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LITERATURA E CINEMA - MARCONDES JAMACARU A HORA DA ESTRELA E A CONDIÇÃO HUMANA
Clarice Lispector reúne anotações à mão feitas em um caderninho e com a ajuda de sua secretária e amiga, começa a organizar o que viria a ser A hora da estrela em 1976. Publicado em 1977, ano da morte de Clarice Lispector, o livro expõe as angústias, sofrimentos e dilemas existenciais da personagem Macabéa. Considerado um clássico da literatura brasileira, A hora da estrela foi traduzido para mais de 20 idiomas e aborda temas como a miséria, a solidão e a busca pelo sentido da vida.

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O título pode ser interpretado como a busca da protagonista por identidade e dignidade. Além de Macabéa, também desfilam pelas páginas do romance Olímpico de Jesus e Glória (namorado e amiga de Macabéa, respectivamente), Madame Carlota e Rodrigo S.M. (narrador).
Mas quem é Macabéa?
Macabéa é uma jovem migrante sonhadora que aspira à carreira de artista de cinema. Deixa Alagoas e desembarca no Rio de Janeiro sem nenhum preparo para enfrentar o ritmo louco da cidade, a ordem capitalista cruel, os padrões de trabalho, de beleza, de comportamento, de hipocrisia. Segundo o próprio narrador, Macabéa “vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”. (p. 20)
A hora da estrela é um livro repleto de simbolismos e reflexões sobre a condição humana. Fala também sobre opressão e marginalização sofridas pelos migrantes nordestinos no Brasil. O livro, muitas vezes, é lido como uma crítica social, abordando temas como a desigualdade e a pobreza, além de evidenciar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na sociedade. Compartilho com os leitores da Revista Sarau um trecho de uma entrevista concedida por Clarice Lispector:
“Morei no Recife, (...) me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. Daí começou a nascer a ideia. (...). Depois fui a uma cartomante e imaginei... que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história. ” (Clarice Lispector. Entrevista a Júlio Lerner, TV Cultura, 1977)
O mundo de Macabéa não tem padrões verossímeis, e ela precisa aprender a conviver com uma realidade devastadora. Infelizmente, fracassa, pois como disse o narrador, “ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não sei o quê com ar de se desculpar por ocupar o espaço”. (p. 24)
A morte de Macabéa, no final do romance, pode ser interpretada como uma libertação, tanto para a personagem quanto para o narrador. A morte traz consigo a possibilidade de renovação e de transcendência das limitações impostas pela vida.
Enquanto agoniza, depois de ser atropelada, Macabéa mexe-se devagar e acomoda o corpo em posição fetal para refletir sobre sua vida. Neste instante, tem uma visão: um homem, possivelmente um ano, oferece-lhe um sorvete. Despedimo-nos de Macabéa, que vivia entre a dura realidade da cidade grande e o sonho.
Abordando temas atemporais e universais, como a busca por identidade, a condição feminina ou a busca existencial por significado na vida, A hora da estrela é um excelente ponto de partida para quem deseja conhecer o universo literário de Clarice Lispector.

Ficha do livro
Ano de lançamento: 1977
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Páginas: 87
O Cinema Em Sua Forma Mais Pura
A crise da produção de cinema do fim dos anos 80 e começo dos 90 não significou, de forma alguma, a paralisação total da atividade audiovisual no Brasil. Ainda nos anos 80, O Brasil viveu um florescimento na área do curta-metragem que teve como filme-símbolo Ilha das Flores, de Jorge Furtado, ganhador do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1989.
[BUTCHER, Pedro. In: Cinema brasileiro hoje]
É nesse contexto de crise cinematográfica que a cineasta paulistana Suzana Amaral realiza, aos 53 anos, A hora da estrela, o seu primeiro longa-metragem.
Formada em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, Suzana Amaral já realizava curtas desde 1971. Em 197, foi premiada no Festival de Brasília com o curta Minha vida, nossa luta, que abordava a realidade das creches populares na periferia de São Paulo.
Vale salientar que o cinema de Suzana Amaral mescla o realismo do documentário com a abordagem literária. Essa fórmula foi usada na escrita do roteiro de A hora da estrela [1985].
Considerado uma obra-prima do cinema nacional, o filme foi lançado no exterior, sendo um sucesso estrondoso de crítica e com ótimas resenhas em grandes ornais como The New York Times e Chicago Times.
Podemos notar que a cineasta imprimiu um toque de autoria bastante refinado na adaptação do livro de Clarice Lispector. Outro aspecto que devemos ressaltar é a proximidade do filme com o Cinema Novo, principalmente na exposição das desigualdades sociais nos países de terceiro mundo. A diretora do longa nos apresenta Macabéa como sendo subserviente: olhar sonso, cabeça baixa, voz direcionada para baixo.
O filme segue o mesmo enredo do livro: Macabéa é uma migrante nordestina órfã de 19 anos, péssima datilógrafa, que erra as letras e suja o papel, pinta de vermelho carmim as unhas roídas até o bagaço, gosta de Coca-Cola, ouve rádio e vai para São Paulo em busca de uma vida melhor. Mas como Macabéa é ingênua e desprovida da malícia do mundo, a cidade grande acaba sendo um obstáculo para a protagonista, que inevitavelmente se sente abandonada e desamparada em sua jornada.
A atuação de Marcélia Cartaxo como a protagonista do longa A hora da estrela é uma das interpretações mais cativantes do cinema brasileiro. Atuação elegante, complexa, visceral, intensa em expressão facial e com controle vocálico sem exageros. Isso rendeu à atriz inúmeros prêmios nos festivais por onde a película foi exibida. Merecem destaque o vazio e o silêncio clariceano através da imagem e da expressão verbal da personagem Macabéa.
A nostalgia experimentada por Macabéa fica acentuada na trilha sonora do filme, tocada na Rádio Relógio, que tem o poder de nos transportar para um momento ou uma época temporal confortável.
A hora da estrela, de Suzana Amaral, é um exemplo de que o cinema, às vezes, se nos apresenta em sua forma mais pura e essencial.
Ficha do filme
Ano de lançamento: 1985
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral
Duração: 1h30
Marcondes Jamacaru é escritor, poeta e cinéfilo. Cursou Letras na Universidade Federal do Ceará. Publicou nove livros e participou de diversas antologias. Ganhou o IV Campeonato de Microcontos de Editora 3 Serpentes. Merecem destaque as obras O labirinto das memórias, O homem de sapatos amarelos e Os pequenos gestos.