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FELICIDADE COMPARTILHADA

Texto de Alves Andrade

Este conto foi elaborado a partir da leitura do conto Felicidade Clandestina, da escritora brasileira nascida na Ucrânia, Clarice Lispector. Não é uma resposta à autora, mas muito mais uma homenagem, uma vez que esse conto é um dos meus preferidos, não há ocasião em que não aguarde ansioso o momento de citá-lo, assim como a grandeza de sua autora. Sempre que o faço, não deixo de frisar o denodo com que aquela menina, do conto da Clarice, espera e busca ansiosa a realização daquela Felicidade Clandestina

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Segue, pois, o conto incidental:

Tinha eu entre dez e onze anos, quando tive um pequeno desencontro com umas garotinhas da minha escola. Elas eram um pouco mais altas que eu (ou devo dizer menos baixas), tinham os cabelos lisinhos e eram terrivelmente achatadas, enquanto eu tinha o busto enorme. Além do mais eram muito magrinhas, e eu, que na época era dada a comer bagulhos, como dizia minha mãe, era bem gordinha.

Meu pai era o dono da livraria que ficava no bairro Boa Vista. Aliás, era a única livraria que existia ali. Então, todas as pessoas que gostavam de ler, fossem adultas ou crianças acorriam para lá com o intuito de adquirir os livros novos que chegavam. Meu pai tinha construído uma estante de tijolos bem adornada com imagens de livros e a atulhava com os novo títulos. Além da estante, em meu quarto havia uma escrivaninha, onde me sentava para ler e também para rabiscar alguns textos.

As minhas colegas de escola tinham certa inveja da minha situação, principalmente aquelas magrinhas desajeitadas. Elas só andavam juntas e, apesar da idade, se exibiam para os meninos das séries acima da nossa.Adoravam andar abraçadas a livros os quais sempre duvidei que lessem. Certa vez uma delas, a mais desenxabida, perguntou-me se eu não gostava de ler. Pensei um pouco e disse que detestava, que não via graça alguma em ler a história de uma moça presa numa torre, que usava os enormes cabelos como escada para seu namorado subir; que não acreditava que um tal Phileas Fogg pudesse dar a volta ao mundo em apenas oitenta dias; ou que não iria perder meu tempo lendo a história de certo náufrago que passou dezoito anos sem ver um ser humano. Ela não entendeu minha ironia, por isso, essas meninas viviam dizendo que a filha do dono da livraria não lia.

Um dia, enquanto aguardava na fila para comprar bombons, disse à garota que espalhou o boato sobre mim que havia acabado de ganhar de meu pai As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Disse-lhe ainda que não iria lê-lo e que poderia emprestar-lhe, já que ela gostava tanto de livros. Ela arregalou os olhos de espantada, deu um sorriso e, falsamente, quase me abraçou. Mal sabia ela que era a minha vingança, que eu iria sabotar sua alma, torná-la-ia uma pessoa melhor, menos arengueira. Era preciso dar-lhe uma lição, acabar com aquela insensatez de viver de cá pra lá, em bandos, inventando, criticando o que não sabiam.

E assim, no dia seguinte, vi pela ventana do quarto o vento varrendo as ruas de Recife, e ela, com seu jeito desajeitado de andar, quase correndo, quase dançando. Ouvi a campainha tocar uma, duas, três vezes. Bem devagarinho, abri o postigo, para dizer-lhe, como que surpresa, que ela me desculpasse, como eu era esquecida, pois havia emprestado o livro a outra garota. Mas que ela viesse no dia seguinte, porque à noite já estaria com o livro. Fiquei mirando-a, por algum tempo, andar como se se arrastasse. Mas depois percebi-lhe, mesmo pelas costas, certo ar de satisfação e ela voltou a correr e dançar.

Na escola, encontrei-me casualmente com as meninas, que, cordialmente, me cumprimentaram. Fingi que não as vi e segui meu caminho rumo à bomboniere da escola, meu lugar favorito na hora do recreio.

No dia seguinte, esperei a campainha tocar pela quarta vez, antes de atendê-la. Desta vez abri a porta por completo. Fitei-a por alguns segundos, como quem tentasse lembrar de nosso compromisso. Balancei a cabeça e desculpe-me mais uma vez. Que tonta eu. Havia emprestado o livro a outra garota.

E assim, os dias transcorreram. Quanto tempo? Não sei. Todos os dias ela se apresentava pontualmente no horário que eu indicasse. Percebi então que minha vingança estava completa, quando notei as olheiras se cavando ante seus olhos espantados. Tive pena. Tive medo de meu saber o que estava acontecendo, pois ela já estranhava a aparição daquela menina todos os dias à nossa porta e as minhas desculpas esfarrapadas para esse fato.

Neste mesmo dia, contei tudo a ela. Minha mãe teve um acesso de riso nervoso, meio agradecida por eu ter lhe ter contado e meio aborrecida pelo que eu estava fazendo. Pedi-lhe desculpas e me pus a chorar. Participe-lhe também o que eu passava na escola, não só pelas menininhas, mas também pelos outros alunos. Disse-lhe que era feliz, tinha uma família maravilhosa e que queria de certa forma compartilhar essa felicidade com a outra. Sempre achei que ser feliz sozinha não é bacana. É preciso compartilhar nossa felicidade, não a exibindo, mas permitindo que outras pessoas também a tenham.

À tarde, na escola, percebi que a menininha que tanto queria ler o livro que eu já lera e amara, encontrava-se só, triste, calada, desolada. Tive a ideia de lhe contar tudo e lhe pedir desculpas. Não o fiz porque não adiantaria. Com certeza, ela me odiaria ainda mais.

Chegando em casa, combinei com minha mãe de ela nos surpreender à porta e fingir surpresa diante do que estava acontecendo. Então, minha mãe lhe daria o livro, alegando empréstimo pelo tempo que ela quisesse. E assim se fez. Fiquei observando ela se ir abraçada ao livro, bem devagarinho, o vento revoando sobre os cabelos loiros esvoaçantes. Vi-a durante dois quarteirões e la não correu.

Voltei-me para o interior da casa, deitei-me na rede e senti um alívio por livrar-me do peso que já me vergava ao chão. Mesmo gordinha, me senti leve. Respirei fundo, fechei os olhos e imaginei a menininha magrinha, altinha, de cabelos lisos sentada em sua rede com o livro aberto em seu colo, folheando-o, lendo algumas linhas, admirando as gravuras, em êxtase puríssimo. Um leve sorriso se desenhou em meus lábios, adormeci e sonhei com um mundo melhor, sem diferenças sociais, sem discriminação, sem arengas entre crianças. Um mundo em que a felicidade pudesse enfim ser compartilhada.

Alves Andrade é graduado em Letras pela UECE. Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

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