de mundo e confronta questões existenciais, como o amor, a doença e o tempo.
Universo do livro
Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês
O SOM DO SILÊNCIO
filme de Darius Marder. Narra a experiência de um jovem baterista que vê sua vida se transformar radicalmente quando começa a perder a audição.
O VENDEDOR DE PASSADOS
livro de José Eduardo
Agualusa. A história de um homem negro albino que vende novas árvores genealógicas a angolanos em ascensão social. Assim como no livro do mês, a história é contada por um narrador não humano — neste caso, uma lagartixa.
SPECIAL
série da Netflix inspirada nas memórias de Ryan O’Connell, um homem gay com paralisia cerebral, em que o protagonista desafia barreiras sociais para ir atrás da vida plena e autônoma que deseja para si.
INTOCÁVEIS
filme de Olivier Nakache e Éric Toledano que narra a transformação na vida de um cadeirante milionário a partir do vínculo com seu novo acompanhante, um homem da periferia com quem ele desenvolve uma profunda amizade.
MANOEL DE BARROS poeta brasileiro que escreveu com liberdade, delicadeza e inventividade sobre a natureza, a infância e a imensidão afetiva das desimportâncias, temas que atravessam o livro do mês.
O FAROL DAS ORCAS
filme de Gerardo Olivares em que uma mulher viaja para a Patagônia com seu filho autista, buscando criar uma conexão emocional entre o menino e um grupo de orcas selvagens, com o apoio de um guarda-florestal.
A SOLIDÃO DAS MÃES ESPECIAIS
palestra da ativista Lau Patrón no TEDx sobre sua jornada como mãe de um menino com paralisia cerebral e o isolamento experimentado pelas famílias de pessoas com deficiência.
LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Flannery O’Connor
Diagnosticada com lúpus aos 25 anos, a autora do sul dos Estados Unidos teve uma produção literária intensa durante sua curta vida, levando para as narrativas que criou os rastros da diferença que carregava no corpo e de sua complexa relação com a fé católica em uma região predominantemente protestante
Contista, romancista e ensaísta, considerada um importante expoente do “grotesco sulista”, estilo que retrata personagens excêntricos e situações extremas para revelar verdades profundas sobre a natureza humana.
Nascida Mary Flannery O'Connor, cresceu em uma família de imigrantes irlandeses católicos, tema que atravessou seu trabalho. Provocativa, irônica e brutal, ela desafiou concepções simples da relação com a religião e recusou didatismos ou moralismos explícitos, sustentando uma obra complexa que segue suscitando debates. Ainda jovem, foi fortemente encorajada a escrever e desenhar pelo pai, que morreu de lúpus quando ela tinha 15 anos. Formou-se em Escrita Criativa na Universidade de Iowa e logo ingressou na colônia de arte de Yaddo, no estado de Nova York.
Em 1949, conheceu o casal de escritores Sally e Robert Fitzgerald, com quem viveu enquanto trabalhava em seu primeiro romance. Aos 25 anos, foi diagnosticada com lúpus. A doença degenerativa era sentença de morte na época e trouxe a ela uma série de limitações físicas nos anos seguintes. Ela passaria o resto de seus dias em uma fazenda na companhia da mãe, cercada de cuidados especiais. O horizonte de finitude mergulhou a escritora no seu período mais criativo. Em 1952, publicou seu romance de estreia, Sangue sábio. Oito anos mais tarde, lançou Os violentos o arrebatam. Mas foi nos contos, reunidos em coletâneas como Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias (1955) e Tudo o que sobe deve convergir (1965), que a autora consolidou maior reconhecimento.
O racismo é uma das questões mais presentes na obra de O’Connor. Se seria raso assumir que a postura racista de seus personagens reflete a visão da autora, esse argumento também não a torna imune a críticas, abrindo um debate mais amplo sobre como as questões raciais se apresentam na sua ficção e podem ser interpretadas na contemporaneidade.
Morreu aos 39 anos por complicações do lúpus. Em 1972, recebeu postumamente o National Book Award pelo livro The complete stories (1971), uma compilação de contos.
Eu escrevo porque não sei o que penso até ler o que
digo.
PARA COMEÇAR
SANGUE SÁBIO
Um veterano de guerra volta para casa no profundo e religioso sul dos Estados Unidos e funda uma igreja sem Cristo, “em que os cegos não veem e os aleijados não andam e o que está morto continua morto”.
-PRIMA
UM HOMEM
BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR E OUTRAS HISTÓRIAS Uma coletânea de contos com o potencial de retorcer o estômago e permanecer na memória por dias — para o bem e para o mal.
PARA SE APAIXONAR DE VEZ
TUDO O QUE SOBE DEVE CONVERGIR
Histórias de conflitos raciais, familiares e morais no sul dos Estados Unidos. Com um estilo cru e grotesco, a autora revela a complexidade humana e a luta entre tradição e mudança.
Espaço da comunidade
CONHEÇA A LIVRARIA DA TAG!
A TAG é muito mais que uma caixinha com um livro. Quando falamos em experiência literária, em ecossistema de livros, é porque a gente sabe que a vida é melhor com livros por perto. Uma leitura puxa a outra e, a cada página, se abrem também novos espaços internos e o desejo de seguir folheando, conhecendo histórias e pensando o mundo. Mas a gente sabe também que, quando existem infinitas possibilidades, a escolha acaba ficando mais complexa.
Por isso, queremos convidar você a conhecer a livraria da TAG, onde você encontra kits passados dos clubes, mimos, coleções e um catálogo complementar que expande as experiências do mês. Nosso desejo é de estar com vocês em mais um espaço cheio de afeto e histórias, facilitando o caminho do livro para o lugar onde ele merece estar: nas mãos de um leitor.
Para conhecer a livraria da TAG, basta apontar a câmera do seu celular para o QR Code abaixo ou acessar o site https://livraria.taglivros.com/. Aproveite seu desconto de associado!
As capas de livro frequentemente são verdadeiras obras de arte, não é mesmo?
Recortando a página ao lado, você pode transformar este projeto gráfico em um item exclusivo, seja como elemento decorativo ou colecionável. O verso também é especial, com uma linda citação do autor para complementar a imagem.
Agora é só soltar a criatividade! E, se compartilhar nas redes, não se esqueça de nos marcar no @taglivros — adoramos ver as ideias de vocês ganhando vida.
A vida estava ali, ao alcance da respiração, nem medrosa nem combativa, apenas ali.