3 minute read

CLARICE

Texto de Luciana Braga

Estou dentro dos teus grandes livros, e até daquele que você disse que era lixo. E você permanece viva nas entrelinhas de tudo o que disse entre um sopro de vida e um silêncio. Os laços que nos unem são mais fortes que o academicismo. E você não é tão inalcançável quanto pintam. Eu te peguei no colo e retirei daquele pedestal tão longínquo. Mesmo assim, teu sorriso não se decifra nunca e teu olhar ainda é visto como uma seta maldita.

Advertisement

Perto do coração selvagem das mulheres que te sucederam, nasceu um desejo feito água-viva que sitia a cidade e os corpos aprendizes da difícil arte de ser corpo e espírito em igualdade e mistério. Releio teus contos para não esquecer. E procuro os infantis na tentativa de encontrar algo livre em mim. Criança e bicho são superiores, não é verdade? Aprendi aos poucos.

Agora você é lida aqui e por uma legião de gente estrangeira que leva teu nome para lugares que nem teu corpo viajante alcançou. Teus títulos se espalham nasprateleiras de livrarias sofisticadas. Mas eu comprei meus primeiros livros nos sebos da cidade. Naquele tempo, as pessoas não liam tanto. Agora sinto que estão, aos poucos, descobrindo essa felicidade clandestina. Principalmente as meninas. São elas que mais me leem. Elas não estão forçando entrada nesse cânone tão seletivo. Elas só querem ser lidas. Basta mesmo entrar em contato, não é?

Você me disse que a gente mata por amor e eu já matei formigas, peixes, galinhas, cactos e sentimentos arrastados pelo tempo. A maçã ainda brilha no escuro e todos fogem da paixão segundo G.H., mas da hora da estrela ninguém escapa. Eu descobri o mundo através dos teus escritos. E agora também escrevo e envio meus textos por um correio quase sempre feminino. E o tempo é o único que nos separa, mas permaneceremos eternamente ligadas pela força do que ainda não foi dito.

Luciana Braga é cearense, professora, pesquisadora, escritora e desenhista. É doutoranda em Letras pela UFC, participa de coletivos literários, é co-autora e ilustradora de várias coletâneas. Em 2021, lançou seu primeiro livro de crônicas ilustrado intitulado Escrita Infinita (2021). Atualmente lançou Sol (2023), seu primeiro livro de literatura infantil.

QUE MULHER É ESSA?

Texto de Rejane Nascimento de Sousa

- O que nós temos a ver com a Ucrânia?

Ouvi a pergunta nessa manhã calorenta, na 57, minha topic favorita e necessária por anos a fio. A questão veio de um adulto de meia-idade reclamando dos intermináveis sete minutos que um dos telejornais de circulação nacional gastara na noite anterior falando da sombria guerra entre Ucrânia e Rússia.

Os argumentos para tantos holofotes eram rasos sob o olhar do resmungador.

- Que interesse nós temos pelos grãos parados não chegarem à África? Por que enfatizar que um grupo armado se rebelou contra o presidente da Rússia? Aposto que nunca um ucraniano se ocuparia de observar tanto o Brasil!

Foi nessa hora, que uma jovem, mal se equilibrando, interveio. Disse que conhecia uma mulher que, nascida na Ucrânia, passou a vida querendo ser brasileira. Dizia ela, a tal mulher, que as circunstâncias não a permitiram ser uma de nós, já que o pai viajava pelo mundo, e sua mãe lhe dera o sol no lugar equivocado. Uma mulher de olhos amendoados, cabelos ora avermelhados ora pretos, muito inteligente, perspicaz – na verdade, calava muitos homens e, só para citar um, Ferreira Gullar temeu reencontrá-la. Não quis se apaixonar. Uma mulher que foi chamada de feminista por acender seu próprio cigarro e andar com elegância singular, sem se preocupar com as tendências dos estilistas dos idos anos 1960, que não combinavam xadrez com bolinhas.

Incrédulo, o homem não conseguia decodificar as palavras da moça. O outro, até então calado, perguntou como ela sabia desse ser tão diferente.

- Sei pelos livros, mas também de ouvir falar. Minha mãe, na infância, de vassoura em punho, com conversa, tentou convencer uma barata que sua queixa por aquele bicho peçonhento não era nada pessoal. Só ela e Kafka se interessaram por esse inseto.

A conversa já tinha alcançado uma senhora que perguntou se ela só escrevia sobre insetos e a estudante reagiu com um sonoro não risonho e acrescentou que também sobre coelhos. Por dentro eu sorria.

Mas afinal, que mulher é essa? – quis finalizar o homem que começara aquele inusitado colóquio.

– Clarice Lispector, ucraniana, que não se cansava de repetir “eu pertenço ao Brasil”. Na próxima, desce! – gritou a menina, alheia ao sinal que nunca funciona direito.

Rejane Nascimento de Sousa é graduada em Letras na UECE, trabalha com projetos editoriais e como revisora textual, além de contar histórias. Participou de algumas coletâneas da cidade, dentre as quais destaca Cenas para escrever teus olhos e Crônicas de uma Fortaleza obscena. É autora de cinco livros infantis.

This article is from: