Ed. 7 | Consciência Negra | novembro 2023

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EDIÇÃO 7 - ANO 1 - NOVEMBRO 2023

LITERATURA

AS NARRATIVAS AFRO-BRASILEIRAS

ARTE

INTERVENÇÃO PRETA EM MUROS BRANCOS

FOTOGRAFIA

UMA VISÃO AFROCENTRADA

POR TRÁS DAS LENTES

MÚSICA

PRETO o É POP

REVISTA LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFAL

ÍNDICE

PRETO É CHAVE: LIBERDADE E EMPODERAMENTO NA ARTE PRETA URBANA

PORTAS PARA A UNIVERSIDADE:

UMA DÉCADA DO SISTEMA DE COTAS NO BRASIL

A DESIGUALDADE RACIAL NA SAÚDE BRASILEIRA

CINEMA TEM COR?

A ASCENÇÃO DA MÚSICA NEGRA

EXPEDIENTE

A Revista Fora da Caixa é um produto editorial da disciplina Laboratório de Mídia Impressa desenvolvido pelos alunos do 5º período do Curso de Jornalismo do turno vespertino da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Esta edição foi produzida no semestre letivo 2023.1.

Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte (ICHCA)

Curso de Jornalismo

Endereço

Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro do Martins, Maceió - AL CEP 57072-900

E-mail: rforadacaixa@gmail com

Instagram: @revista.foradacaixa

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O CASO DO ÔNIBUS 174

NARRATIVAS AFROBRASILEIRAS: DO EMBRANQUECIMENTO AO EMPODERAMENTO

POR TRÁS DAS LENTES: UMA VISÃO AFROCENTRADA DA FOTOGRAFIA

EDITOR-CHEFE

Marcelo Robalinho (MTE 13538/PE)

MONITORIA

Maykon Felipe

EDITORAS RESPONSÁVEIS

Editora: Beatriz Mendonça

Subeditoras: Mª Clara Godoy e Mª Clara Tenório

REPORTAGEM

Amanda Gabrielle

Elisson Monteiro

Maria Eduarda

Ramon Dantas

Sâmara Souza

Theresa Ebrahim

NÚCLEO DE DESIGN

Editor: Maykon Lopes

Subeditora: Caroline Oliveira

Diagramadora: Eduarda Cavalcante

NÚCLEO DE REDES SOCIAIS

Editor: Yuri Melo

Subeditor: Ramon Dantas

Social Media: Fernando Rocha

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CENA ALAGOANA 22 [
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O R I A L

E D I T

Écom entusiasmo que damos boas-vindas à 7ª edição da Revista Fora da Caixa. Neste

número, dedicamos nosso trabalho de pesquisa e escrita a um tema de extrema importância para a cultura alagoana e brasileira, o Dia da Consciência Negra. Comemorada em 20 de novembro, essa data nos convida a relembrar a luta do povo afrobrasileiro e questionar as estruturas que ainda mantêm a desigualdade na sociedade, sendo um marco de valorização, orgulho, empoderamento e reconhecimento da identidade negra, além, é claro, de combate ao racismo e à discriminação. Por isso, buscamos discutir pautas que trazem não só visibilidade à cultura e às conquistas do povo preto, mas também às suas necessidades e obstáculos, além de reflexões sobre alternativas para atenuar essas situações, afinal, a luta pela igualdade e inclusão é coletiva.

Na editoria de cultura, buscamos transformá-las numa plataforma de promoção para vozes negras, em que observaremos criticamente a presença de negros nos espaços culturais. Em “O PRETO É CHAVE”, conhecemos o artista Gleyson Borges, idealizador do projeto “A coisa ficou preta”, que utiliza da colagem de cartazes em muros pela cidade de Maceió. Já na reportagem “NARRATIVAS FRO-BRASILEIRAS” refletimos sobre duas obras feitas por autores negros: o clássico “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e o

contemporâneo “Os Meninos da Parte Alta”, de Madson Costa A produção que leva o nome desta edição - “O PRETO É POP” - não poderia deixar de ser mencionada Nela, exploramos a musicalidade da cultura negra do estado de Alagoas e ampliamos o nosso leque musical conhecendo cinco artistas que vêm ganhando destaque no cenário musical local. Convidamos você a “sair da caixa” conosco e participar de uma experiência imersiva na cultura preta que destaca figuras e eventos, sem jamais perder de vista a relevância da luta conduzida pelos nossos antepassados e a influência duradoura. Uma ótima leitura!

Redação da 7ª edição da Fora da Caixa

Os textos veiculados nesta revista não representam a opinião da UFAL, nem do curso de Jornalismo.

F o t o : R e p r o d u ç ã o / I n t e r n e t

PRETO É CHAVE:

LIBERDADE E EMPODERAMENTO NA ARTE PRETA URBANA

Em entrevista, o artista Gleyson Borges explica o sentido das intervenções nos muros da cidade

“Hoje é dia de lembrar de ser livre

Lembrar que todo dia é dia de ser livre

Preto luta

Verdade velha como o próprio tempo

Mas preto não é luta

Não

Preto é liberdade

Não somos definidos pelas batalhas

Somos definidos por quem somos

Mas tanta peleja pode deixar a gente perdido da gente

Dizem que somos tantas coisas

Que às vezes a gente acaba acreditando

Vamos nos diminuindo

Nos adequando pra tentar nos encaixar

Mas calma, a gente vai se reencontrar

Não temos opção

A liberdade está na nossa essência

E pra isso temos tudo o que precisamos

Preto é chave

E tem coisa que só se abre por dentro”

Texto escrito pelo artista Gleyson Borges para ilustrar a peça “Tem coisas que só se abrem por dentro”

6 ARTE
FORA DA CAIXA
F o t o : G l e y s o n B o r g e s
Lambe-lambe “Tem coisas que só se abrem por dentro”

Por muitos anos, a cultura negra tem enfrentado uma persistente desvalorização e opressão. Todavia, ao longo das últimas décadas, influenciadores e ativistas, como o artista negro alagoano Gleyson Borges, idealizador do Projeto “A coisa ficou preta”, têm buscado desafiar essa realidade, expondo ao mundo, por meio da arte, a beleza e a importância da cultura preta Alagoano, nascido em Maceió, o artista de 31 anos desenvolveu, ainda na infância, o gosto pela arte.

Quando pequeno, decalcava desenhos de anime em seus cadernos e, apesar de não se achar um bom desenhista, nunca considerou a possibilidade de abrir mão daquilo que lhe trazia prazer e contentamento.

Ao longo dos anos, trabalhou com diversos tipos de arte, entre elas, o estêncil, uma forma de grafite na qual se trabalha com telas recortadas no formato da imagem que se deseja produzir. Atualmente, utiliza a técnica lambe-lambe - que, diferentemente do grafite, feito com spray, ou da arte dos murais - possibilita a criação das artes que serão reproduzidas com mais calma Esse meio de produção artística possibilita ao criador se preocupar apenas com a aplicação de suas peças em locais estratégicos –geralmente, de grande visibilidade. Ou seja, é uma forma de arte que envolve a colagem de cartazes desenvolvidos graficamente. Em suas próprias palavras, o artista diz fazer “intervenções pretas em muros brancos”. Nessa conversa desconstruída, Gleyson Borges nos conta como a arte tem desempenhado um papel fundamental na libertação e no empoderamento na sua vida.

7 ARTE
FORA DA CAIXA

Fora da Caixa – Como surgiu o projeto “A coisa ficou Preta”?

Gleyson Borges - Então, desde 2016 eu desejava desenvolver uma arte que fosse voltada para negritude, um projeto de arte urbana afrocentrada, e já tinha até o nome “A coisa ficou preta” em mente, mas não sabia por qual meio poderia fazer isso Na época eu desenvolvia quadros de madeira pintados com estêncil e cheguei a pensar em fazer isso nos muros, mas não era o que eu queria Em 2018, o lambe-lambe apareceu na minha cabeça. Não era uma novidade, mas era algo que eu nunca havia parado para pensar, aí a ideia bateu! Eu pensei: “Bom, eu trabalho com designer gráfico, eu posso criar minha arte, pra colar na rua ” e, depois dessa ideia, já fiz minha primeira arte e colei meu primeiro lambe em quatro dias

FC– Qual foi o momento em que a sua arte foi reconhecida pela primeira vez?

GB - Esse reconhecimento é muito difícil de acontecer, geralmente eu colo o lambe e vou embora, não fico esperando para ver a reação das pessoas. Eu passei a maior parte do tempo fazendo esse trabalho de maneira anônima pelo menos por 2 ou 3 anos Nem os amigos mais próximos sabiam que eu fazia. Comecei a utilizar o Instagram como uma forma de documentar minha arte para que ela não ficasse presa a uma limitação geográfica Foi muito doido quando perfis grandes, como Mídia Ninja e Quebrando o Tabu, começaram a compartilhar o meu trabalho. Comecei a observar uma grande repercussão e o crescimento do número de pessoas que passaram a me acompanhar, foi muito massa e ao mesmo tempo assustador!

FC – Qual motivo te fez iniciar esse proje-

to de maneira anônima e qual momento você decidiu tornar a sua autoria pública?

GB - Eu só cansei de me esconder No começo eu tinha uma preocupação, um medo, por ser algo muito novo, de sofrer algum tipo de retaliação, alguma parada que pudesse me prejudicar de alguma forma. Mas, com o tempo, eu fui entendendo como as coisas funcionam e me sentindo mais seguro. Estou sempre atento e aprendi a colar nos lugares certos E, também, eu não queria que tivesse o viés de “é o Gleyson que tá fazendo”, eu não queria esse rótulo, queria ver onde as coisas iriam dar Um tempo depois, começou a pandemia, foi aquela loucura toda e eu parei de colar por causa do isolamento Quando as coisas começaram a ser liberadas, os vídeos curtos passaram a ser uma forma apreciada de conteúdo, algo que eu sempre curti muito e que diversificou a minha criação. Antes eu só postava as artes e agora eu poderia compartilhar os processos com as pessoas, o dia a dia, e acabei começando a aparecer, inicialmente apenas de costas Foi de maneira gradual, foi acontecendo naturalmente.

FC – Como funciona o seu processo de criação?

GB - Depende da vivência pessoal, de outras artes, músicas, filmes, anime, livros, vida real, notícias, não tem um processo bonitinho, tudo isso acaba influenciando de alguma forma Eu tenho uma nota no meu celular, onde vou anotando minhas ideias. Algumas ficam guardadas por anos Eu observo muito os muros também, vou andando pela cidade e percebendo muros e alguns têm especificidades, e aí eu penso em projetos específicos que só funcionam naquele muro e ele se transforma no meu espaço criativo. Eu acho sensacional quando a arte interage com o espaço!

8 ARTE FORA DA CAIXA

FC – Você acredita que a arte tenha se transformado em um objeto de luta nas suas mãos?

GB - Eu acho que a arte precisa sempre estar voltada à ação, ela precisa movimentar as estruturas, acho que a arte pela arte é só algo estético, ela precisa ter função e eu enxergo dessa forma. Eu quero que a minha arte gere uma ação, uma reflexão, um empoderamento Eu não tenho como desassociar o meu trabalho da luta, mas eu também não quero limitar essa luta à dor Quando a gente se ama, ainda é luta, mas não é dor! Coisas que a gente se empodera, se emancipa, é luta, mas não é dor Terão obras que serão dolorosas mesmo, porque eu não estou aqui pra maquiar nada, mas eu não quero falar só das nossas lutas, eu quero falar das nossas vitórias também

FC – Como a consciência racial chegou na sua vida?

GB - Esse processo basicamente é o motivo de eu fazer minha arte Eu cresci como uma criança negra de pele clara e a gente fica muito num nãolugar, é o clássico “claro demais pra ser preto e escuro demais pra ser branco”. Eu já fui muita coisa: moreninho, pardo, mulato, moreno-jambo, até que, um dia, já depois, nos meus vinte e poucos anos, eu me redescobri como uma pessoa negra, e esse foi um processo que se iniciou quando eu era criança e hoje eu enxergo isso de forma muito mais clara Foi uma jornada de autoconhecimento, com muita terapia e tomada de consciência. Eu olho pra trás e vejo os pequenos momentos que me marcaram Acredito que o que me fez ter consciência da minha raça foi a arte, a música Especificamente através do rap, eu comecei a prestar atenção nas letras e a reconhecer a minha vida nelas e isso foi essencial

para que eu seja quem sou hoje. E essa minha ideia de trabalhar com arte afrocentrada é a minha forma de retribuir, o que a música fez comigo, eu espero que a minha arte possa fazer por outras pessoas

FC – Uma das suas obras é “Quantos artistas negros têm no seu filme favorito?”

e uma das editorias dessa edição da revista fala exatamente sobre o protagonismo negro no cinema. Eu gostaria que você comentasse sobre essa obra e qual a mensagem que você quis passar com ela.

GB – Essa foi uma das artes que eu fiz que teve mais repercussão, que chegou a sair em grandes perfis, mas que eu acredito que tenha sido mal interpretada. Eu, inclusive, repostei recentemente e acredito que ela tenha sido mal interpretada porque as pessoas se perdem na pergunta A ideia realmente é provocar. Ainda hoje, se nós formos pegar os grandes filmes comentados pela crítica, quantas pessoas negras tem nesses filmes? As pessoas começam a comentar dizendo que seus filmes favoritos são Histórias Cruzadas, Pantera Negra, Estrelas Além do Tempo, 12 Anos de Escravidão, mas elas não entendem que esse é apenas o início da discussão. Se o seu filme tem pessoas negras, porque a temática envolve pessoas negras, então o filme não existiria sem pessoas negras, mas e quando pegamos um romance, uma ficção científica, um filme que não tem nada a ver com raça, como ficam esses números? E não é só sobre o protagonismo, é sobre participação, personagens bem escritos, equipe de produção, é sobre arte, sobre fotografia, então é uma conversa muito mais profunda Esse é um problema que ainda existe. O Pantera Negra é um filme incrível, mas até quando ele vai ser a nossa única referência? Ainda estamos longe do ideal!

9 ARTE FORA DA CAIXA

“A coisa ficou preta” critica a falta de diversidade no cinema

FC – Há alguma arte que tenha tocado mais você, que seja a sua favorita?

GB – Eu acredito que seja a “Menina na Janela” Eu gosto muito de escrever, essa é uma zona de conforto para mim e a maioria dos meus lambe-lambes têm textos, por isso eu gosto de me desafiar a criar artes sem textos E essa da janela foi muito foda de fazer. Eu não sei como surgiu, eu apenas fui fazendo e do nada virou uma coisa sobre olhar para dentro, destravar algumas coisas dentro da gente. Essa é uma dessas obras que vêm no sentido de luta, mas não dor É sobre descoberta, saúde mental e eu me vejo muito nela.

FORA DA CAIXA 10 ARTE
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G l e y s o n B o r g e s
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F o t o : G l e y s o n B o r g e s
Uma das primeiras imagens publicadas pelo artista
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G l e y s o n B o r g e s
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Arte desenvolvida para ser aplicada no muro manchado

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PORTAS PARA A UNIVERSIDADE: UMA DÉCADA DO SISTEMA DE COTAS NO BRASIL

Visando a equidade, a lei de cotas já demonstra consideráveis melhorias no acesso à educação superior no Brasil

OBrasil foi o último país a abolir a escravidão, que durou 350 anos, deixando diversos prejuízos à população preta do país, os quais persistem até agora, principalmente no que tange o acesso a melhores condições e qualidade de vida. No entanto, nos últimos 11 anos, como uma forma de tentativa de reparação histó-

rica, esses indivíduos vêm sendo minimamente ressarcidos no ensino superior por meio do sistema racial de cotas, estabelecido em 29 de agosto de 2012, durante o governo da ex-Presidente da República Dilma Rousseff, possibilitando o ingresso às instituições, como as universidades e institutos, de acordo com critérios socioeconômicos.

Pessoas negras, que formam 55,8% da população brasileira e 71,9% da alagoana, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vêm sendo beneficiadas com a possibilidade de admissões nas universidades. O que tem permitido a visibilidade do sonho de uma maior equiparação social, comentada por sociólogos e historiadores, durante tantos anos, como o autor do famoso discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho), Martin Luther King Jr, um ativista norteamericano, graduado em sociologia na Morehouse College, uma faculdade negra estadunidense historicamente respeitada, e doutor em teologia, pela Universidade de Boston. A problemática em questão do Brasil ter sido o último país do continente americano a abolir a legalidade da escravidão, suscita o debate de que essa abolição apenas aconteceu tecnicamente, tendo em vista que não resolveu a totalidade das questões referentes aos direitos que eram negados

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Ativista Martin Luther King com Dexter, o filho mais novo
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c h u l k
F l i p S
e

aos negros, já que, foram libertos sem nenhum auxílio para sua integração social, fazendo com que permanecessem em estado completamente precário, ao ponto de alguns preferirem o seu estado anterior de escravidão.

Observando essa necessidade de remediar alguns dos prejuízos históricos que permearam, e ainda permeiam grande parte da sociedade brasileira, o sistema racial de cotas foi estabelecido por intermédio da Lei

Federal nº 12.711/2012. Pelas ações afirmativas desse sistema que visa à integração de pessoas negras, as cotas exigem que 50% das vagas disponibilizadas nas instituições federais sejam reservadas para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e preencham a determinados requisitos socioeconômicos, bem como também abrangem outras minorias, incluindo estudantes que se autodeclaram pretos ou pardos, o que visa a contribuir para que estes consigam o acesso às universidades.

Atualmente, mais de 10 anos depois que a lei entrou em vigor, ainda existem grupos políticos que se impõem contra as cotas raciais, estes, defendem-se por trás de um discurso meritocrático, afirmando que os negros não ocupam determinados lugares mais elevados na formação social porque não buscam, ignorando a historicidade dos fatos, que evidenciam a precaridade em que a população preta ainda se encontra por conta dos anos de escravidão.

O que, por si só, faz com que se reconheça a necessidade e a importância das cotas para que haja a tentativa de reparar os danos

FORA DA CAIXA 12 EDUCAÇÃO
F o t o : F r e e p i k / R e p r o d u ç ã o
As leis de cotas abrem portas para minorias chegarem às universidades brasileiras e terem acesso à educação

causados pela escravização. Ao longo da última década, consegue-se ver, cada vez mais, ótimos profissionais negros contribuindo para o progresso da sociedade brasileira, mostrando que a questão para não ocuparem esses cargos nada tem a ver com mérito, mas sim com os pesados resquícios deixados pela escravidão.

Independentemente das colocações equivocadas que tentam ser impostas de diversas formas, ao longo do tempo, a realidade é que as cotas já se mostraram bastante eficientes em sua proposta.

Segundo o Relatório da Lei de Cotas, nos 11 anos que se passaram, a entrada de alunos negros no ensino superior aumentou em quase 400%. Para supervisionar e melhorar os resultados, a cada dez anos, a política de cotas deverá passar por uma avaliação, com monitoramento anual, como aconteceu no ano de 2022, mostrando os bons resultados Ela será analisada novamente em 2032, com intuito de revisar os benefícios dos 20 anos

A Universidade Federal de Alagoas (Ufal) já adota o sistema de cotas desde 2003, sendo uma das três primeiras do Brasil a reservar na época 20% das vagas para negros estudantes de escolas públicas Atualmente, dos 50% dos estudantes que entram na Ufal pelo sistema de cotas, 47%, em média, são negros

Romison Florentino, estudante de Jornalismo da instituição, foi um dos beneficiados. A implantação das cotas favoreceu o acesso de parte importante da população ao ensino superior. “Se fosse oferecido um melhor ensino nas escolas públicas, seria muito mais fácil para os negros terem acesso às universidades”

Para Caroline Oliveira, estudante de Jornalismo da Ufal, que também ingressou utilizando o sistema, desde muito tempo, os afrodescendentes foram taxados como a pior parte da população e mortos por terem uma cor mais escura. “O acesso à educação superior por meio das cotas levou à recuperação da dignidade parcialmente. Encontrar pessoas pretas ocupando espaços em cargos considerados altos, é gratificante Me deixa com uma imensa vontade de lutar ainda mais pelo meu espaço de direito”

“ENCONTRAR PESSOAS PRETAS

OCUPANDO

ESPAÇOS EM CARGOS CONSIDERADOS ALTOS, É GRATIFICANTE”

CAROLINE OLIVEIRA ESTUDANTE

Danilo Marques, coordenador geral do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Ufal diz que o grande desafio atual é garantir o monitoramento, acompanhamento e avaliação da política e a permanência do estudante no ensino superior. “A lei assegura o acesso à universidade Só que a grande questão é a permanência desse aluno na Ufal até ele se formar, incluindo a ampliação do Restaurante Universitário e da Residência Universitária, aspectos que também envolvem o acesso”, reconhece o professor

* Com colaboração de Marcelo Robalinho

13 EDUCAÇÃO FORA DA CAIXA

Com o propósito de combater o racismo e a discriminação no ambiente hospitalar, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra foi criada em 2006

A DESIGUALDADE RACIAL NO ATENDIMENTO À SAÚDE DA POPULAÇÃO PRETA

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as, pessoas pretas e pardas são a maioria na população brasileira, representando 55,8% Contudo, não há como negar que ainda persiste um preconceito silencioso e não declarado O racismo estrutural e institucional dificulta o acesso a uma série de direitos básicos, como a saúde, educação, moradia e afins, para a população negra Quando o assunto é saúde, 67% dos negros dependem apenas o Sistema Único de Saúde (SUS).

Mesmo que o SUS tenha como propósito a universalização, equidade e integralidade, o racismo é presente para os usuários negros que utilizam esse sistema, que morrem precocemente por doenças evitáveis Essa discriminação enquadra também os médicos, enfermeiras e todos os atuantes negros da saúde pública

O surgimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PnSiPn) em 2006 se deu no país após a pactuação de

compromissos entre o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Social. O objetivo foi superar situações de vulnerabilidade em saúde que afeta a população negra. O ministério, através de estudos relacionados às desigualdades, estabeleceu um diálogo com movimentos voltados à equidade, como o Comitê de Saúde da População Negra

Através disso, o projeto é desenvolvido e aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde Assim, a política nasceu para atenuar a manutenção da desigualdade, que reserva para a população negra o lugar das classes sociais mais pobres e de condições precárias, em ambientes hospitalares

A política ainda tem a capacidade de ampliar e fortalecer o controle social, combater e prevenir o racismo estrutural no ambiente de trabalho, nos processos de formação e educação permanente de profissionais, promovendo a implementação de ações afirmativas para alcançar a equidade em saúde e promover a igualdade racial

FORA DA CAIXA 14 SAÚDE

Para assegurar os direitos da população negra no SUS, a Política Nacional de Saúde Integral busca se articular com as diferentes áreas técnicas dos níveis de atenção que compõem a rede de serviços em saúde, como também comissões intergestoras compostas por representantes estaduais e municipais. Em Alagoas, o Comitê Técnico para a Saúde da População Negra foi criado pela Secretaria de Estado da Saúde, em 2018, no intuito de avançar nas ações de combate ao racismo na rede pública de saúde.

No primeiro semestre de 2023, após retomar as atividades paralisadas com a pandemia da covid-19, o grupo iniciou um projeto piloto em Arapiraca, no agreste alagoano, para capacitação dos profissionais das unidades

básicas sobre o racismo presente no SUS, além de questões relacionadas a doenças prevalentes na população negra, como o diabetes e a hipertensão Para 2024, a ideia é ampliar o trabalho de formação para as counidades quilombolas, a exemplo do que foi feito no Quilombo de Jacú e Mocó. em Poço das Trincheiras, no sertão. “O racismo segrega o acesso da população negra aos serviços e revela casos de violência no atendimento e subnotificação de dados A adoção de abordagens diversificadas como condição para a redução das diferenças existentes, essência da equidade, é um dos principais caminhos para resolução de parte dos problemas observados”, constata Marcos Paulo de Oliveira, assessor técnico que atualmente gerencia o Comitê Estadual.

F o t o : R e p r o d u ç ã o / R e d e B r a s i l A t u a l FORA DA CAIXA 15 SAÚDE
No Brasil, apenas 3% dos profissionais de saúde são negros, aponta o Conselho Federal de Medicina (CFM)

REPRESENTATIVIDADE

Se você pudesse contabilizar quantos profissionais da saúde negros já te atenderam, qual seria o resultado?

Provavelmente, nenhum.

Pelo levantamento “Demografia Médica do Brasil”, publicado em 2020 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), apenas 3% dos profissionais eram negros.

DE ACORDO COM O RELATÓRIO DE DEMOGRAFIA MÉDICA

DO BRASIL,

PUBLICADO EM 2020, APENAS 3% DOS

PROFISSIONAIS ERAM NEGROS

Caroline Oliveira, negra e graduanda de jornalismo da Ufal, conta que, nas vezes em que se viu em um ambiente hospitalar, nunca se sentiu representada “Teve um período da minha vida em que precisei ir ao hospital com frequência e a grande maioria dos médicos que me atenderam era branca”, relata a estudante. Além do atendimento à população negra ser defasada, percebemos que há poucos profissionais negros atuando na área da saúde no país, evidenciando no país um problema de elitização do curso de medicina, ocupado majoritariamente por pessoas brancas e de alta renda

Ewerthon Cirilo, negro e graduando de odontologia, revela os entraves que vem enfrentando. “Por ter crescido no interior,

confesso que não me recordo de ter sofrido racismo em algum momento da minha vida. Porém, quando me mudei para estudar em Maceió, notei a falta de pessoas negras atuantes na área da saúde”, afirma.

O estudante conta ainda que quando iniciou o processo de estágio percebeu ainda mais a falta de representatividade. “Quando comecei a estagiar percebi ainda mais essa falta de representatividade Até o momento eu não sofri nenhum tipo de discriminação, apenas alguns olhares desconfortáveis, mas nenhuma situação que me causasse grande desconforto. Até porque esses olhares são algo que, quando se é negro, você se acostuma”, conta.

“QUANDO ME MUDEI PARA ESTUDAR EM MACEIÓ, NOTEI A FALTA DE PESSOAS NEGRAS ATUANTES NA ÁREA DA SAÚDE”

EWERTHON CIRILO ESTUDANTE

No último período do curso, o estudante afirma ter esperança que essa situação seja resolvida. “É importante que lutemos cada vez mais por um espaço na área da saúde para que, assim, existam oportunidades para outras pessoas e isso não ocorra mais futuramente”, conclui

* Com colaboração de Marcelo Robalinho

FORA DA CAIXA 16 SAÚDE

CINEMA TEM COR?

A representatividade negra através da perspectiva do audiovisual

Como bem se sabe, os filmes fazem parte de todo um sistema de representação simbólica nossa da sociedade e, em grande maioria, as produções são realizadas sob a perspectiva de homens brancos Por esse fator, em muitas produções, pessoas pretas têm a imagem prejudicada, considerando que a representação de personagens negros é associada a estereótipos de pessoas marginalizadas pela sociedade

A maior parte dos filmes brasileiros trabalha com combinações, propositais ou não, que promovem a inferiorização racial de alguns personagens ao retratar mulheres negras como escravas ou empregadas doméstica e relacionar a figura do homem preto a estereótipos de criminosos, como ladrões e traficantes. Há um sentido sociológico nas representações da imagem da pessoa preta no imaginário popular, o que também se ambienta no audiovisual, legitimando as posições impostas há séculos pela sociedade branca ao povo preto.

Porém, há produções que valorizam a imagem do povo preto Mostram ainda a importância de debater o assunto sobre como o cinema se insere de forma positiva na afirmação racial da identidade negra e suscitam o debate de que, à medida que o cinema negro resgata a identidade fragmentada de seu povo, ele traz reflexões sobre a posição social imposta sobre o preto e seus aspectos culturais

Os produtores de documentários refletem acerca de algumas das tensões sobre o cinema negro atual brasileiro, tais como a representação do negro no cinema brasileiro em personagens estereotipados e a ocupação e o lugar de fala desses agentes sociais, tanto na frente das câmeras, como nos bastidores.

“Quilombo” é um derses exemplos de representação Coprodução brasileira e francesa de 1984, esse drama dirigido pelo alagoano Cacá Diegues retrata a vida no Quilombo dos Palmares em um período cer-

FORA DA CAIXA 17 CINEMA
F o t o : R e p r o d u ç ã o / Z e z é M o t t a c o m o D a n d a r a e m Q u i l o m b o ( 1 9 8 4 )

cado de dificuldades, insalubridades e preconceitos devido à luta contra a opressão portuguesa. O roteiro foi baseado nos livros “Ganga Zumba”, de João Felício dos Santos, e “Palmares: a guerra dos escravos”, de Décio de Freitas. Historicamente, Alagoas é terra do Quilombo dos Palmares, uma comunidade que foi formada por negros escravizados fugidos de fazendas, prisões e senzalas

Zezé Motta, com mais de 50 anos de carreira atualmente, teve destaque em “Quilombo” por interpretar Dandara dos Palmares, uma guerreira negra do período colonial do Brasil. Ela é uma das personagens mais importantes do filme tanto por ser uma das mulheres mais resistentes na luta negra no Brasil quanto por ter o legado vivo apesar do apagamento histórico devido ao machismo e racismo, a sua liberdade e ideologia vivem

Era um dos maiores quilombos do Brasil no período colonial, entre os séculos XVI e XIX, sendo naquela época sua população de aproximadamente 30 mil escravos O filme tem a preocupação de mostrar as mudanças nos três últimos “governos” em Palmares: Acotirene, Ganga Zumba e Zumbi. Passados mais de 20 anos, essa é uma obra essencial para a filmoteca dos militantes e de entidades quilombolas por exaltar Zumbi dos Palmares, ícone da luta negra Cacá Diegues conseguiu parceria com uma empresa francesa.

No entanto, se empresas brasileiras (sejam estatais e/ou privadas) investissem em produções audiovisuais, o mérito não precisaria ser compartilhado com empresas

estrangeiras, que, além de catapultarem cineastas e obras audiovisuais no mercado mundial, lucram muito pelos investimentos de outras culturas.

“Quilombo” foi aclamado pela crítica pela atuação do elenco, com a presença de artistas como Antonio Pitanga, Grande Otelo, Toni Tornado, Mauricio do Valle e Antonio Pompeu A trilha sonora foi composta pelo baiano Gilberto Gil, uma das mais interessantes do audiovisual brasileiro, com canções como “Ganga Zumba” (Poder da Bugiganga), “Festa do Cometa”, “Dandara” e “Zumbi” (Felicidade Guerreira) misturando reggae, pop, ritmos afro e batuques em arranjos e vocais de grande competência.

O filme, infelizmente, não fugiu de críticas básicas como a “glamourização” da história dos personagens e teria tirado do sério as situações-problema que aconteceram na Serra da Barriga, localizada na região do município de União dos Palmares, na zona da mata de Alagoas. Com o passar do tempo, a tecnologia tornou-se uma forte ferramenta e aliada para o processo de trabalhos remotos, aulas e até mesmo produções artísticas de séries e filmes. Qualquer pessoa pode produzir.

Então, a compreensão de que a realidade social é racista e que nega à comunidade negra seus principais elementos de valorização identitárias, no ponto de vista estético e cultural, é exemplificada no documentário “Águas Profundas Salgadas de Poeira e Afeto”, um filme produzido pela Colettiva Preta e a Associação Quilombola de Piracanjuba Ana Laura O filme mostra a

FORA DA CAIXA 18 CINEMA
F o t o : D i v u l g a ç ã o / A m a z o n P r i m e V i d e o

história do Colettiva, que teve início em 2021 como forma de sobrevivência de mulheres negras, periféricas, quilombolas e indígenas, cujas mudanças foram impactadas pela pandemia de covid-19

Elas se uniram e passaram a realizar eventos, nos quais expõem e comercializam seus trabalhos e também onde encontram apoio, convivência e partilha de suas realidades Para Renata Caetano, uma das idealizadoras do documentário “Águas Profundas Salgadas de Poeira e Afeto”, entre outros tantos objetivos, a produção dá voz a essas mulheres. “É mais uma possibilidade de enfrentamento ao racismo”, ressalta.

“É MAIS UMA POSSIBILIDADE DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO”

CAETANO

IDEALIZADORA DO DOC “ÁGUAS

SALGADAS DE POEIRA E AFETO”

Em outra perspectiva de destaque, o minidocumentário “Do Quilombo pra Favela - Alimento para a resistência negra” mostra a realidade nua e crua das comunidades quilombolas e como em um período de dois anos, a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) recuperou suas forças para enfrentar a insegurança alimentar e o sonho de crescer. Valorizar a alimentação quilombola conectou suas raízes negras à uma favela da zona oeste de São Paulo através do alimento e da solidariedade

Um estudo publicado em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional mostra que 33 milhões de pessoas vivem em situação de fome no Brasil E ainda: que 65% dos domicílios com pessoas de referência preta estão com algum grau de insegurança alimentar. Um aumento de 8% em relação a 2020. O mesmo estudo mostra que a agricultura familiar e as comunidades tradicionais deixaram de receber recursos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), iniciativas do Governo Federal fundamentais para incentivar que os pequenos produtores rurais possam produzir alimentos para combater a fome. O plano emergencial da cooperativa retratado no filme deveria ser visto como modelo no período póspandemia, porque gera renda para quilombolas que podem produzir, fortalece a agricultura familiar e alimenta quem tem fome, além de viabilizar o problema para todos assistirem.

A economia solidária, somada ao cooperativismo, é uma estratégia de desenvolvimento econômico e social que coloca a agricultura no foco precisa ganhar cada vez mais força no debate político por fomentar o setor primário e familiar Esse filme, com duração de 22 minutos, acompanha o trabalho da cooperativa desde os primeiros momentos da crise sanitária do novo coronavírus até as trocas de experiências entre quilombo e favela, que resultaram em uma partida de futebol com toda a emoção próxima das mulheres negras, agricultoras, quilombolas e atletas com futuro brilhante

FORA DA CAIXA 20 CINEMA

Cartaz do minidocumentário Do Quilombo pra Favela, ilustrado por Amanda Nainá e Deco Ribeiro, com uma representação de integrantes da agricultura inovadora

Equipe feminina de futebol do Esporte Clube São Pedro, uma das entidades quilombolas ligada à Cooperquivale, em amistoso realizado no Vale do Ribeira, em São Paulo

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F o t o : D i v u l g a ç ã o / I n t e r n e t
F o t o : M a n o e l a M e y e r / I S A

Ao mencionar um futuro brilhante, entrevistamos Victor Alex Grazioso, estudante de cinema na Escola Criattiva. Ele encontra inspirações dentro do cinema. Antes, a nível internacional no mundo cinematográfico não existia tanto protagonismo quanto atualmente “A mídia é uma projeção da realidade e precisamos ocupar mais espaços dentro das produções como filmes, séries com papéis principais, para assim, sermos respeitados. Nossa comunidad cultural qu infelizment

Um de se talentosas: 2009, com autobiogra

Carson, des dos maiore mundo

Preto e pob problemas o preconce meio ao s inspira, em protagonism gênero dr vezes, rom problemas Essa obra m coragem” biográfico: Jordan. “S baseados em um grande do mercado

Então, mais

flexão e abordagem do protagonismo negro em filmes, sobretudo da comunidade quilombola nos documentários e produções. Por meio de produções emblemáticas que possibilitam absorver conhecimento e referências culturais nacionais históricas fora do alcance geográfico permitam viabilizar uma perspectiva que o cinema é de todas as cores.

FORA DA CAIXA CINEMA
F o t o : C o r t e s i a / J e f f e r s o n A l v e s
Victor Grazioso encontra inspiração no cinema

Conheça os artistas pretos que vêm ganhando destaque no cenário musical local

Por Maria Clara Godoy e Maria Clara Tenório

Alas suas diversas vertentes na promoção da consciência negra. Incubadora de uma miríade de gêneros e expressões, a música afrodescendente desempenha um papel vital na sociedade, impulsionando a preservação da identidade, o orgulho étnico e a narrativa histórica. Além disso, esse tipo de música se constitui como um veículo poderoso para denunciar a opressão, expressar a resistência e inspirar a resiliência em novos horizontes conquistados

A black music surgiu no Brasil no contexto da ditadura militar, período marcado pela repressão política e cultural, nos anos 60, 70 e parte dos 80 Foi nessa mesma época que os bailes black passaram a agitar o cenário musical do país, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, influenciados pelo movimento de direitos civis dos Estados Unidos Esses eventos, onde discos de funky e soul ecoavam pelas pistas de dança, marcaram o nascimento de uma revolução musical e desempenharam um papel fundamental na promoção da autoestima da juventude negra durante 60 e 70 Posteriormente, à medida que o movimento soul atingia seu auge, outros estilos musicais, como o Miami bass – que daria origem ao funk brasileiro –, o rap e o reggae, também conquistavam seu espaço nas paradas de sucesso. Em Alagoas, a música preta adquiriu suas próprias particularidades Caracterizada por elementos que evocam o folclore popular, com ritmos profundamente enraizados na musicalidade africana, a sonoridade popular o explorar a musicalidade dentro da rica tapeçaria da cultura preta, é fundamental compreender o papel essencial desempenhado pe-

26 FORA DA CAIXA

alagoana está intrinsecamente ligada ao tradicionalismo cultural Entre os ritmos que merecem destaque nessa temática, destacam-se o coco de roda, o maracatu –que, embora tenha fortes raízes em Pernambuco, também é bastante presente em Alagoas –, o samba de roda, e uma série de nomes e grupos reconhecidos que representam esse cenário na música regional O músico Chau do Pife, considerado um Patrimônio Vivo do Estado devido ao seu talento e contribuição significati brasileira

Atualmen derivadas incluem o letras experiênc adversida desiguald vitórias al e a liberd hip-hop, o como um diz respei além de denunciar preto. No de sua ri devido à aborda. A a muitos e grito de r de sua cul travar um seu lugar predomin brancos. inovadora

ritmos afro podem ser identificadas nas produções musicais contemporâneas, que exploram temas que transcendem a luta, abordando questões como a fragilidade das relações amorosas, a busca pela autoestima, a poesia e a literatura, a celebração e a juventude Desse modo, a musicalidade negra é remodelada e apresentada como uma fusão entre a tradição e a contemporaneidade, uma harmoniosa combinação entre a história e os hits, e isso se manifesta vividamente nas produções dos

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J o t a PF o t o : R e p r o d u ç ã o / I n s t a g r a m
Single “Sentimentos”, do JotaP, realizado em 2022, já registra quase 90 mil reproduções no streaming Spotify

JOTAP

Para João Paulo Nicolau, de 20 anos, a inspiração para dar os primeiros passos em sua jornada musical surgiu dentro de sua própria casa. “Meu primeiro contato com a música aconteceu por meio da minha família, que ouvia muito samba e pagode Esse foi o gatilho que despertou em mim o desejo de aprender a tocar violão e, com o tempo, me desenvolver no canto, na produção e na composição musical”, conta.

“ESSE FOI O GATILHO QUE DESPERTOU EM MIM O DESEJO DE APRENDER A TOCAR VIOLÃO E

JOTAP ARTISTA

Sob o nome artístico de JotaP, o artista chega ao mundo do trap, subgênero do rap caracterizado pelo uso de batidas lentas e pesadas e um forte uso de sintetizadores, em meados de 2020, com o enérgico single “Astronauta”. Compositor e produtor de suas próprias canções, o artista também dirige a produção criativa de outros artistas alagoanos em seu estúdio, onde se dedica integralmente. Com uma base de 12 mil ouvintes no Spotify no ano de 2022, ele compartilha que sua maior projeção veio por meio do TikTok, plataforma que vem se consagrando como um meio popular para a promoção musical.

Ele relembra: “Recebi um áudio de uma certa mulher terminando um relacionamento fictício para gerar conteúdo, que usei para fazer uma música Compartilhei e acabou viralizando” – no mundo do trap, a incorporação de mensagens de voz de término nas faixas recentemente ganhou popularidade. O acontecimento deu origem ao single “Sentimentos”, de 2022, e à parceria com a Lavez Family, grupo de amigos e artistas independentes que se reúnem para produzir de forma mais descontraída que descreve como uma “segunda família”

Como artista preto, JotaP observa uma mudança no panorama atual. “Ainda enfrento dificuldades óbvias, especialmente quando me deparo com a ignorância de alguns que julgam pela cor da pele ou pelo local de origem, mas tenho percebido menos barreiras reais no cenário artístico”, diz Ele ainda descreve a relação com seu público como muito aberta, não hesitando em compartilhar detalhes sobre sua vida profissional e, até certo ponto, aspectos de sua vida pessoal. Essa transparência tem resultado em um vínculo com seus seguidores, que frequentemente retribuem com apoio entusiasmado, compartilhando seu conteúdo, elogiando-o e participando ativamente de sua jornada musical. E a expectativa é de crescer ainda mais “Meu maior sonho enquanto um artista é ser reconhecido e valorizado pelo talento e a disposição que possuo”, finaliza

Trecho da música: “Não acredito no que você fala, porque nada justifica o que você faz” (Sentimentos – JotaP)

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FORA DA CAIXA
I m a g e m : R e p r o d u ç ã o / I n s t a g r a m
Allan da Costa cita Djavan, Jimi Hendrix, Kendrick Lamar e Luiz Melodia como inspirações musicais

gum tempo depois, comecei a cantar no coral, em grupos de jovens e em bandas. Apesar de ter sido um período curto, essa fase marcou meu primeiro contato significativo com a música”, relembra. Destacando-se por possuir um elemento singular em seu eu-poético, o artista conta que sua arte choca porque gera identificação com o público “As pessoas sempre falam comigo sobre o quanto se identificaram e se afetaram com o que eu faço e é uma relação de troca muito intensa. Eu fico muito feliz e instigado quando ouço sobre a minha arte por outra ótica”, enfatiza Ele reconhece que as dificuldades não são inexistentes. “As barreiras que estão presentes na minha vida social afetam diretamente como eu faço a minha arte. Alagoas por si só é um estado muito desigual e os espaços tradicionais do circuito alagoano não dão tanta visibilidade a artistas como eu”, confessa Isso, no entanto, não o impede de sonhar com o futuro “Desejo não só viver da minha arte, mas também transformar a vida das pessoas ao meu redor com ela”, completa.

“AS BARREIRAS QUE ESTÃO

PRESENTES NA MINHA VIDA

SOCIAL AFETAM

DIRETAMENTE COMO EU

FAÇO A MINHA ARTE”

ALAN DA COSTA ARTISTA

Trecho da música:

“Doçura e cadência, como Djavan, tenho minha flor-de-lis. Se tem melodia nos versos que faço, me inspiro em Luiz”

(Tipo Kendrick – Allan da Costa)

Apesar de trabalhar profissionalmente com a música há 12 anos, Naná Martins é uma artista que continua em evidência na cena alagoana.

Dispondo de apresentações ao lado de grandes artistas brasileiros no decorrer de sua trajetória, como a banda Ara Ketu e a cantora Ivete Sangalo, ela conta que começou a trilhar seu caminho ainda na adolescência: “Aos 12 anos eu quis aprender a tocar violão e meu pai começou a me ensinar Temos um projeto social e, quando eu tinha uns 14 ou 15 anos, comecei a cantar nas apresentações que a gente fazia junto ao projeto. Foi o meu primeiro contato com o palco de forma mais profissional, sabe?”

Destacando-se no axé e no pagode, Naná declara que o interesse pelos gêneros veio ao final da adolescência. “Aos 17 ou 18 anos fui convidada pelo grupo de maracatu Coletivo Afrocaeté para ser uma das vocalistas do grupo, e aí de fato eu comecei a ingressar de vez no mundo profissional da música. Depois fui abrindo o leque e comecei a cantar em bares No início, eu cantava muito samba. “Depois comecei a entender que o axé poderia ser um caminho que eu poderia seguir, e que tem muitas raízes africanas, então eu já me identificava”

Sobre ser uma mulher preta na música, ela diz que os obstáculos enfrentados já foram motivo de desestímulo, mas atualmente trazem mais força para conquistar seu espaço. “Para uma mulher periférica e negra, tentar alcançar um espaço é muito complicado, porque geralmente as pessoas

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já tem um perfil predefinido e a mulher negra não faz parte desse perfil. É um desafio muito grande entrar nesses espaços. E não é por falta de talento, é porque não querem nos ver nesse meio”, afirma.

Em “Olhos Vendados”, parceria com Jorge Black, Naná traz a força da luta preta por meio de vocais suaves numa pegada que mistura reggae e rap, contrastando com os versos impulsivos e cheios de energia de Jorge Black e suscita um debate sobre os entraves enfrentados pela população negra.

“A MULHER NEGRA NÃO FAZ PARTE DO PERFIL, NÃO É FALTA DE TALENTO, É PORQUE NÃO QUEREM NOS VER NESSE MEIO”

NANÁ MARTINS ARTISTA

Contudo, Naná não se deixa desanimar. “Muitas vezes, essa dificuldade já me desestimulou, mas hoje me dá muito mais gás para mostrar que eu posso, que eu vou conseguir e que isso não vai me parar”, completa. Atualmente, a artista atua em seu mais recente projeto musical, a banda “Pagode da Naná”, na qual se reúne com outras personalidades artísticas locais para fazer aquele bom e velho pagodinho

Trecho da música:

“Seus olhos verdes exterminam tudo, tudo, um por um, e você, cego, não vê Eu sou negro e simplesmente sou igual a você”

(Olhos Vendados – Naná Martins e Jorge Black)

Destaque no axé e no pagode, Naná Martins já se apresentou com nomes como Ivete Sangalo e Ara Ketu

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F o t o : R e p r o d u ç ã o / I n s t a g r a m

ainda na infância. “Meus pais sempre foram evangélicos e minha mãe era solista no departamento de mulheres da nossa igreja, então eu sempre achei que faria algo relacio-

nado ao canto gospel. Comecei fazendo solos no departamento de crianças e, mais tarde, fiz parte da banda da igreja no departamento de jovens”, conta

O alter-ego Huná nasce durante a pandemia da covid-19, em 2020, juntamente com seu EP de estreia homônimo. Agora explorando a fusão de gêneros rap pop, a artista se destaca como uma compositora confessional

Desde relacionamentos – “os bons e os ruins”, ela diz – até seu lado mais ousado, ela deriva grande parte de sua inspiração das próprias vivências “Quando não estou escrevendo sobre minha vida, estou projetando um futuro melhor”, conta. Seu último lançamento, o single “Louvre”, é uma parceria com o também artista local Carvalho e expressa seu lado mais romântico e sensual.

“Tenho muito orgulho de tudo!”, ela afirma com entusiasmo quando fala sobre sua trajetória até o momento “Desde o processo de produção de uma música até quando ela chega ao público e eu recebo algum retorno, existe muita satisfação em cada etapa desse ciclo. Além disso, poder ser a Huná e, através dela, ter visibilidade e poder ocupar outros espaços é muito gratificante”, continua

“TENHO MUITO ORGULHO DE TODA A MINHA TRAJETÓRIA!” HUNÁ ARTISTA
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Huná se destaca como uma compositora confessional
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D A B I I GF o t o : P e d r o S a n t

Para o futuro, seu maior objetivo é conquistar uma vida melhor para sua família e equipe. “Quero conseguir alcançar um público, alcançar um patamar Não falo necessariamente sobre ser a mais rica do país, mas sobre poder proporcionar estabilidade financeira e emocional para eles e para mim”, diz.

Seu próximo lançamento, um EP intitulado “Ariana Raiz”, está previsto para este mês “Pela primeira vez, em colaboração com uma equipe que traz minhas visões à vida, estou podendo tomar a frente da estética visual de um projeto”, revela.

Trecho da música:

“Gosto tanto disso, lembro do início: fogo, fumaça e colchão”

(Louvre – Huná e Carvalho)

DABIIG

Andresson de Oliveira, mais conhecido como DABIIG, chama atenção pelo timbre grave de sua voz, que se projeta como um de seus traços mais singulares. O artista de 23 anos, que também atua como diretor de arte e motion designer, teve seu primeiro contato com a música na infância. O rap, no entanto, só entra em sua vida no início da adolescência, em um festival de talentos no colégio, em 2013. “Foi aí que compus meu primeiro rap A partir disso, eu vi que tinha talento e que poderia fazer aquilo acontecer”, conta

Em 2014, quando passou a participar de batalhas de rima, DABIIG conheceu e se juntou ao grupo de rap A Marca, onde ele

DABIIG chama atenção pelo timbre grave de sua voz, que se projeta como um de seus traços mais singulares

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F o t o : P e d r o S a n t

colaborou com outros quatro artistas locais. Após três anos, cada integrante decidiu seguir seu próprio caminho e o artista optou por continuar sua carreira solo No entanto, por um período, ele deixou de focar na música e só retornou ao cenário entre 2019 e 2020. “Com a chegada da pandemia, eu consegui montar um estúdio em casa para me produzir Então eu passei a me estudar, passei a estudar mixagem, para tentar desenvolver alguma estética para mim”, relembra. É só em 2021 que o artista lança seu primeiro single, “Bambolê”. Quando se trata das suas letras, o rapper valoriza a identificação do público. Ele destaca: “Eu tento ao máximo reduzir a distância com o público, porque, apesar de fazer música, quero que as pessoas entendam que eu sou como elas. Quero fornecer uma trilha sonora para todas as situações da vida, seja para levantar o ânimo, expressar gratidão ou animar uma festa.”

Seu trabalho mais recente, o EP “Tendência”, é caracterizado por uma estética que engloba elementos futuristas que incorporam os pilares da ambição, da motivação, da irmandade Composto por 6 faixas, o trabalho é motivo de orgulho para o cantor. Na canção que empresta seu título ao EP, DABIIG expressa a crença da sua prosperidade. Através dos versos, ele compartilha a convicção de que, assim como esses ícones, ele também está destinado a alcançar notoriedade em seu campo de atuação

Trecho da música: “Canto tudo que preciso, Deus ouve a prece. Tendência, tipo Michael Jordan, Jackson, Phelps” (Tendência – DABIIG)

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Uma conversa sobre como o sequestro, que abalou o Brasil nos anos 2000, reflete o racismo no país até hoje

O CASO DO ÔNIBUS O CASO DO ÔNIBUS 1174 74

Ramon Dantas

12 de junho de 2023 - 14:00 - Gávea, Rio de Janeiro/RJ

Numa pequena padaria, uma televisão ligada transmite o Jornal Hoje. O apresentador do telejornal

anuncia no meio do programa: “No arquivo de hoje vamos relembrar uma das tragédias que mais abalou os moradores do Rio de Janeiro na época, o sequestro do ônibus 174”

Um homem de meia-idade sentado em uma mesa logo comenta:

– Que horror! Ainda bem que esse vagabundo morreu no final. Vai que ele saísse da cadeia e cometesse outro crime desses

[Deixe-me explicar: O sequestro do ônibus 174 aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000 - sim, no dia dos namorados - por volta das 14h.

O crime começou quando um homem chamado Sandro Barbosa do Nascimento entrou armado no ‘ônibus 174’, que ia da Central do Brasil (a famosa estação no centro da cidade que conecta ônibus, metrô e trem) até o bairro da Gávea. O coletivo havia acabado de sair da PUC-Rio e estava na Rua Jardim Botânico, na zona sul da cidade, quando deu início ao sequestro, ameaçando ferir os civis dentro do veículo e até matá-los. Durante a tarde daquele dia, muitas coisas aconteceriam, mas isso você vai descobrir mais para frente.]

O programa segue e mostra uma gravação do Jornal Nacional da data do crime: “Desespero e morte na zona sul do Rio de Janeiro. Um homem armado sequestrou um ônibus no bairro do Jardim Botânico”.

A programação continua: “O drama dos passa-

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geiros deste ônibus começou pouco antes das duas horas da tarde. Um assaltante armado com um revólver ameaça quem chega por perto Ele não se entrega, apesar dos apelos da polícia, que cercou o ônibus. Agarrado com uma passageira, o assaltante aponta a arma para todos os lados”, narra o repórter Eduardo Tchao, enquanto a TV mostra imagens do momento do crime

– Isso era um drogado, com certezacomenta mais uma vez o homem sentado na padaria. Esses ‘psico’ fazem merda até hoje. – Bem, ele realmente estava drogado, mas você sabe o que o levou a chegar nessa situação? - responde uma senhora sentada na mesa ao lado, que estava virada com os olhos fixos na televisão.

[Ao longo da história, essa mulher vai demonstrar saber de muita coisa, e aí, meu caro leitor, você se pergunta: como ela sabe tanto?

Bem, essa senhora se chama Yvonne Bezerra de Mello, uma ativista pelos direitos humanos que trabalhou cuidando de crianças durante grande parte da sua vida.

Ela cuidava dos meninos de rua que dormiam em frente à catedral da Candelária, que fica também no centro do Rio e foi palco da tragédia conhecida como ‘Chacina da Candelária’, onde seis crianças e dois jovens de um grupo de mais de 40 pessoas foram mortos à queima-roupa na noite de 23 de julho de 1993.

“E o que isso tem a ver com o nosso sequestro do ônibus 174?”, você deve estar se perguntando Então, Sandro, narrado nesta

crônica, foi um dos poucos sobreviventes da Chacina da Candelária. E isso explica porque Yvonne conhece tanto sobre o desenrolar desse caso ]

“O assaltante, agora, ‘tá’ tentando sair com o ônibus com a vítima no colo dele” , diz o repórter segurando seu microfone e posicionado bem em frente à câmera Logo em seguida, o cinegrafista foca na cena narrada pelo jornalista

– Não importa o que tenha acontecido na vida desse vagabundo, no fim, ele escolheu fazer isso! - fala o homem olhando para a senhora ao lado, como se estivesse respondendo a ela.

– O que te leva a pensar sobre isso?devolveu a mulher idosa.

– Sei lá! Só sei que todo mundo sabe o que é certo e o que é errado – Mesmo aquelas pessoas que nunca foram ensinadas?

– Isso é básico, ninguém precisa ensinar!

“O criminoso ainda obriga um passageiro a ajudá-lo, mas os dois não conseguem fazer o ônibus andar Nervoso, ele segura a mulher e atira em direção aos policiais”, narra a reportagem gravada que passa na televisão.

Olha isso, e você ainda quer defender esse cara? Para mim, ele mereceu o que teve. E digo mais, deveria ter morrido antes! - voltou a comentar o homem, um pouco nervoso, mas sem alterar a voz

[Aqui, vemos um caso típico de uma opinião derivada do senso comum, que repercute apenas aquilo que se vê na sua bolha social.]

Bom, não foi por falta de tentativa, eu te

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garanto – declarou a senhora, em um tom triste – Ele lutou para sobreviver desde menino.

– Agora entendi – respondeu o sujeito em um tom sarcástico – Você deve ser alguma parente dele, e tá querendo ‘pintar’ esse vagabundo de vítima agora.

– Não, eu não sou – respondeu a mulher com calma e delicadeza – Acho que você não viu, mas fizeram vários documentários sobre esse caso e o criminoso Uma reportagem da época contou que esse moço foi um dos poucos sobreviventes da “Chacina da Candelária”, que o senhor já deve ter ouvido falar.

– Claro – respondeu o homem, que recuou um pouco pensativo – Aquilo ali foi uma tragédia. Coitadas daquelas criancinhas, que Deus as tenha – disse ele em um tom mais brando, fazendo um sinal da cruz logo em seguida

“Ele continua ameaçando os reféns [falas do criminoso inaudíveis] Uma das vítimas é forçada a escrever com batom, no vidro do ônibus, que o assaltante está possuído pelo diabo”

– Tá repreendido! – diz o homem espantado.

“Só depois de uma hora o primeiro refém é libertado, mas a negociação não avança. O bandido quer duas granadas e duas pistolas A polícia não cede”

– Viu como ele queria matar todo mundo! Era um bandido mesmo!

– Claro, foi o único meio que ele conheceu. Cercado de violência, seja do crime organizado, seja da polícia e até daqueles que ele chamava de ‘amigos’, vo-

cê queria o quê? – respondeu a idosa, com um tom mais firme pela primeira vez – Não tiro a culpa dele, mas era apenas mais um produto de sua realidade

– Isso é história! Tenho muitos ‘irmãos de quebrada’ que cresceram na favela e nem por isso são bandidos – retrucou o rapaz.

– Mas e você? Cresceu aonde?

– No Leblon – falou o homem sem entender a pergunta.

– Ah, tá Tá explicado – respondeu a mulher, logo voltando os olhos para a televisão novamente.

“Os tiros aumentaram ainda mais o pânico entre os reféns que estavam dentro do ônibus” comentou William Bonner na gravação do Jornal Nacional na época, quando já era apresentador do telejornal A reportagem continua com cenas de uma moça gritando na janela do ônibus que o sequestrador teria matado alguém dentro do veículo, enquanto o mesmo aponta uma arma para a cabeça da vítima

– Meu Deus, que horror – comenta a senhora, com lágrimas nos olhos – Por que você chegou nisso, Sandro?

[Yvonne relatou que ainda procurou por Sandro, mas não conseguiu encontrá-lo Ela conta que ouvir ele gritar seu nome durante o sequestro foi muito marcante em sua vida.]

“Seis e meia da noite, a negociação não deu resultado. O bandido foi mais uma vez para a frente do ônibus, junto com a refém Ele deu um novo prazo para a polícia e quer que as exigências sejam aceitas até às sete e meia da noite, se não ameaça matar todos os reféns” relatou, na repor-

37 CRÔNICA FORA DA CAIXA

tagem gravada, o repórter Roberto Kovalick, que estava perto do ônibus.

“De repente o bandido abriu a porta e desceu usando a refém de escudo. Nesse momento, a polícia agiu Um PM se aproximou pelo lado e deu dois tiros no bandido, mas errou e o disparo acertou o queixo da refém” continuou a reportagem.

“A polícia informou que o bandido que sequestrou o ônibus morreu a caminho do hospital”, encerrou a âncora do jornal na época

[Além do Sandro, a refém, conhecida como Geiza Gonçalves, morreu durante a ação da polícia.]

E acabou assim, foi? Cadê o resto? – disse o homem de meia-idade, se levantando de sua cadeira. Nesse instante, ele olha para o lado e percebe a senhora chorando enquanto encara a televisão: – O que foi, minha senhora? – disse ele preocupado enquanto acenava para a atendente do estabelecimento trazer uma água.

– Ele era só uma criança perdida, que não tinha ninguém que o acolhesse –respondeu ela entre soluços de choro –Preto, de periferia, morando na rua, não tinha nada que a sociedade quisesse.

[Se isso não te convenceu, segundo estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 70% da população carcerária no Brasil é formada por pessoas pretas. E grande parte delas ainda aguarda seu julgamento. Sim, essa é a visão que o sistema penal do Brasil tem sobre pessoas pretas.]

A senhora se acalmou após tomar um copo d’água, falou olhando para o rapaz sentado em sua mesa:

– Meu senhor, você lembra de outro sequestro de ônibus que aconteceu em 2014, na Avenida Brasil?

[Houve outro sequestro de ônibus na Avenida Brasil, em 2014, onde um homem identificado como Paulo Roberto, de 33 anos, entrou num veículo da linha 723 (Mariópolis-Cascadura), por volta das 17h, na altura de Guadalupe, zona norte do Rio, rendendo os passageiros. Duas pessoas - o motorista e uma passageira - foram feitas reféns Ninguém saiu ferido e o sequestrador acabou se entregando.]

– Também.

– Então, você sabe o que todos esses crimes têm em comum? Todos eles foram cometidos por jovens, negros periféricos –disse a senhora com um olhar entristecido –Queria que você pensasse bem se elas são realmente ‘monstros’ ou criações de um Brasil desigual e violento.

Dona Yvonne, continuou conversando com o rapaz por um tempo, até que a pequena padaria fechasse Após esse momento, o homem se despediu, entrou em seu carro e foi embora. Yvonne se dirigiu até o ponto e pegou um ônibus sentido Central do Brasil, descendo, posteriormente, na primeira parada do bairro Jardim Botânico

[E termina com D. Yvonne percorrendo o caminho pelo qual Sandro passou e lembrando em mais um 12 de junho.]

O fim para o começo da reflexão...

38 CRÔNICA FORA DA CAIXA

NARRATIVAS AFRO-BRASILEIRAS:

DO EMBRANQUECIMENTO AO EMPODERAMENTO

Como a literatura explora a representatividade negra nas obras “Dom Casmurro” e “Os meninos da parte alta”

Joaquim Maria Machado de Assis estava em seu primeiro ano de vida quando o Segundo Império teve início em 1840.

Na época, Dom Pedro II, com apenas 14 anos, lutava para tomar o poder do reino, em meio a desavenças políticas e fortes pressões. O Rio de Janeiro era capital federal e enfrentava sérios problemas sociais e econômicos, com um centro marcado por uma cacofonia de sons, vindos de pessoas que perambulavam rumo aos co-

mércios próximos ao Largo do Paço, trajanjando sobretudos e vestidos longos, em cima do suor seco e pegajoso, como ditava a moda europeia.

A cidade era considerada modelo de modernidade e progresso, apesar de não viver o desenvolvimento industrial e ser um país essencialmente agrário, uma vez que a reurbanização da grande capital só teria início nas últimas décadas do século

XIX Mas embrenhando por suas ruas e vielas, o odor acre e rançoso dos detritos era palpável e poluía o ar em uma mistura de co-

FORA DA CAIXA 39 LITERATURA

res vívidas e terrosas. Aqueles que visitavam o Rio de Janeiro conheciam duas cidades diferentes: os ricos moravam em palacetes majestosos, enquanto o resto da população habitava os cortiços Esses espaços se amontoavam e criavam uma visão caótica e perturbadora da grande capital, com seus quartos tacanhos e suas roupas estendidas por onde houvesse espaço. Esta era a única solução barata e boa para muitas pessoas, que se viam desesperadas para pôr um teto sobre suas cabeças

Essa sociedade não é refletida em nenhuma das obras do grande escritor Machado de Assis. Filho de um pintor, descrito como mulato, e uma lavadeira portuguesa, Machado teve uma infância árdua. Ficou órfão ainda criança e frequentou a escola pública, mas nunca teve a oportunidade de fazer uma graduação. Trabalhou como aprendiz de tipógrafo e revisor

Além disso, publicou resenhas no Diário do Rio de Janeiro e contos na revista A Marmota (duas publicações já extintas) e também foi funcionário público na Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas Tudo isso alcançado por esforço e mérito próprios.

Para Gabriela Freitas, mestranda em Estudos de Literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), “um dos motivos pelos quais Machado de Assis tenha decidido se focar na elite carioca seria o fato de que seu público era justamente a elite, já que eram os únicos que sabiam ler nesse período e, portanto, os únicos que tinham dinheiro para comprar seus romances, e por

isso se interessariam em ler sobre uma realidade próxima e com a qual pudessem se identificar”.

A primeira obra, intitulada “Ressurreição” e publicada em 1872, difere do que é visto em “Dom Casmurro” Ligada ao romantismo, possui um romance moderado, sem excessos sentimentais, com um final feliz igual aos outros encontrados nos folhetins

Foi escrito antes da abolição da escravidão, ocorrida em 1888 com a Lei Áurea. Seus romances posteriores não explicitaram as dificuldades enfrentadas por grande parte da sociedade carioca. Estima-se que cerca de 700 mil escravos foram contemplados com uma liberdade que custou caro, visto que homens e mulheres foram jogados à própria sorte, sem dignidade e emprego.

Os heróis de Machado carregam fardos mais leves que ele mesmo teve. Em “Dom Casmurro”, sua obra mais famosa, Bentinho é um homem da elite com propriedade e criado em condições financeiras abastadas. As obras do autor eram marcadas por ironia, críticas disfarçadas de sarcasmo, que passavam despercebidas por muitos leitores, que não percebiam o posicionamento do autor frente à sociedade da época.

Gabriela explica ainda que “buscar uma militância explícita na narrativa de Machado de Assis seria anacrônico, uma vez que Machado escreveu em uma época em que pessoas negras eram encorajadas a se casarem com os chamados ‘mulatos’, e os ‘mulatos’, por sua vez, com brancos, com o objetivo de ‘embranquecer’ a raça. Não é surpresa, então, um autor considerado mu-

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“A HISTÓRIA DE MACHADO DE ASSIS NUNCA FOI APAGADA DA HISTÓRIA, MAS A SUA COR SIM”

lato não se sentir incentivado a escrever sobre personagens marginalizados socialmente, ou, pelo menos, de uma forma direta. Por isso, uma forma de falar sobre o assunto era através da ironia, que nem todos compreendiam”, afirma.

A história de Machado nunca foi apagada da história, mas a sua cor sim. O embranquecimento em sua narrativa, com personagens brancos e ricos, refletiu em sua própria pele

Em um dos momentos de maior fragilidade humana, ele foi descaracterizado de sua própria característica física, onde foi descrito como “branco” O obituário de Machado reflete a sociedade racista e preconceituosa da época, que não aceitava que o maior escritor da literatura brasileira fosse de origem africana.

Gabriela Freitas enfatiza ainda que “as obras de Assis são repletas de críticas à elite brasileira e a práticas sociais que aconteciam no Brasil daquela época, sobre as quais não se falava abertamente e que não eram explícitas na literatura, como o parasitismo e a troca de favores

Como raça e classe estão estreitamente ligados, as pessoas que compunham a elite eram brancas, e por isso elas se tornaram protagonistas na literatura machadiana O foco nos personagens brancos mostra a lacuna encontrada nesses espaços de privilégio: não vemos personagens negros nesses cenários, e sua ausência pode ser vista como uma crítica em si Assis demonstra como a ascensão social era praticamente impossível para uma pes-

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F o t o : D i v u l g a ç ã o / I n s l e y P a c h e c o / C o l e ç ã o R u y S o u z a e S i l v a
Machado de Assis aos 25 anos de idade, época em que trabalhava como jornalista para o Diário do Rio de Janeiro

soa não-branca, registrando, através do Realismo, esse período” Em contrapartida, a literatura nacional contemporânea volta a florescer e consegue dar voz e destaque àqueles que muitas vezes foram silenciados e relegados às margens da população. Em uma sociedade que se diz plural e inclusiva, ainda é possível enxergar o racismo estrutural e as dificuldades enfrentadas por muitos indivíduos

Por isso, a literatura se torna ainda mais necessária para expor as mazelas da população, ao devolver a dignidade e evidenciar a luta diária de todos aqueles que um dia foram apagados da história.

“Hoje em dia, o mercado editorial está ciente de como autores negros ainda são a minoria e estão tentando mudar isso, assim como os leitores estão mais cientes desse fato e fazem um esforço ativo de consumir mais diversidade. Por isso o protagonismo negro é mais presente na literatura contemporânea, enquanto Machado de Assis talvez se visse forçado a falar sobre raça e classe de uma maneira mais sutil e implícita, para não ser censurado ou apagado Além disso, os personagens negros

A LITERATURA SE

TORNA AINDA MAIS NECESSÁRIA PARA... DEVOLVER A DIGNIDADE E EVIDENCIAR A LUTA DIÁRIA DE TODOS

AQUELES QUE FORAM

APAGADOS DA HISTÓRIA

que aparecem na sua obra são escravizados, pois essa era a realidade na época, e hoje os autores tentam lutar contra estereótipos de raça”, explica Gabriela.

Quando somos criança, acreditamos que nossa única preocupação é se vamos ou não sair para brincarmos. Ou até mesmo, se poderemos permanecer por um ‘tantinho’ de tempo a mais

O sol que é capaz de derreter as nuvens ou o vento abafado que joga a poeira para cima não é páreo para pausar mais uma aventura. Tudo se torna mágico através dos olhos de um ser pequeno e puro.

O balançar das folhas das árvores se torna uma canção, que entra no ouvido como uma melodia, até mesmo as conversas sussurradas e perdidas de adultos apressados se transformam em instantes etéreos e marcantes. Aquilo que logo passou, mas que não será esquecido, guardando um espaço na memória.

Os momentos mais simples são os mais significativos. Para sorrir de boca aberta e sem amarras basta apenas estarmos na presença daqueles que amamos. A infância é recordada com alegria e nostalgia, mas há a dúvida: outras crianças terão essa oportunidade, de ser tão feliz quanto eu fui?

É através dessas memórias que Madson Costa constrói uma de suas narrativas.

Em “Os meninos da parte alta”, livro publicado em 2021, o autor busca construir uma análise social através de seus poemas. Madson nasceu em Arapiraca, agreste alago-

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ano, mas foi criado no município de sua mãe em Tanque D’Arca.

Mudou-se para Maceió, onde vive desde a adolescência. Em sua antologia, Madson traz a realidade brasileira do passado e a atual, como no poema “Terra de Sóis”, onde a chegada dos portugueses em 1500 provoca um choque cultural entre europeus e indígenas.

Em meu poema ‘Terra de Sóis’, eu demonstro que o Brasil sempre será dos povos originários, os quais têm um estilo de vida que se baseia na conexão e harmonia com a natureza.

Diferente do modo de vida europeu trazido pelos portugueses, que se deu pela destruição do cenário geográfico, pela exploração e por um modo de vida que não

“Não consigo escrever sem ler, depois pensar e sentar para escrever", diz Madson Costa sobre processo de criativa

“Enquanto eu ainda estava no Ensino Médio, a visão de Brasil que nos passavam era a de que a chegada dos colonizadores foi algo benéfico, algo bom para nossa história. Com a retomada dessa poesia histórica e social, eu tento subverter a narrativa hegemônica, pela qual a Europa é o centro do mundo e a benfeitora que trouxe o progresso ao Brasil.

é harmônico com a natureza”, comentou ele. Já em “Os meninos da parte alta”, Madson consegue colocar o leitor dentro de suas memórias, através da descrição do ambiente de sua juventude, além de dar voz à comunidade local. Em seus textos, é possível enxergar a representatividade acerca das condições de classe, raça e regionalidade.

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Já em “Os meninos da parte alta”, Madson consegue colocar o leitor dentro de suas memórias, através da descrição do ambiente de sua juventude, trazendo um pertencimento forte e marcante, além de dar voz à comunidade local. Em seus textos, é possível enxergar a representatividade acerca das condições de classe, raça e regionalidade.

Para o autor, “em termos de representatividade, existe uma pequena abertura para algumas figuras emergentes da negritude e dos povos originários. O problema é que essa representatividade, na maioria das vezes, se resume a encaixar autores negros e outros em categorias, como exemplo “literatura negra”, sem conceder a nós espaços para falar sobre outras coisas e demonstrar que não nos resumimos a cor, a raça. É uma representatividade que vem da moda, da tendência, de ser politicamente correto, mas se perpassa por uma mudança de pensamento que visa mudar as estruturas de poder na literatura e conceder às vozes negras um espaço para demonstrar que somos muito mais do que a história nos moldou”.

Para ele, a representatividade negra na literatura abre um novo leque de possibilidades para as pessoas que não conseguem se ver em determinados espaços, que são predominantemente ocupados pelos descendentes dos colonizadores.

“Em uma sociedade na qual a história da literatura se confunde com a história das letras brancas, ser uma referência, uma representação dos ditos marginalizados é um ato de resistência e subversão. Desde

quando comecei a me interessar por literatura, não conseguia me ver naqueles espaços e ainda hoje sinto dificuldade de me ver como uma figura literária negra de Alagoas, me sinto ocupando um espaço inviável e indisponível, mas desse sentimento surge a vontade de mostrar para os “meus” que também é possível um caminho além das vielas”, confessa.

Monique Santos, de 28 anos, descobriu seu amor pela literatura aos 13 com os livros de Thalita Rebouças, por se identificar com os dramas adolescentes dos protagonistas. “Na época, não buscava histórias com representatividade negra, nem temáticas raciais, pois ainda não entendia a importância desses debates, hoje vejo como são importantes para nossa formação e busco ler cada vez mais”, comenta. Para ela, a literatura é fundamental para si, uma vez que ela consegue moldar o caráter dos indivíduos, saindo da esfera de um mero entretenimento

“A representatividade negra dentro da literatura se deve ao fato de que, mesmo hoje com todo o avanço que já temos, é muito comum que as pessoas negras tenham ainda dificuldade de se aceitar, e isso está ligado principalmente a um padrão de beleza que foi imposto pela sociedade”, ratifica.

“As pessoas precisam se sentir representadas, precisam saber que suas dores são também as dores de outras pessoas e que elas não estão sozinhas, para se sentirem pertencentes e acolhidas dentro da sociedade, e acima de tudo para aprenderem a se aceitar e se amar”, conclui Monique.

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F o t o : R e p r o d u ç ã o / I n s t a g r a m
Madson Costa recebe leitores em sessão de autógrafos durante a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas

POR TRÁS DAS LENTES: UMA VISÃO AFROCENTRADA DA FOTOGRAFIA

Com olhar sensível à questão racial, Vitória Romeiro busca contar histórias pelas fotografias

Vitória, além de sempre trazer elementos do cotidiano alagoano, brinca com o contraste entre a luz e o elemento principal da foto

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F o t o : V i t ó r i a R o m e i r o

Aos 25 anos e buscando seu lugar no mundo, Vitória Romeiro fotografa aquilo que cativa seu olhar, buscando contar histórias do seu cotidiano em seu trabalho Graduanda em história na Univer-

sidade Federal de Alagoas, a jovem não se limita fazer ao que seu curso propõe.

“Antes eu trabalhava com música, comecei produzindo conteúdo de covers nas redes sociais e o pessoal gostou muito, tive um feedback legal e começaram a perguntar por que também não juntar a parte musical com a parte visual?”, ela conta.

Alagoana nascida em Maceió, ao ser questionada sobre o primeiro contato com a fotografia, Romeiro menciona seu pai “Quando eu era menor, meu pai comprou uma câmera analógica E aí eu tinha como hobby sair com ele e tirar foto das coisas, do movimento. Era uma coisinha que a gente tinha só nossa”, ela relembra. Em 2021, durante a pandemia, Vitória compra sua primeira câmera analógica e diz ter voltado as suas raízes: “Comecei a fazer vídeos experimentais, gravações de tudo que me cercava, dos meus amigos, dos locais que eu frequentava e ressurgiu a minha paixão de captar momentos, só que eu nunca pensei nisso como uma coisa profissional”.

Em uma sociedade que tenta desmotivar mulheres negras e nordestinas, Romeiro enfrentou os obstáculos que colocavam a sua frente, buscando transformar o que era apenas um hobby em algo profissional: “Quando eu comecei, não parei mais. Eu vi que eu realmente gostaria de fazer isso e foi uma longa jornada para me afirmar como profissional porque eu fazia muita coisa, mas não me considerava como uma profissional”.

Com o apoio de familiares e amigos, Vitória percebeu que tinha potencial para a área:

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FOTOGRAFIA

“Eu fui finalista do concurso do IMA, de fotografia ambiental. Foi quando eu vi que eu tô fazendo algo que está sendo notado. Trabalhei minha autoestima e comecei a me dedicar cada vez mais profissionalmente”.

O Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) tem como uma de suas iniciativas o concurso de fotografia ambiental com o objetivo de evidenciar a biodiversidade existente em Alagoas por meio de fotografias, além de incentivar reflexões sobre a relação entre as pessoas e o ambiente em que vivem Além do seu pai, que apresentou a área, Vitória diz ter como inspiração a falecida Vivian Maier

Vivian é uma fotógrafa norte-americana que se especializou no estilo de fotografia de rua, no qual podemos ver a influência que isso traz para as produções de Vitória Maier trabalhou por 40 anos como babá enquanto

“GOSTO

DE CAPTAR COISAS COMUNS COM OUTRO OLHAR”

VITÓRIA ROMEIRO FOTÓGRAFA

tirava fotos em seu tempo livre. Ao longo da vida, tirou mais de 150 mil fotos, principalmente de moradores e da arquitetura das cidades de Chicago, Nova Iorque e Los Angeles, nos Estados Unidos além de outras cidades que visitou. “A fotografia é uma forma de expressão e a minha perspectiva é diferente. Eu gosto de captar coisas comuns, só que com outro olhar e isso que eu busco na fotografia e aí quando eu vi outra profissional mulher também fazendo isso, ela foi realmente assim uma das minhas maiores inspirações”, conta Vitória Além de Maier, ela traz como inspiração as pessoas de seu cotidiano.

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FOTOGRAFIA F o t o : V i t ó r i a R o m e i r o
Porta, Retrato - Produção fotográfica de setembro de 2023
FORA DA CAIXA 50 FOTOGRAFIA F o t o : V i t ó r i a R o m e i r o
Em suas composições, Vitória procura sempre trabalhar os movimentos do cotidiano Brasileiros, setembro de 2023

“Uma das minhas maiores inspirações é minha melhor amiga Paula Berle, porque ela é outra mulher preta no meio do audiovisual e a gente se completa. Ela me ajuda em muitas coisas, eu também acho que ajudo ela, a gente conversa sobre vários assuntos e a visão que ela tem de mundo é muito parecida com a minha, então é uma inspiração para mim também, porque ela é outra mulher produzindo conteúdo”

Segundo a antropóloga, historiadora e curadora Yara Schreiber Dines, a participação das mulheres na fotografia, seja no Brasil ou no exterior, ocorre desde os primórdios dessa técnica. Porém, os primeiros estúdios eram empresas familiares nas quais o crédito estava sempre associado ao ateliê e não ao artista. “O espaço social da mulher no estúdio fotográfico era o da invisibilidade, como uma sombra do homem que dirigia seu negócio, prevalecendo essa condição até mesmo após a morte do marido, quando ela passava a comandar o estúdio com o estigma da denominação viúva – como a Viúva Pastore, esposa de Vincenzo Pastore”, a antropóloga explica

Vitória também mostra a realidade mais complicada ao se profissionalizar na área de fotografia. Ela relata que: “Oportunidades, falando realmente aqui no estado é um pouquinho complicado, quando aparece normalmente sempre são coisas que envolvem outras especializações, outras coisas e nunca só aquela área específica que você quer e quando aparece da área específica que você quer, normalmente, é complicado para pessoas negras estarem ali Nessa área querendo ou não, acho que eu tenho conseguido me sobressair por causa

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FOTOGRAFIA
F o t o : A r q u i v o P e s s o a l / V i t ó r i a R o m e i r o
Vitória Romeiro registra pelas lentes o que cativa o olhar

das ligações, dos meios, tipo uma pessoa que conhece outra e vai formando essa teia, porque eu acho que ser uma profissional negra nesse meio e não ter nenhuma conexão é complicado”. Segundo reflete, a pauta racial tem peso dentro da fotografia, porque não deixa de ser um ramo muito elitista. “Obviamente isso vem sendo desmistificado com o passar dos anos, mas antigamente era bem mais porque poucas pessoas tinham acesso à câmaras analógicas da época. Tinha que ter um padrão financeiro alto”, afirma.

“Hoje em dia o meio profissional ainda é um pouco elitista por conta de dois fatores Primeiro a profissionalização, investir em cursos, equipamentos e segundo, as pontes de comunicação Os profissionais têm que estar inseridos em certas esferas para poder fazer pontes Quando uma pessoa negra está

nesse meio, significa que ela está sendo vista. E como eu sou uma mulher preta, eu estou sendo vista”, Vitória conclui

Como uma mulher, negra, LGBTQIAPN+ e nordestina, Vitória é muito mais que fotógrafa e se emociona ao lembrar de tudo que já conquistou: “Não tem como separar o meu eu pessoal da minha figura de trabalho, porque todo lugar que eu entro, todo trabalho que eu produzo eu vou estar levantando uma bandeira conscientemente ou inconscientemente por ser uma mulher preta.E às vezes isso vai me limitar por ser apenas isso para outras pessoas, mas dependendo do meio que eu estiver isso vai ser uma grande arma, porque eu vou conseguir estar representando várias outras pessoas, como eu também procuro representação no meio onde estou”, destaca “Acho muito importante as pessoas consu-

FORA DA CAIXA 52 FOTOGRAFIA
Conversas - Produção fotográfica de janeiro de 2022
I m a g e m : V i t ó r i a R o m e i r o

o

mirem um trabalho majoritariamente feito por pessoas pretas. Os artistas pretos passam por todas as esferas que qualquer outro profissional passa de trabalho, mas tem camadas a mais e a maior delas é o préjulgamento do que você está construindo e na finalização dessa produção desse trabalho o público consumindo dá uma espécie de notoriedade, de exaltação que para o artista significa muito”, revela.

“OS

ARTISTAS PRETOS PASSAM POR CAMADAS A MAIS NO MERCADO DE TRABALHO, SENDO A MAIOR DELAS O PRÉ JULGAMENTO”

VITÓRIA ROMEIRO FOTÓGRAFA

A presença do dia a dia na fotografia: de uma simples conversa na porta de casa até apresentações artísticas

FORA DA CAIXA 53 FOTOGRAFIA

Ao ser a portadora da câmera, Vitória não esconde que sempre vai “militar” por suascausas.

“A primeira coisa que me vem é isso, eu sou essa mulher preta produzindo isso, seja uma imagem de uma árvore a um ensaio com

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F o t o : V i t ó r i a R o m e i r o
Vitória captura registros da praia, no Marco dos Corais, localizado na Ponta Verde, em Maceió O Pescador - Produção fotográfica de fevereiro de 2022

EDIÇÃO 7 - ANO 1 - NOV/2023

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