Ed. 14 | Maneiras de Amar | fev. 2025

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EDIÇÃO 14 - ANO 3 - FEV/25

O AMOR ATRAVÉS DA HISTÓRIA

O AMOR ATRAVÉS DA HISTÓRIA

A TRAJETÓRIA DO SENTIMENTO A TRAJETÓRIA DO SENTIMENTO NA EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE NA EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE

UM RELATO DO AMOR UM RELATO DO AMOR POR UM SER MASCULINO POR UM SER MASCULINO IDENTIDADE

OS HOMENS TAMBÉM AMAM OS HOMENS TAMBÉM AMAM

PELAS VITRINES DO AMOR E SEXO

PELAS VITRINES DO AMOR E SEXO

CONEXÕES E DISTANCIAMENTOS CONEXÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE PRAZER E SENTIMENTO ENTRE PRAZER E SENTIMENTO AUTOCONHECIMENTO

TEMPORALIDADE RELACIONAMENTOS

ANEIRAS MANEIRAS M AR AR A ADE DE M M

ÍNDICE

DE

AMOR E SEXO: PELAS

VITRINES TE VENDO PASSAR

EXPEDIENTE

É GAIOLA

A Revista Fora da Caixa é um produto editorial da disciplina Laboratório de Mídia Impressa desenvolvido pelos alunos do 5º período do Curso de Jornalismo do turno vespertino da Universidade Federal de Alagoas Esta edição foi produzida no semestre letivo 2024.1, entre julho e dezembro de 2024, integrando um projeto de monitoria e outro de extensão da UFAL

Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte (ICHCA)

Curso de Jornalismo

Endereço

Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro do Martins, Maceió - AL / CEP 57072-900

E-mail: rforadacaixa@gmail com Instagram: @revista foradacaixa

Youtube: youtube.com/@RevistaForadaCaixa Issuu: isso.com/revistaforadacaixa

UM DIÁRIO MASCULINO ENCONTRADO NAS CAIXAS DA SUA CASA

[ ] [ ] 48 66

AMOR ANTES DA LUTA: A COMUNIDADE LGBTQIA+ EM FOCO 16 [ ]83 A IDADE DO AMOR

EDITOR-CHEFE

Prof Marcelo Robalinho (MTE 13583/PE)

MONITORIA

Maria Clara Tenório

Maykon Lopes

Teresa Cristina

EDITORES RESPONSÁVEIS

Editora: Ana Júlia Gomes

Subeditores: Filipe Norberto e Sinval Autran

REPORTAGEM

Ana Júlia Gomes

Filipe Norberto

Giovanna Lôbo

Isadora Noia

João Santos

Júlia Lins

Laís Isabele Almeida

Lívia Protásio

Maria Clara Gomes

Sinval Autran

Tháchyna Lorena Yasmin Henrique

DIAGRAMADORAS

Maria Clara Gomes e Yasmin Henrique

REVISÃO DE TEXTO

Maria Clara Tenório e Teresa Cristina

REVISÃO DA DIAGRAMAÇÃO

Marcelo Robalinho e Maykon Lopes

NÚCLEO DE REDES SOCIAIS

Editora:LíviaProtásio

Subeditoras:GiovanaLobo, IsadoraNoiaeTháchynaLorena

E D I T O R I A L

Uma revista sobre amor?

Éa experiência do amor que lhe aguarda nas próximas páginas, caros leitores. “Maneiras de Amar”, título da edição, busca

enfatizar as múltiplas formas que temos de nos relacionarmos com os outros e conosco. A ideia surgiu em referência ao Valentine’s Day (Dia dos Namorados, em inglês), celebrado internacionalmente no dia 14 de fevereiro. Entre as versões que existem para explicar quem é o personagem que dá nome à data, a mais conhecida diz que o Dia de São Valentim, no português, faz alusão a um padre de Roma que lutou contra a proibição dos casamentos imposta pelo imperador Claudius II Gothicus (214-270) no século III. Para ele, quanto menos deveres afetivos seus soldados tivessem, mais empenhados e focados eles estariam nas funções do exército.

Todos nós temos a necessidade de vínculos fortes com outras pessoas durante a vida, já defendeu John Bowlby na Teoria do Apego. No livro “Maneiras de Amar: Como a ciência do apego adulto pode ajudar você a encontrar - e manter - o amor”, os autores Amir Levine e Rachel Heller buscam simplificar essa teoria, transformando-a num guia. Longe de querermos ser um manual, a Fora da Caixa propõe refletir com vocês sobre os vínculos que construímos através do amor nas suas várias nuances. Na música “Procuro Alguém”, o rapper Djonga explora temas de amor, solidão e a busca por conexão, homenageando sua filha, a Iolanda, que nascera prematura. A canção do Djonga, bastante marcada pela honestidade e profundidade emocional na procura por alguém especial, reflete acerca dos desafios e das complexidades dos relacionamentos “As crianças dão mais melodia para a vida da gente”, declarou o rapper.

Numa viagem pela trajetória do amor na história, as colaboradoras Ana Júlia Gomes e Yasmin Henrique buscaram as respostas a respeito de

como surgiu esse sentimento, as mudanças diante das transformações sociais e como ele perdura nos dias de hoje. Já a colaboradora Lívia Protásio, numa reportagem tratando sobre a não monogamia, contemplou visões favoráveis a essa maneira de se relacionar e também aquelas dos que não gostariam de viver em um relacionamento não monogâmico. Embalada ao som das canções de Rita Lee e Chico Buarque, a crônica jornalística de Maria Clara Gomes e Júlia Lins, por sua vez, discute sobre o direito das mulheres de descobrirem e explorarem seus desejos, ressaltando a importância da liberdade feminina. Platão entra em cena na reportagem de Isadora Noia e Sinval Autran sobre o amor platônico, através de histórias de quem ultrapassou distâncias ao construírem expectativas num tipo idealizado de paixão. Traçando uma relação entre masculinidade e amor, João Paulo Monteiro expôs seu diário, ao encontrá-lo numa caixa esquecida em sua casa, enquanto Tháchyna Lorena e Laís Isabele falam do amor LGBTQIA+, destacando conquistas, desafios, representações midiáticas e questões legais. Filipe Norberto e Giovanna Lôbo finalizam esta edição com uma reportagem importante sobre o amor na terceira idade Eles foram atrás de histórias daqueles que vivem o amor nessa fase, sejam casais que estão juntos há muitos anos, os que engataram num amor já na terceira idade e os idosos que se descobriram através do amor próprio.

Como vê, é a Fora da Caixa sempre com boas e diferentes histórias para contar. Espero que gostem!

Boa leitura!

Equipe da 14ª Edição da Revista

Os textos veiculados nesta revista não representam a opinião da UFAL, nem do curso de Jornalismo

Atrajetóriadosentimentoqueatravessouaevoluçãodahumanidadee continuasereinventandoemrespostaàstransformaçõesdecadaera

Traçando uma linha do tempo do amor, sentimento que move a existência humana e se manifesta de diferentes formas na história, esta reportagem da RevistaForadaCaixaabordarásuaevolução, desdeaépocaemqueaindanão existia como conceito, passando pela construção social do amor romântico e a sua consolidação, até a “ escassez” desse sentimento nas relações contemporâneas. Para construir um panorama sobre o tema, convidamos profissionais da arqueologia, da antropologia, história epsicologia. Além disso, apesquisa de opinião online intitulada “O Amor Para Você”, idealizada e executada pela nossa equipe especialmente para pensar no assunto, permitiu que alguns leitores e seguidores da Fora da Caixa compartilhassemtambémsuasvisõessobreoassunto, ampliandooolhar. Essajornada revela os desafios e as transformações do amor, convidando-nos a reexaminar suas múltiplasfacetasaolongodotempo. Prontoparaestanossaviagem?

ERA AMOR O QUE ELES SENTIAM?

Ao mesmo tempo em que consegue explicar e fornecer um histórico do que antecedeu o tempo presente, o passado também deixa dúvidas sobre certos aspectos da vivência humana Numa volta ao tempo, quanto mais longe se vai, menos se tem evidências para comprovar que o amor, tão conhecido e falado nos dias de hoje, já existia. Conforme explica Mayana de Castro, arqueóloga do Museu de História Natural da Universidade Federal de Alagoas, através dos vestígios deixados, não se pode dizer que era amor o que os povos antigos sentiam. Ela esclarece que a arqueologia é uma ciência social empenhada na busca e na compreensão na maneira como as pessoas se desenvolveram e como se relacionavam entre si Segundo essa área de estudo, não há vestígios que confirmem a existência do amor nos primórdios Porém, existem indícios que geram uma reflexão sobre o tipo de relação que se tinha

Em sociedades nômades, aquelas que não possuíam lugar fixo de habitação e viajavam o tempo todo em busca de recursos naturais, já foram encontrados vestígios ósseos de pernas de indivíduos quebradas e que foram tratadas. “A partir do momento em que essa pessoa machucada gravemente, que não poderia ficar andando e acompanhando o grupo, foi carregada por alguém, cuidada para que seu machucado sarasse, isso já mostra o sentimento de se importar com o outro”, alegou. Mais de uma vez, esqueletos humanos foram encontrados enterrados abraçados, ou até mesmo de mãos dadas, e fizeram com que estudiosos refletissem sobre o cuidado, a consideração, o possível carinho e, talvez, o amor vivido ali. Na maio-

ria das descobertas, tratavam-se de pares formados por ossadas dos sexos feminino e masculino Em terras italianas, na província de Mantova, na região da Lombardia, foram descobertos dois esqueletos de homens de mãos dadas. A comprovação se deu após análise dentária e é estimado que eles tinham mais de 1,5 mil anos As cavernas, que abrigam as famosas “pinturas rupestres”, também apresentam indícios de sentimentos experienciados pelos antigos. O Brasil, em virtude da grande quantidade de afloramentos rochosos, contempla uma variedade de pinturas rupestres. Entre inúmeras cenas de sexo e do que alguns pesquisadores alegam ser representações de parto, um desenho ganhou notoriedade. Conhecido como “O Beijo”, trata-se de uma pintura de 12 mil anos atrás encontrada no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí. Segundo Mayana de Castro, não se pode dizer com certeza que é realmente um beijo, mas são duas figuras antropomorfas, com as cabeças próximas o suficiente para lembrar do ato de beijar Logo, a pintura rupestre ficou conhecida assim e se configura como um marco no estudo do modo de vida vivido lá no início dos tempos.

“O Beijo” é a pintura divulgada no meio digital como “a cena de beijo mais antiga do mundo”

SEXUALIDADE PARA SORTE

E PROSPERIDADE

Conforme as sociedades greco-romanas evoluíam, a sexualidade era amplamente valorizada e associada, de acordo com a arqueóloga Marina Cavicchioli que foi entrevistada pela Rádio Câmara para uma série de reportagens especiais sobre o amor romântico em 2008 , a conceitos de fertilidade e de prosperidade Para ela, diversos símbolos que hoje em dia poderiam ser tidos como eróticos ou pornográficos, na época tinham um significado diferente, sendo utilizados para atrair sorte e afastar energias negativas

De acordo com Ana Claudia Aymoré Martins, professora de História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), nesse período também havia uma maior aceitação da homossexualidade masculina, algo que só voltou a ser debatido mais abertamente nas sociedades ocidentais no século XX. Mas essa aceitação tinha limites,

uma vez que eram sociedades patriarcais, em que a homossexualidade feminina não recebia a mesma visibilidade ou aceitação que a masculina. “Embora figuras históricas como Safo de Lesbos [poeta que viveu no séc. VI a.C.] tenham expressado o amor entre mulheres, essas manifestações eram menos reconhecidas e celebradas em comparação às suas contrapartes masculinas”, observa Ana Cláudia

A professora também comenta que, como seres sociais, a humanidade tende a adaptar suas formas de expressar amor de acordo com as normas aceitas em cada contexto histórico. Ana Claudia Aymoré aponta que “quando refletimos sobre as semelhanças entre as formas de amar nos dias atuais e em outras épocas da história, a Antiguidade Clássica (período da história cultural entre os séculos VIII a C e V d C ) talvez seja o oraneidade te porque, temporais, s traçar”

Erinna,

Safo e
sua suposta amante, num jardim em Mitilene (Simeon Solomon, 1864)

A DOENÇA DO AMOR

Com o fortalecimento do poder da Igreja Católica, a sexualidade foi gradualmente dissociada de sua dimensão sagrada. Durante a Idade Média, diversos líderes religiosos estabeleceram que o sexo deveria ter exclusivamente fins procriativos, e até mesmo manifestações de afeto entre marido e mulher eram vistas como tentações que poderiam levar ao pecado Para tratar essa condição, dois principais métodos eram indicados: o controle alimentar e a disciplina moral. A dieta buscava restringir o consumo de alimentos que pudessem estimular a circulação sanguínea e o desejo sexual, como vinho, carne vermelha, leite, ovos e vegetais de cor vermelha Além disso, era re-

comendado que o paciente suasse e tomasse banhos antes das refeições para auxiliar no tratamento. estimular a circulação sanguínea e o desejo sexual. O controle dos impulsos carnais também era essencial. Práticas na época como aplicar uma chapa de ferro frio sobre os rins, considerados o centro do desejo carnal, dormir sobre uma almofada de urtiga e tomar banhos frios eram recomendadas para conter o ímpeto sexual No final, o tratamento da “doença do amor” tinha como meta provar que os desejos carnais eram a raiz de todos os males. Acreditava-se que apenas uma vida virtuosa, isenta de paixões desenfreadas, poderia restabelecer o equilíbrio entre o corpo e a alma.

OS DESEJOS CARNAIS ERAM A RAIZ DE TODOS OS MALES

irarse , U in v e r s i ty o fOxford

No passado, escritores e pensadores relacionavam o amor a males físicos e mentais, interpretando-o como uma fonte de sofrimento Entre eles, podemos citar:

Constantino (século XI): Ao traduzir um tratado sobre melancolia, relacionava o excesso de bílis negra à “doença do amor”. Argumentava que o desequilíbrio dela afetava o cérebro, gerando pensamentos obsessivos e angústia constante.

Conhecido como Constantino, o Africano, foi um renomado médico e tradutor tunisiano Sua principal contribuição foi trazer importantes textos médicos árabes e gregos para o Ocidente

Arnau de Vilanova (c.1240-1311): Atribuiu o sofrimento amoroso a um erro da “memória cogitativa”, parte do cérebro que processa e julga imagens Segundo ele, essa falha intensificava o desejo amoroso e o sofrimento emocional

Vilanova misturava conhecimento científico com elementos místicos e filosóficos Escreveu tratados sobre alquimia e tentou conciliar sua prática com a fé cristã, incomum para a época

Bernard de Gordon (1270-1330): Disse que “amor de mulheres” poderia levar à morte do paciente Entre os sintomas, a fixação na pessoa amada, aumento da temperatura corporal e do fluxo sanguíneo e desejo sexual exacerbado

Gordon foi um dos primeiros médicos medievais a descrever doenças com enfoque mais clínico e experimentar novas formas de tratamento diversas da tradição da época

Também durante esse período, na Europa, surgiu a tradição do amor cortês. Que, segundo a antropóloga Raquel Abreu, “era pensado, vivenciado a partir de todo um processo medieval de jovens que vão se apaixonar pelas mulheres, que vão cortejálas, que vai ter todo um imaginário de inacessibilidade, que vai existir a vontade, o sonho”. O amante, geralmente um trovador, dedicava seus versos a uma

Capelão no século XII provavelmente para a corte francesa do Rei Filipe Augusto (Filipe II), são listadas algumas regras dessa forma de amar. Uma delas afirmava que, ao ver sua amada, o coração do amante começava a bater mais rápido.

O AMOR É UM NEGÓCIO

A historiadora Ana Claudia observa que a restrição das formas de amor continuou com a chegada da Era Moderna e o fortalecimento da sociedade burguesa e capitalista. Embora muitos costumes medievais tenham sido mantidos, a Reforma Protestante – um movimento religioso do século XVI que resultou na divisão da Igreja Católica e na criação de diversas igrejas protestantes – introduziu práticas proibidas

God Speed (Velocidade de Deus, na tradução

God Speed (Velocidade de Deus, na tradução para o português) é uma pintura de Edmund para o português) é uma pintura de Edmund

Blair Leighton de 1900 com uma visão vitoriana Blair Leighton de 1900 com uma visão vitoriana tardia de uma senhora prestando um ato cortês tardia de uma senhora prestando um ato cortês a um cavaleiro prestes a partir para batalha a um cavaleiro prestes a partir para batalha

pelo catolicismo, como o divórcio, que foi aceito pela Igreja Anglicana criada pelo rei Henrique VIII para poder se casar novamente.

Ao contrário da Idade Média, quando o casamento era predominantemente visto como uma aliança entre famílias, na Era Moderna, o conceito de casamento ficou mais flexível, permitindo que os interesses e sentimentos dos próprios parceiros fossem considerados. Embora houvesse uma maior liberdade sexual, Aymoré destaca que o amor erótico ainda era restrito ao relacionamento entre homem e mulher dentro do casamento. “Essa configuração [do casamento] era importante para a burguesia ascendente, que precisava de herdeiros para suas propriedades, e para a classe trabalhadora, que precisava de descendentes para garantir a força de trabalho”, ressalta Ana Claudia Aymoré, docente na UFAL há 20 anos associada ao Programa de Pós-graduação em História, mestra em História Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O conceito de casar por amor só se popularizou muito depois Gradualmente, as pessoas começaram a valorizar o desejo de unir-se por sentimentos genuínos, em vez de apenas por conveniência. Segundo a historiadora dedicada ao amor, Mary Del Priore em uma entrevista para a revista Cult em 2010 , no Brasil do século XIX, diversos jornais relatavam casos de rapto na porta das igrejas, evidenciando um crescente interesse pelo amor romântico.

Por um lado, ainda persistia o costume dos casamentos arranjados, que visavam a preservar tradições e normas sociais Por outro, emergia a aspiração de casar por amor Apesar do crescente ideal romântico, o prazer sexual ainda permanecia fora do casamento. A antropóloga Raquel Abreu afirma que, com as revoluções burguesas, em especial a Revolução Francesa – um movimento social e político, ocorrido entre 1789 e 1799, que derrubou a monarquia absolutista na França, instaurou princípios de igualdade, liberdade e fraternidade –, que provocaram mudanças ideológicas, políticas e econômicas com a consolidação do sistema capitalista, as emoções também passaram a ser controladas pelo mercado e pela lógica capitalista.

No contexto da ênfase econômica do século XX em detrimento dos relacionamentos, a psicóloga especializada em terapia de casais, Amélia Guimarães, menciona a “Teoria do Apego” desenvolvida por John Bowlby, psiquiatra e psicanalista britânico O autor foi chamado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para conduzir uma pesquisa com crianças órfãs da Segunda Guerra Mundial que, apesar de terem acesso a todos os recursos materiais essenciais como alimentos, infraestrutura adequada, medicamentos e vestuário , continuavam a falecer. Sua conclusão foi que as crianças estavam morrendo devido à tristeza pela perda dos pais e à falta de afeto, já que os enfermeiros e médicos estavam presentes apenas para cuidados médicos, sem oferecer suporte emocional. Com isso, Bowlby formulou a tese de que a conexão emocional e o afeto são essenciais para a saúde do ser humano.

Ele demonstrou que essa necessidade é tão vital quanto às necessidades físicas. Maria Amélia Guimarães ainda ressalta que, após a morte de Bowlby, ficou claro que as necessidades de apego que ele identificou em crianças também se aplicam a casais

SOCIEDADE DO DESAPEGO

Nos dias atuais, Amélia observa que o apego tem ganhado destaque nas discussões sobre relacionamentos, um aspecto fundamental da experiência humana. Segundo ela, os seres humanos têm uma necessidade inata de estabelecer conexões fortes e seguras, algo que também é compartilhado por outras espécies Guimarães explica que estudos de neurociência e pesquisas diversas já comprovaram a importância dessas conexões para o bem-estar emocional e mental.

Ela pondera que o amor, assim como as relações, não pode ser entendido apenas de forma biológica Há também um aspecto cultural, que tem evoluído ao longo das gerações “Se pensarmos, por exemplo, na questão moral e religiosa, observamos que vivemos hoje em um momento de quebra de paradigmas”, diz

“Se, no passado, nossos avós e bisavós encaravam o casamento para a vida toda, atualmente temos uma nova mentalidade. Há uma compreensão crescente de que, se o relacionamento não está sendo bom, a pessoa pode simplesmente se afastar, o que é positivo em muitos casos”, comenta Maria Amélia Guimarães. Ela destaca como essa mudança de postura tem permitido a muitas pessoas se libertarem de relacionamentos abusivos ou emocionalmente insustentáveis

“A HUMANIDADE ADAPTA SUAS FORMAS DEMOSTRAR AMOR DE ACORDO COM AS NORMAS DE CADA ÉPOCA”

A psicóloga Maria Amélia Guimarães afirma que o apego, ou a falta dele, tem relação direta com o amor

O AMOR NA ÓTICA DE QUEM LÊ A FORA DA CAIXA

O que dizem aqueles leitores e seguidores da revista que viveram, vivem ou ouviram falar sobre o sentimento de amar

Com o propósito de colher relatos de pessoas que experienciaram o amor, bem como suas opiniões soele a partir do olhar dos leitores e seguidores da Revista Fora da Caixa, nossa reportagem resolveu criar uma pesquisa de opinião Intitulado “O Amor Para Você”, o levantamento consistiu em cerca de 20 perguntas distribuídas em um formulário online. A divulgação foi feita no Instagram oficial da revista, além do compartilhamento através de grupos de WhatsApp, e a pesquisa esteve aberta para respostas durante o mês de setembro de 2024

Ao todo, foram coletadas 24 respostas de leitores da revista digital e seguidores da Fora da Caixa nas mídias digitais, sendo a maior parte na faixa dos 18 aos 29 anos de idade (83,33%). Todos os entrevistados disseram acreditar no amor e 91,67% deles que o amor pode durar para sempre Comunicação e respeito são aspectos importantes para um bom relacionamento para 41,67% dos respondentes. Quando perguntados se já sofreram por amor, 70,83% disseram que sim. Já em termos de afinidade e forte conexão entre pessoas, o que para alguns podem ser considerada alma gêmea, nem todos acreditam nisso. Pelo levantamento, 62,5% afirmaram não acreditar nisso, revelando que a conexão harmônica e profunda em termos de relacio-

mento amoroso, como muitos pensam e falam, passa ao largo da opinião de quem lê a Fora da Caixa.

Ao responder o formulário, Angela Auad, de 22 anos, compartilhou suas impressões sobre o amor no passado Ela recorda, com base nas histórias de sua avó, que os relacionamentos eram muito complicados naquela época. “Você era traída e mesmo assim não largava o homem, então eu acho que era pior”, diz Apesar dessa crítica ao amor de antigamente, Angela reconhece que os relacionamentos atuais também estão longe da perfeição, mas afirma que “melhorou bastante”.

No ambiente familiar, o que se observa é o fenômeno da “química esquemática”, um conceito que reflete, para a psicóloga Maria Amélia Guimarães, como as experiências da infância moldam nossos relacionamentos ao longo da vida. Ela explica que a maneira como vivenciamos essas experiências, além do comportamento dos pais e cuidadores, impacta profundamente a forma como nos conectamos com os outros.

“Essas vivências moldam a forma como nos relacionamos”, destaca. Amélia explica ainda que muitos dos comportamentos que adotamos em nossos relacionamentos não são escolhas conscientes, mas, sim, reflexos

“MUITOS

DOS COMPORTAMENTOS QUE ADOTAMOS

NOS RELACIONAMENTOS

SÃO REFLEXOS DAS LIÇÕES

APRENDIDAS

NA INFÂNCIA”

MARIA AMÉLIA GUIMARÃES

PSICÓLOGA ESPECIALIZADA EM TERAPIA DE CASAL

das lições aprendidas na infância. Enquanto algumas pessoas tendem a repetir padrões familiares, outras reagem de forma oposta, buscando o que ela denomina “hipercompensação”. Essa dinâmica revela como a história pessoal influencia as relações, muitas vezes sem que tenhamos plena consciência disso.

A análise de Clara Mendes, de 21 anos, reforça essa ideia. Em sua resposta à nossa pesquisa sobre a forma como seus familiares expressam o amor, ela observa que “eles aprenderam a amar a partir do jeito que foram amados; portanto, a forma como amam é uma consequência disso”.

A psicóloga Maria Amélia Guimarães, ao mesmo tempo em que reforça a necessidade de apego como inerente ao ser humano, observa um movimento de desapego crescente na cultura brasileira, refletido em expressões artísticas como cinema, música e teatro, além das dinâmicas das redes sociais “O pertencimento é uma necessidade emocional universal”, atesta. Todos buscam sentir-se amados, desejados e valorizados. Amélia alerta, no entanto, que a cultura contemporânea também propaga, por outro lado, frases que exaltam um desapego extremo na relação, no qual o casal não se permite ter uma conexão profunda, o que pode não ser saudável.

Essa perspectiva é ecoada nas opiniões de outros jovens que participaram da nossa pesquisa. Igor Vieira, de 24 anos, expressa sua preocupação. “Creio que as pessoas hoje, são mais frias. Consequentemente, o amor também tem sido demonstrado de formas mais frias Obviamente, isso tem exceções, mas fato é que a demonstração tem se tornado cada vez mais virtual”.

Valter Gomes, de 21 anos, complementa essa análise do Igor ao afirmar que o amor da atualidade se tornou algo “mais fútil do que o amor de verdade”, nas suas palavras Ele observa que muitos se envolvem em diversos relacionamentos em um curto espaço de tempo, confundindo essa efemeridade com amor. “Acredito que a maioria das pessoas está apenas tentando preencher algum vazio que existe nelas e estão chamando isso de amor”, reflete Valter, embora reconheça que ainda há aqueles que buscam um amor genuíno.

Esse paradigma fica evidente entre os entrevistados da pesquisa da nossa revista, ao serem indagados sobre qual tipo de amor consideram mais significativo. Apenas 20,83% indicaram o amor romântico Esse número é inferior ao amor próprio, que foi escolhido por 45,83% dos participantes e ao amor familiar, mencionado por 25% dos que responderam o levantamento.

Quando pensamos pelo lado tecnológico da sociedade atual, a antropóloga Raquel Abreu observa que vivemos em meio a uma revolução tecnológica sem precedentes Segundo ela, “a revolução da tecnologia da informação é uma das mais rápidas, ferozes e voláteis, em constante transformação”. Nesse cenário de mudança, na qual as emoções também são afetadas, a velocidade se torna um elemento central que molda as relações e percepções de mundo

“EU

JÁ VIM FELIZ DE CASA”

Raquel Abreu comenta sobre um meme que circula nas redes sociais Nele, um casal heterossexual se encontra, e o rapaz afirma: “Vou te fazer feliz” A garota responde, de maneira incisiva: “Eu já vim feliz de casa”. Essa troca busca, na opinião da antropóloga, desconstruir a ideia de que a felicidade depende de outra pessoa, ressaltando que a autossuficiência emocional é fundamental para os relacionamentos saudáveis.

Essa visão de independência extrema, no entanto, contrasta com os apontamentos de Maria Amélia Guimarães, que bate na tecla sobre a necessidade humana de apego. Embora a desconexão emocional possa trazer alguns benefícios, como a liberdade de se afastar de relacionamentos prejudiciais, essa falta de laços profundos também pode resultar em solidão e um vazio emocional, refletindo a complexidade da experiência humana na era do desapego, argumenta a psicóloga.

A estudante de Jornalismo da UFAL Ylailla Moraes, de 23 anos, traz uma perspectiva ampla sobre a pluralidade do amor contem-

porâneo em suas respostas na pesquisa Para ela, “atualmente não há um tipo só de amor”, e a sociedade é reflexo dessa diversidade “O amor atualmente caminha para ser mais fluido e com uma necessidade de desapego As pessoas têm tido medo de se relacionar, de se entregar”. Ylailla reconhece que esse medo de amar pode levar a extremos, como o apego excessivo ou a fuga desnecessária. “De qualquer forma, o amor está mais líquido, mas permanece plural”, conclui.

Ao concluir sua participação na pesquisa, Igor Vieira destacou que não acredita na existência de um jeito “certo” de amar Para ele, apesar de as épocas influenciarem certos preceitos sobre relacionamentos, é fundamental que cada casal desenvolva suas próprias maneiras de se amar.

Essa perspectiva ressoa com o que a historiadora Ana Claudia Aymoré mencionou sobre as pessoas como seres sociais. Segundo ela, a humanidade ajusta suas formas de expressar amor conforme as normas aceitas em cada contexto histórico. No entanto, essa adaptação não impede que cada casal tenha o poder de moldar e escrever sua própria narrativa de amor, estabelecendo um caminho único em meio às influências temporais e sociais.

A antropóloga Raquel Abreu concluiu que o amor uma construção social e cultural, afirmando que ninguém nasce amando. Segundo ela, o ato de amar envolve um processo em que a pessoa vai conhecendo, alimentando um desejo e um sentimento por algo que passa a observar, cobiçar e desejar diariamente. (AJG e YH)

O Amor para Você O Amor para Você

Idealizada e distribuída pela reportagem da Fora da Caixa em setembro de 2024 nas redes sociais da revista, a pesquisa coletou 24 respostas de leitores e usuários. Eis os principais resultados:

Acreditam no amor 1

Acreditam que o amor pode durar para sempre 2.

Tem entre 18 e 29 anos 3

Já sofreram por amor 4

Não acreditam em alma gêmea 5.

Estão solteiros 6.

Acredita que o amor próprio é o tipo de amor mais importante 7

Acreditam que o mais importante para um relacionamento é a comunicação e o respeito 8.

Acreditam que a idade ideal para se começar a ter relações amorosas é 18 anos

O QUE, PARA VOCÊ, REALMENTE SIGNIFICA AMAR ALGUÉM?

Entre as muitas perguntas da pesquisa “O Amor Para Você”, a que questionava acerca do que significava realmente amar alguém teve notória repercussão entre os participantes mais jovens Confira abaixo os relatos autorizados e selecionados pela nossa equipe.

“Amar alguém é cuidar, se preocupar, é querer estar perto e se sentir bem na presença do outro É sentir que o mundo é mais colorido quando o outro está por perto, que as flores são mais cheirosas, a música é mais melodiosa, a comida é mais saborosa, tudo é mais divertido e alegre, e o peso avassalador de ser humano se torna menos pesado. A vida se torna mais bonita, e um novo propósito é adicionado à sua vida: cuidar e fazer a pessoa que você ama feliz ” (Clara Mendes, 21)

“Significa respeitar o outro e estar presente. Mais do que isso, é fazer o outro se sentir amado. Não basta amar Se o outro não sente o seu amor por ele, você está amando errado ” (Karoline Simões, 24)

“Amar alguém pra mim vai para além do ato de falarmos que amamos aquela pessoa , amar está nos seus atos com a pessoa que você ama, amar é dedicar tempo, atenção e prestar atenção nos detalhes, amar também é saber se comunicar e cuidar, amar é como uma flor que você cuida e rega todos os dias para que ela cresça bem e em segurança e o desabrochar dessa flor é o amor ” (Valter Gomes, 21)

“É tão difícil colocar a ideia de amor em uma caixa ou em um qualquer outra citação, porque a ideia de amor tem movido a amar é desejar que o outro possa ser ele mesmo e exerça sua lib o outro como realmente um outro, e não como uma extensão no

“D

iziam pra mim que essa moda passou, que monogamia é papo de doido”, já cantava Luísa Sonza na sua música “Chico”, em parceria com aaaaaaa Bruno Caliman, Carolzinha, Douglas Moda e Jenni Mosello, se ao menos tivessem te avisado, né, amiga? Para Luísa, sua romântica declaração para o namorado na época, o influenciador Chico Moedas, acabou rendendo vários arrependimentos que talvez lhe fizeram repensar se a monogamia é tão legal assim Para nós, da Fora da Caixa, nesta reportagem sobre relacionamentos sexuais ou afetivos com apenas um(a) parceiro(a) ou mais, esse episódio trouxe um questionamento pertinente: será que a monogamia está saindo de moda?

A canção de Luísa marca um processo de mudança na forma como, atualmente, a sociedade enxerga o amor e se relaciona Seja em músicas, filmes, redes sociais ou, até mesmo, nos nossos ciclos de amizade, encontramos casos que confirmam essa tendência na atual geração.

Em março de 2023, por exemplo, o Tinder lançou uma nova atualização para os seus mais de 75 milhões de usuários ao redor do mundo Agora, tornou-se possível incluir qual tipo de relacionamento você está buscando no app: monogâmico ou não monogâmico. Segundo dados levantados pela empresa, 73% dos jovens solteiros de todos os gêneros dizem que estão procurando alguém que seja claro sobre o que deseja Por isso, a solução foi formalizar essa opção, para facilitar a apresentação do que se espera ao iniciar uma conversa entre os usuários.

No mercado cinematográfico, com a alta dos serviços de streaming (oferta de conteúdos sob demanda), comédias românticas das décadas de 90 e 2000 estão reconquistando popularidade, permitindo que tanto uma nova geração tenha

a chance de assistir às obras, como também que as gerações antigas as revisitem. Entretanto, o retorno desses filmes gerou diversas polêmicas nas redes sociais acerca da forma que as pessoas enxergavam o amor e se relacionavam naquela época

Uma dessas obras foi a comédia romântica “(500) Dias Com Ela”. Dirigido por Mark Webb, o filme retrata um escritor de cartões que se surpreende quando a pessoa com quem está se envolvendo, a Summer, termina a relação repentinamente. No ano em que foi lançado, em 2009, era quase unânime que Summer seria uma pessoa sem coração por ter deixado o protagonista.

Quinze anos depois, com a obra sendo revisitada, a opinião dos jovens da Geração Z (pessoas nascidas entre a segunda metade da década de 1990 e começo da década de 2010) levanta uma transformação no entendimento do enredo, salientando a culpa do protagonista em ter criado expectativas no relacionamento com Summer, que sempre deixou claro que não queria nada sério

O próprio ator que interpreta o protagonista do filme, o norte-americano Joseph Gordon-Levitt, manifestouse na rede social X (antigo Twitter), defendendo a personagem, demonstrando que concorda com a nova perspectiva do relacionamento.

Em 2023, o Google Trends divulgou que o Brasil é o quarto país que mais pesquisa sobre não monogamia no mundo A procura pelo assunto quadruplicou nos últimos dois anos, com um crescimento de 280%. As principais perguntas feitas são: o que é não monogamia? Como saber se sou não monogâmica? O que é monogamia e não monogamia? Como aceitar um relacionamento não monogâmico?

Além disso, a empresa de pesquisas YouGov realizou um estudo com jovens brasileiros entre 18 e 29 anos de idade demonstrando que essa faixa etária é muito mais

Tweet do ator Joseph Gordon-Levitt, protagonista do filme “500 Dias Com Ela”, viralizou após defender a personagem Summer, vivida por Zooey Deschanel F

Com isso, comprovamos que a não monogamia está em todos os lugares, gerando debates, questionamentos e estranhamentos. Fato é que a nova forma de enxergar o amor é uma tendência que está crescendo e traz diversas perspectivas diferentes de como esse sentimento pode ser interpretado, vivido e sentido Isso faz com que até outras gerações repensem sobre sua forma de se relacionar.

Com isso, eu pergunto a você, querido leitor, querida leitora: você pensa “fora da caixa” quando o assunto é amor?

É UMA HONRA SER CAFONA

Vamos te situar nesta discussão: quando pensamos em amor, imediatamente isso nos remete a um relacionamento monogâmico. Duas pessoas que se conhecem, começam a sair, apaixonam-se, iniciam um namoro e percebem que encontraram o amor de suas vidas. A monogamia está presente na nossa cultura e sempre é retratada com o tom romântico de que encontrar um amor para vida simboliza o “felizes para sempre”, assim

como nos contos de fadas.

Para Victor Umbelino, estudante de engenharia de 20 anos e monogâmico, casar e constituir uma família sempre foi um sonho. “Almejei encontrar um amor, casar e ter filhos. É o meu principal objetivo na vida”, conta Ele diz gostar da ideia de ter uma família, ser pai e ter momentos de aprendizados e ensinamentos com seus futuros filhos. Ele completa que se imagina vivendo ao lado de um amor e que a vida é sobre ter momentos como esses.

Etimologicamente, a palavra monogamia possui origem grega, derivada dos termos monos, que significa “sozinho”, e gamos, que seria “união” ou “casamento”. Também tem a ver com o latim monogamus, que quer dizer um só casamento Dessa forma, a monogamia é um tipo de relacionamento em que o indivíduo tem, de forma exclusiva, apenas um parceiro.

Embora exista toda a romantização do amor verdadeiro e do casamento em volta das relações, a monogamia não surgiu de forma natural na sociedade. Esse tipo de relacionamento, na verdade, foi lentamente instituído na cultura dos povos, com o objetivo de torná-lo um padrão nas relações humanas

De acordo com Nayra Viana, psicóloga clínica, o capitalismo e o cristianismo foram os grandes responsáveis pela hegemonia da monogamia na sociedade “A monogamia foi muito difundida entre a sociedade capitalista, ao passo que o cristianismo foi ganhando mais adeptos e reforçando essa estrutura de casamento e família”, revela.

De acordo com Nayra Viana, psicóloga clínica, o capitalismo e o cristianismo foram os grandes responsáveis pela hegemonia da monogamia na sociedade. “A monogamia foi extremamente difundida entre a sociedade capitalista, ao passo que o cristianismo foi ganhando mais adeptos e reforçando essa estrutura de casamento e família”, revela.

A psicóloga Nayra Viana atendeu jovens adultos que cogitaram a não monogamia

que os bens acumulados não sejam divididos com os filhos de outros”, explica Adê.

Segundo a psicóloga Adê Monteiro, em entrevista à revista IstoÉ para a matéria “‘Não-monogamia’: Entenda a perspectiva relacional que vem ganhando espaço na atualidade”, publicada no dia 10 de abril de 2023, o motivo para que esse tipo de relacionamento tenha sido incentivado foi a propriedade privada e a necessidade de o homem se apropriar de tudo que “possui” como terras, animais e as mulheres.

Após anos de construção, a monogamia se estabeleceu como uma forte estrutura social, consagrada no imaginário popular por uma perspectiva romântica que foi atribuída ao longo dos séculos, por meio dos livros, novelas e filmes, como o tipo de relacionamento ideal e símbolo do amor verdadeiro. Na visão de Victor Umbelino, a monogamia traz o sentimento de segurança. “Para mim, que sou extremamente inseguro em relação à autoestima, a monogamia é como um viés de confirmação de que sou amado”, conta.

Por muito tempo, a monogamia seguiu invicta. É colocado um ponto final nessa hegemonia quando, nos dias atuais, a relação entre apenas duas pessoas passa a ser retratada como “mas pra mim é uma honra ser uma cafona para esse povo”, segundo os versos da música de Luísa Sonza. Os comentários em torno da monogamia, que antes era vista como um objetivo de

“Longe de ser algo intrínseco ao se humano, a monogamia é uma estrutura social, um alicerce fundamental do patriarcado. Nessa atual conjuntura, o pila central é o controle dos corpos alheios principalmente o corpo da mulher, para que não tenha filhos com outros homens e para mI

Victor diz que não experimentaria ser não monogâmico. “No meu ciclo de amizades, existem muitas pessoas que mantêm relações não monogâmicas, mas eu não acredito que exista uma conexão real nessas relações. Eu não tenho vontade de experimentar, pois eu prezo muito pelo sentimento quando decido me relacionar com alguém”, completa.

SOU DE NINGUÉM E DE TODO MUNDO

Para Joyce Maia, estudante de Jornalismo, 20 anos e não monogâmica, a história é diferente. “Até eu descobrir que a não monogamia existia, só pensava que eu era uma péssima pessoa”, revela. Ela conta que sempre foi uma pessoa desapegada e não idealizava suas relações

“Como mulher preta, eu sempre fui muito sexualizada na adolescência. As minhas experiências com relacionamentos nunca foram romantizadas Iniciei minha vida sexual com 13 anos e, nesses envolvimentos, eles nunca tiveram interesse em desenvolver algo sério comigo. Eu também sempre fui desapegada a essa ideia de encontrar um amor. Os meus objetivos eram mais voltados para minha vida profissional”, explica.

Até Joyce conhecer a não monogamia, ela vivia esses relacionamentos sem se atrelar a ninguém e sem nunca sentir que amou verdadeiramente. “Com 17 anos eu conheci uma pessoa com quem conversei durante um ano e foi a primeira vez que senti que es-

tava apaixonada. Ele namorava e tinha um relacionamento aberto, e foi através dele que a não monogamia entrou na minha vida”, conta.

Para Joyce, embora não tenha sido fácil conseguir se distanciar da pressão social em seguir os padrões monogâmicos ou se sentir uma pessoa fora da caixa por não idealizar suas relações, como dizem que ela deveria, a descoberta da não monogamia foi um divisor de águas em sua vida para ela se sentir bem consigo mesma e com suas relações. Apesar de ela só ter conhecido essa forma de se relacionar recentemente, esse tipo de relacionamento precede outros momentos da história humana.

De acordo com Maria Silvério, doutora em perspectiva romantizada e cafona do que é amar e se relacionar, a exemplo da música “Chico”, revelam uma mudança de opinião nas pessoas.

Joyce Maia se aprofundou no tema da não monogamia por meio de podcasts, livros e pesquisadoras da área para se compreender mais

nogamia é coisa de jovem?”, da revista Gama, a não monogamia como conhecemos hoje emergiu há muito tempo, a partir das transformações das décadas de 1960 e 1970, como o movimento hippie e o feminismo Conforme explica, nessa época, houve uma mudança de padrões comportamentais e sexuais, surgindo o conceito de casamento aberto, que nasceu como casamento e não como relacionamento aberto Isso emergiu no meio das pessoas intelectualizadas e mais velhas, que participaram das comunidades alternativas dos anos 60 e 70, com a finalidade de repensar a estrutura familiar e as estruturas relacionais Do seu surgimento até os dias hoje, a não monogamia está em constante transformação, permitindo que os indivíduos possam experimentar a melhor forma de viver o amor.

A descentralização do relacionamento é o aspecto principal para viver uma relação não monogâmica, defende Joyce. “É muito comum que, quando iniciamos um namoro, todos os nossos outros relacionamentos passem a ser secundários. Por isso, nós, não monogâmicos, fazemos esse movimento de descentralização do amor romântico e dos parceiros”, diz. Para ela, os relacionamentos não monogâmicos consistem em relações que não têm regras pré-estabelecidas. “Cada pessoa vai construindo a sua forma de se relacionar, contanto que não seja um relacionamento centralizado e haja autono-

mia de ambas as partes. Então, se você tem um relacionamento aberto, mas estabelece algum tipo de regra com seu parceiro, como poder ficar com outras pessoas, mas não poder se apaixonar, já não se configura como relacionamento não monogâmico”, argumenta.

Nayra Viana explica que a não monogamia abrange diversas formas de relacionamentos consensuais que não são estritamente monogâmicos. “Os indivíduos identificados como não monogâmicos têm a liberdade de se relacionar de forma romântica e/ou sexualmente com múltiplos parceiros Além disso, a não monogamia contradiz uma das principais regras da monogamia, que é a exclusividade, ou seja, eles propõem a não exclusividade", continua. Quando se fala da não monogamia, muitos tabus surgem, apesar de nenhum deles ser verídico. Pensamos que esse tipo de relacionamento seria um sinônimo de poligamia, tipo “vamos viver, vocês e eu, eus e você”, como na canção de mesmo nome (“Poligamia”), composta por George Israel e Paula Toller e gravada pela banda de pop rock brasileira Kid Abelha. Pensamos que seja uma desculpa para a promiscuidade ou ainda que pessoas não monogâmicas não vivem amores de verdade.

Joyce desmente esses pensamentos equivocados que são compartilhados acerca

“ATÉ EU DESCOBRIR QUE A NÃO MONOGAMIA EXISTIA, SÓ PENSAVA QUE EU ERA UMA PÉSSIMA PESSOA”

da não monogamia. “As pessoas pensam que, para ser não monogâmico, você precisa estar com dez pessoas ao mesmo tempo, e não é isso. Você pode estar com uma pessoa só se essa é sua escolha, mas você não pode exigir que o seu parceiro faça o mesmo, pois deve existir a liberdade do que cada um pode fazer com seu próprio corpo”, diz Ela acrescenta que a ideia de você poder amar apenas uma única pessoa nunca fez sentido, pois ela teve experiências de se apaixonar por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. “O idealismo da monogamia pode afetar a forma que enxergamos a não monogamia. Como crescemos pensando que iremos encontrar uma pessoa para compartilhar toda nossa vida, os pensamentos não monogâmicos causam um choque na estrutura que foi tão popularizada”, explica a psicóloga Nayra Viana

A não monogamia demonstra um modo de relacionamento muito mais fluido que a monogamia, sem uma classificação específica para os tipos de relacionamentos que se encaixam nesse estilo de relação. Ou seja, eles não são separados por caixinhas de definições, permitindo que as pessoas possam experimentar o que as faz melhor.

Enfim, de fato, é um assunto extenso e, de certa forma, complexo A canção “Já Sei Namorar”, sucesso na voz dos Tribalistas, grupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, traz uma passagem sobre a liberdade em buscar a felicidade em seus próprios termos que se assemelha ao sentido da não monogamia. Como cantam Os Tribalistas (formado pela reunião dos artistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte) na música

“Já sei namorar”, “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, a lógica está pautada na liberdade dos indivíduos em decidir o que lhes traz felicidade, independente das normas e padrões que são instituídos.

“HOJE O TEMPO VOA, AMOR”

Nayra Viana afirma que a não monogamia é, sim, uma tendência nos dias atuais. “A nova geração está muito mais imediatista, as relações estão mais fluídas, sem regras e mais rápidas”, completa Seja porque o cenário mundial tenha incentivado o retorno desse assunto na boca do povão ou seja pelo fato dessa forma de se relacionar sempre ter existido, só não falávamos abertamente sobre Fato é que este movimento de descoberta (ou redescoberta) de novas formas de amar está acontecendo. Mas como se deu isso? O conceito da modernidade líquida, criado pela pensador polonês Zygmunt Bauman, está muito presente na geração atual e pode nos ajudar a entender como se dá esse imediatismo. “Essa abordagem trata da fluidez com que as coisas acontecem de forma mais rápida e superficial” Em um mundo em que os conteúdos passaram a ser resumidos para caber em vídeos de um minuto nas redes sociais, reportagens com mais de 10 linhas fazem o leitor desistir de terminar a leitura (você é um leitor “fora da caixa” se chegou até aqui!). A todo momento, uma enxurrada de informações nos atinge, já que estamos sempre conectados, seja por smartphones ou computadores. Com isso, é claro que o comportamento humano iria mudar de acordo com as novas tendências sociais. Como tudo se tornou tão otimizado, a paciência também foi se tornando escassa.

SUPERFICIAIS, IMEDIATISTAS E SEM TEMPO DE PRIORIZAR

A não monogamia é um relacionamento superficial?

No livro “Choque do presente: quando tudo acontece agora”, do pesquisador estadunidense Douglas

Rushkoff, é abordado o conceito da “cultura do imediatismo”, que demonstra um alerta para o comportamento ansioso progressivo da sociedade moderna. Devido à nova realidade da internet e da globalização, algumas consequências atingiram o comportamento social, como a sensação de obrigação de sempre dar conta de tudo e, consequentemente, perder a capacidade de planejar e priorizar nossas atividades

Essas ramificações mudam a forma como pensamos na política, na economia e nos relacionamentos afetivos, fazendo com que muitas decisões sejam tomadas sem grandes reflexões e de forma superficial. Tudo para mantermos nosso ritmo acelerado de vida “É possível sim que algumas relações não monogâmicas sejam superficiais, como também é possível que não sejam”, diz a psicóloga Nayra Viana. Um relacionamento envolver amor ou não, ser superficial ou não, são coisas que dependem unicamente do indivíduo “Óbvio que o momento é propício para a superficialidade florescer mais que o normal em meio às relações, principalmente pelo modelo não monogâmico não seguir regras, mas não significa que as relações estarem mais superficiais seja uma verdade absoluta”, diz.

Ou seja, resumir que a superficialidade ocorre em detrimento de como as pessoas enxergam o amor hoje devido ao imediatismo da geração não é uma análise justa, pois a forma que nos relacionamos depende muito de pessoa para pessoa. “As pessoas que gostam e querem ter conexões mais profundas vão conseguir ter, porque é algo natural do ser humano”, diz Nayra.

Segundo a universitária Joyce Maia, alguns relacionamentos a fizeram se apaixonar mais que outros, mas ela preza muito pela conexão como critério em aceitar seus parceiros “Eu sou uma pessoa muito carinhosa. Gosto de ficar de chamego assim como todo mundo. Ao contrário do que pensam, eu procuro criar uma conexão nas minhas relações e já gostei de muitos parceiros e parceiras que tive”, revela Apesar de causar um certo desconforto e estranhamento por parte dos casais monogâmicos, a não monogamia mostra cada vez mais que é possível viver o amor em um relacionamento sem amarras e descentralizado. Precisamos nos permitir, até porque, como canta o compositor de rock pop Lulu Santos em sua canção de 1982 “Tempos Modernos”, passando a mensagem sobre a esperança de um futuro melhor, livre de hipocrisia e com mais amor, independente da sua forma, “hoje o tempo voa, amor” e “vamos nos permitir”

“Quantas vezes você já foi amado? Cantar sobre amar talvez seja mais revolucionário”, entoa o rapper brasileiro Baco Exu do Blues na música “Sinto Tanta Raiva…”. A letra aborda uma reflexão sobre o amor e a revolução que isso representa, contrastando com a realidade de violência e opressão. Falar sobre amor e relacionamentos vai muito além do mundo romântico e apaixonado. Assim como qualquer relação social, o amor carrega complexidade e envolve aspectos sociais, como as questões de gênero e raça

No livro “O Avesso da Pele”, o escritor Jeferson Tenório exibe uma dura realidade em que homens e mulheres pretas não dividem as mesmas batalhas na luta contra o preconceito. “Você tem que compreender é que homens negros sofrem suas violências E que as mulheres negras sofrem outras. Algumas são parecidas. Mas, veja, somos diferentes Nem sempre as causas são iguais”, narra. Historicamente, a mulher preta no Brasil é vista sob uma perspectiva preconceituosa e sexualizada. Desde os tempos da escravidão até os dias atuais, ainda são rotuladas como objeto de trabalho e diversão.

A raiz do problema não mora apenas no racismo, mas também no machismo. Para Nayra, não há como discutir a não monogamia sem abordar a questão racial e de gênero “Estão todos interligados Desde o momento da sua instituição, há anos pelo modelo econômico capitalista até os dias atuais com o imaginário social machista e racista”, esclarece.

Com isso, a questão do gênero também implica muito nessa situação, sendo duas perspectivas que se complementam. O racismo inferioriza e desqualifica a mulher negra que não se enquadra nos padrões estéticos da sociedade: ser branca, magra e ter cabelo liso, e o machismo a objetifica e sexualiza, além de vincular a mulher branca ao tradicional, “a mulher para casar”

Alguns exemplos da literatura brasileira, como no livro “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, demonstram o imaginário da mulher da pele cor de canela que é o desejo sexual de todos da cidade de Ilhéus, no sul do estado da Bahia

“Enquanto modelo de relacionamento, a não monogamia não foi idealizada para mulheres pretas, tendo em vista que somos objetificadas para apenas fins sexuais, e nunca para casar”, opina Joyce. Ela diz que não voltaria a ser monogâmica, pois essa forma de relacionamento foi feita para pessoas com corpos padrão. “Eu, enquanto mulher, preta e bissexual, entendo que a monogamia me deixava limitada ao papel de apenas esperar para ser escolhida por uma pessoa e, assim, poder ser amada. Entretanto, para pessoas que não têm uma aparência padrão, é muito difícil viver sob essa expectativa”, revela.

No livro “Atrás do Muro da Noite: Dinâmica das Culturas Afro-brasileiras”, lançado em 1994, o historiador negro Joel Rufino dos Santos afirma que “a parte mais óbvia da explicação é que a branca é mais bonita que a negra. Quem me conheceu dirigindo um Fusca e hoje me vê de Monza tem certeza de que já não sou um pé-rapado: o carro, como

a mulher, é um signo”. Dessa forma, assim como cita Joel, a mulher branca é vista como a mais bonita, um símbolo de status social, enquanto que a mulher preta deve ser escondida “Já tive muitas experiências de ficantes que me trocaram por mulheres brancas e elas foram assumidas”, conta Joyce

Segundo informou a pedagoga e mestre em Ciências Sociais Claudete Alves para o Portal UAI na matéria “Negras Têm Mais Dificuldade Em Engatar Romances Sérios”, publicada em 3 de setembro de 2013, um mapeamento feito a partir de 1 127 casais em São Paulo mostrava que apenas 418 eram formados por homem e mulher negros. Uma das explicações para o número tão reduzido de casais de mesma raça estaria no fato de que os negros que ascendem socialmente querem se relacionar com as brancas Eles buscam na união com outra raça uma forma de reforçar sua situação de suposto status.

Joyce Maia conta que decidiu tomar o controle da sua própria vida e se relacionar e amar da maneira que ela achar que seja correta. “Percebi que a escolha de ser não monogâmica também é um ato de revolução, de não me colocar em uma posição passiva de esperar ser escolhida por alguém”.

A socióloga Bruna Pereira, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem), da Universidade de Brasília.em entrevista para a mesma matéria do Portal UAI, disse que as mulheres pretas demoram mais para terem um relacionamento e se casam mais tarde e

apresentam maior índice de celibato Além disso, a não monogamia e a superficialidade se confundem devido ao machismo impregnado nas relações Enquanto homens se aproveitam do conceito da não monogamia para relacionar-se com mulheres sem responsabilidade afetiva, as mulheres se tornam descrentes de que um amor monogâmico pode ser uma realidade para elas.

Nayra relata que estatisticamente o homem é mais propenso a se relacionar com mais de uma mulher que o contrário Então, ela levanta um ponto: “Sabendo disso e pensando na perspectiva do machismo, até que ponto esses relacionamentos são não monogâmicos e não são machistas? Como saber se o homem só está se aproveitando da situação para ser machista?”, questiona. Para ela, isso pode surgir como mais uma forma de objetificação da mulher.

Joyce confirma essa realidade e conta que isso desestimula mulheres a sonharem com um relacionamento monogâmico “É muito comum homens terem relações não monogâmicas, mesmo sendo monogâmicos, para não ter responsabilidade afetiva. Isso desestimula as mulheres. Conheço algumas que, por conta dessas irresponsabilidades, optaram pela não monogamia ou o celibato”, completa aa

NOSSO ESTRANHO AMOR

Tantas músicas retratam o amor, atribuindo inúmeros significados diferentes, às vezes bons, às vezes ruins. Mas quando pensamos no maior ato de consumação de encontrar um amor, ainda pensamos no casamento “Case-se comigo numa noite de luar ou nu-

ma manhã de um domingo à beira-mar” é uma frase emblemática da música “Diga Sim pra Mim”, composta e gravada pela cantora Isabella Taviane e sucesso depois depois pela banda pernambucana Desejo de Menina, que retrata uma declaração de amor e uma proposta de casamento. Nela, o eu lírico expressa o desejo de compartilhar a vida com a pessoa amada. A mensagem da música marca o imaginário cultural brasileiro e comprova esse cenário em que amor e casamento estão sempre associados.

Mas essa associação do casamento ao amor não foi algo natural O ato de casar como grande símbolo de amor reforça os padrões capitalistas e cristãos da nossa sociedade. Em uma citação do livro “Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas”, Bell Hooks (pseudônimo da autora Gloria Jean Watkin) afirma que o mito do amor verdadeiroaquela visão de contos de fadas em que duas almas se encontram, se juntam e vivem felizes depois disso - é coisa de fantasias infantis Entretanto, muitos de nós, mulheres e homens, carregam essas fantasias para a vida adulta e são incapazes de lidar com a realidade do que significa uma conexão intensa, que altera nossa vida, mas que não levará a um relacionamento duradouro. O amor verdadeiro nem sempre nos leva ao “viver felizes para sempre” e, mesmo quando leva, sustentar o amor ainda dá trabalho.

“Em relacionamentos não monogâmicos, pode existir amor Na verdade, acho que é impossível não existir. O amor é como uma escolha, não algo irracional Nós temos consciência de que quando amamos alguém, é uma ação, um sentimento que se constrói

todos os dias e que escolhemos ter. Por isso, a não monogamia não difere em nada dos relacionamentos comuns entre apenas duas pessoas”, explica a estudante Joyce Maia.

Embora os amores não monogâmicos não se expressem da mesma maneira que os monogâmicos, ainda é amor Enquanto monogâmicos preferem escolher amar com regras definidas, existem pessoas que se identificam mais com um amor livre.

Cobranças e implantação de regras podem causar um desgaste emocional nessas pessoas, pois, para elas, o amor se expressa genuinamente quando elas são livres para sentir a sua forma. Como Caetano Veloso cita na canção “Nosso Estranho Amor”, “não quero você enfeite do meu ser, apenas peço que respeite o meu louco querer”. Gravada pela compositora Marina Lima e sucesso na sua voz em 1980, a música composta especialmente para ela retrata a complexidade dos relacionamentos sob uma perspectiva pouco convencional. Liberdade e respeito mútuo são os ingredientes principais dessa ideia de amor longe do ciúme, do sentimento de posse e fora dos padrões sociais ditos “convencionais” Mesmo que “Nosso Estranho Amor” não ti-

Foto: Reprodução/Editora Elefante

vesse sido composta originalmente pelo Caetano pensando na não monogamia, a associação com o assunto pode ser feita, sugerindo a superação das inseguranças e do ciúme numa relação diferente da maioria

Em uma coluna intitulada “Amor Livre ‘Raiz’? Acordos da Não Monogamia Podem Ter Fundo Monogâmico” para o portal Metrópoles, a especialista em sexualidade positiva Lua Menezes defende ser uma idealista e acreditar no amor mais pleno e livre “O amor quer o outro feliz, não quer o outro limitado”, afirma.

“SÓ VIGIA UM PONTO NEGRO, MEU CIÚME”

Na perspectiva do estudante universitário Victor Umbelino, um relacionamento não monogâmico que exista amor de verdade seria difícil lidar para ele, devido ao ciúme. “Imaginar uma pessoa que eu amo ficando com outras pessoas me traz um sentimento de insegurança”, diz. Caso abrisse a sua relação, diversos questionamentos iriam surgir. “Será que sou suficiente? Se ela fica com outras pessoas, o que ela precisa para me largar?”, exemplifica.

Segundo a psicóloga Nayra Viana, o ciúme é uma expressão humana que sempre irá existir, independentemente da relação ser monogâmica ou não. “O ciúme é um instinto de sobrevivência, vai muito além do nosso controle. É um mito que não monogâmicos não sentem ciúmes”, afirma. O amor livre que contém ciúmes não parece uma tarefa fácil. Mesmo para os não monogâmicos que preferem relações sem cobranças, alguns comportamentos podem

incomodar de vez em quando

Seria o ciúme uma “tenebrosa sombra” para muitos, como já cantou o mesmo Caetano Veloso, na sua canção “O ciúme”, ao tomar como ponto de partida uma metáfora sobre a rivalidade entre as cidades de Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco, com o Rio São Francisco (o “Velho Chico”), que corta a duas e é alvo da disputa. O próprio sujeito ciumento que sofre com o ciúme (a “flecha preta”) que fere justo na garganta, sendo capaz de calar e cegar.

“Tive duas experiências com dois parceiros em que senti ciúmes de alguns comportamentos que me causaram inseguranças. Eles eram monogâmicos, mas nossa relação foi não monogâmica”, conta Joyce Maia. Ela conta que lida com o ciúme como qualquer outra pessoa: “Assisto uma série e faço uma comidinha que eu gosto. Tento colocar meus pés no chão”

Sobre o sentimento de existir independente se o amor é livre ou não, Joyce diz que o ciúme vai vir, mas é responsabilidade dela resolver suas próprias inseguranças “O diálogo é importante para que a situação seja melhor para ambas as partes, mas o outro não é responsável por resolver minhas inseguranças. Por exemplo, fazê-lo mudar seus hábitos porque causa uma insegurança em mim”, explica.

Apesar de sentir ciúmes em um relacionamento que não tem regras possa parecer uma situação controversa, é importante entender que, ainda que se viva um amor livre, será necessário saber conviver e lidar com os sentimentos que vão

surgir. “O ciúme vai existir porque, por mais ‘desconstruída’ que a pessoa seja, fomos socializados no sistema monogâmico e no amor romântico Então, esses sentimentos, insegurança, medo do abandono e inveja, são inevitáveis O importante é aprender a lidar com essas sensações da forma mais saudável possível”, revela Nayra.

O amor é um sentimento complexo, assim como nós. Ele pode acontecer exatamente como você sonhou ou chegar de forma inesperada. Pode seguir os padrões ou quebrar todos eles, pode te levar ao altar ou ser algo passageiro. Ele vem de maneiras diversas, e até mesmo esquisitas, mas quando uma dinâmica faz sentido para você, “não importa com quem você se deite, que você se deleite seja com quem for, apenas te peço que aceite, o meu estranho amor”, segundo os versos do mano Caetano. (LP)

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AMOR E SEXO: PELAS VITRINES TE VENDO PASSAR

Conexões e distanciamentos entre prazer, sentimento, sex shop, Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor

Por Maria Clara Gomes e Júlia Lins

Quando Arnaldo Jabor foi questionado por duas colegas sobre o seu artigo “O amor atrapalha o sexo”, publicado no

jornal O Globo em dezembro de 2002, ele não imaginava que o enigmático bigode do ex-presidente da República José Sarney (que governou o Brasil de março de 1985 a março de 1990) se entrelaçaria com a desobediência de Dom Pedro I, em 9 janeiro de 1822, quando ainda era o príncipe-

regente da colônia portuguesa. D. Pedro, que, às margens do riachinho do Ipiranga, teria proclamado: “Diga ao povo que fico!”

Mas alto lá! Venhamos e convenhamos que, em meio a tantos bigodes de épocas e estilos diferentes como o de Sarney e Dom Pedro I conectando amor e, sobretudo, depilação e sexo, como veremos logo a seguir, para nós, da Fora da Caixa, o que vale é a fantasia e a livre imaginação raspadinha levando ao prazer consciente. Por isso, nesta crônica jor-

“PARA O BEM DE TODOS E FELICIDADE GERAL DA SANTA RITA DE SAMPA, ‘SEXO ANTES, AMOR DEPOIS’.”

Na depilação realizada nas partes íntimas femininas, é comum se usar nomes de figuras históricas conhecidas para descrever os estilos desejados, seja o famoso “bigodinho de Hitler”, o de Dom Pedro I ou o “Sarneyzinho vertical”

nalística, qualquer semelhança com figuras históricas, eventos marcantes para o nosso país ou declarações reais dadas por pessoas conhecidas não passa apenas de uma (feliz) brincadeira para sairmos dos estereótipos e das convenções sociais para (re)pensar.

Voltemos ao texto...

Lançada em 2003, no disco Balacobaco, de Rita Lee, e inspirada no texto de Arnaldo Jabor, “Amor e Sexo” é uma ousada canção da roqueira paulista (a Santa Rita de Santa) e de seu marido, o compositor Roberto de Carvalho, com letra adaptada da crônica do jornalista, diretor de cinema e TV, crítico, cineasta e escritor carioca, que explora as várias formas de autopercepção e as diversas maneiras de sentir.

Na música, o grito de insubmissão não ecoa da garganta do príncipe que, em um gesto de desobediência a Portugal que levou, em setembro de 1822, à proclamação da independência do Brasil e à sua coroação, no mês seguinte, como imperador da nação.

Em vez disso, a canção é interpretada por uma mulher que desafia convenções ao se entregar à duplicidade dos sentidos ao produzir uma composição (quase) harmoniosa junto com dois homens. Mas o “quase” é porque, na canção, o amor e o se-

xo surgem meio como “opostos”, em que um parece existir para anular o outro

Na música “Amor e Sexo”, a parceria de Rita, Roberto e Arnaldo descreve o amor como “pensamento”, “teorema” e “bossa nova”, carregando, ao final, um peso “cristão”, quase ortodoxo. Na crônica de Arnaldo Jabor, ele continua o pensamento, apenas com um ceticismo mais cortante; ele é firme ao garantir que o amor atrapalha o sexo Ponto “Existe amor sem sexo, claro, mas nunca gozam juntos”, escreve. Mas será que essa afirmação é tão absoluta assim? Será que o prazer e o sentimento não se cruzam nunca? O corpo e a mente são feito água e óleo?

Em 9 de janeiro de 1822, o príncipe D. Pedro recusou as ordens da Coroa portuguesa para retornar a Lisboa, optando por permanecer no Brasil. Diante de milhares de populares, o nobre disse: "Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto. Digam ao povo que fico”.

A criadora do primeiro sex shop do mundo (Beate Uhse AG), a piloto de aviões e empreendedora alemã Beate UhseRotermund, acreditava no contrário. Para ela, “independentemente do aspecto sexual, é fundamental que ambos os parceiros compartilhem os mesmos interesses e desejos Caso contrário, a sexualidade morre em algum momento”.

Pausa para reflexão Ou não

Criada pela artista plástica Inés Zaragoza, a capa do disco Balacobaco reflete a diversidade em Rita Lee

Com a proposta de liberdade e descobrimento, o sex shop 100 Mistériio fica localizado no tradicional Mercado da Produção de Maceió, no bairro da Levada, que abriga a feira popular e o comércio de cereais e hortifrutigranjeiros

VAS VITRINES

Entre frutas e fantasias, o sex shop 100 Miistériio “movimenta” o Mercado da Produção de Maceió

Boa tarde! Qual o horário de atendimento?

Boa tarde. Estamos localizados no Mercado da Produção: Portão 10; Levada. Das 8h às 15h

estidos, calças jeans e camisas de time. Peixes frescos, ovos de codorna, salgadinhos industrializa-

dos, orelha de porco e galinhas depenadas

Corredores bastante movimentados, adultos comprando e crianças brincando, enquanto facas cortam a carne e o sangue molha o chão. Refrigerantes, Moranguinho, Maçã, Melancia e Melão

Portas roll-up, talvez de aço, que sobem e descem em cores variadas: amarelas, azuis, verdes e brancas. As do sex shop “100 Mistériio” são vermelhas Quem passa distraído pela vitrine, sem notar os seis manequins de lingerie, pode facilmente confundir a loja com qualquer outra do Mercado da Produção. A fachada sem nome, anônima, exibe um véu amarelo reluzente preso por grampos e que oculta o mundo que se desdobra lá dentro e que, tantas vezes, precisa permanecer nas sombras.

“Trabalho no ramo há uns quatro anos, só no boca a boca e WhatsApp. O Instagram eu criei faz pouco tempo. A loja física tem sete meses Num instante aconteceu, graças a Deus”, conta Jaqueline Mello, dona do sex shop no Mercado da Produção

Jaqueline Mello vem de uma família com longa tradição de comércio no Mercado da Produção “Fui criada aqui ”

Antes de abrir a loja – a primeira do ramo no local, vale destacar –, ela trabalhava como vendedora ambulante de produtos eróticos. Saía com uma mala pequena, levando apenas o que cabia e ia rumo ao mercado. “Na conversa, e de pouquinho em pouquinho, eu ia vendendo”, relembra. Debruçada sobre o balcão e enquanto acena com a cabeça em direção à porta, ela conta da incerteza que sentiu ao abrir a loja na região. “Ai… tem uma irmã aqui na frente que é evangélica. Ela é a minha destruição”, diz rindo.

O que, à primeira vista, soa como uma espécie de piada, na verdade revela de forma crua o preconceito que cerca a busca pelo prazer. Assim como o cantor e compositor Chico Buarque lamenta em sua música “As Vitrines” (1981) “Te avisei que a cidade era um vão. Não faz assim, não vai lá, não” a sociedade, com sua hostilidade, insiste em proteger o tradicional.

Composta por Chico Buarque, a música As Vitrines, lançada no álbum Almanaque, de 1981 (foto acima) transmite uma súplica marcada por carência misturada com insegurança Ao ver seu objeto amado ganhar o mundo, o eu lírico implora para a pessoa ficar a seu lado

Quando Jaqueline desabafa que alguém, movido pela religião, faz um “inferno” em sua vida, ela põe às claras a advertência velada para que mulheres não se aventurem no desconhecido, temendo que, ao descobrir o novo, possam não querer voltar “não vai lá”. É o eco de uma resistência à liberdade, camuflada por normas antigas, às vezes defendidas por mulheres também. Nesse sentido, a livre analogia à canção do Chico é uma forma de pensar como “ganhar o mundo” e fazer o que deseja pode ser algo ameaçador para muitos que não o fazem.

Na sua dissertação de mestrado, “Prazeres Pentecostais: negociando intimidades e artigos eróticos no Capão Redondo e Jardim Ângela”, a pesquisadora em gênero e sexualidade pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Maisa Fidalgo explica a relação de domínio associando mercado, sexualidade e religião “Eu vejo como há constrangimentos, como a necessidade de se vincular o prazer feminino ao bem-estar, como se o sexo fosse uma ginástica ou uma dieta (ou associado a ginástica e dieta). Mas há muitas fissuras: hoje, para muitas mulheres, falar sobre o próprio prazer é uma possibilidade mesmo quando ele é demonizado por discursos sociais diversos, por exemplo, os religiosos”. Ela destaca que utilizar ou não determinado prática, realizar ou não determinado ato, constituem os limites tênues que caracterizam disputas intensas entre fiéis e segmentos evangélicos sobre a legitimidade da fé e a disposição de seguir os caminhos bíblicos, uma vez que, de acordo com as escrituras, algumas práticas são consideradas “pecados mortais” “Tem um pessoal que não pode ver uma algema diferente na vitrine sem fazer um escândalo.

Já para não criar mais situações assim, eu coloquei os produtos mais ‘polêmicos’ mais escondidos Tinha muito medo no começo, algumas pessoas são perigosas”, reconhece Jaqueline Mello Com o sex shop já erguido, talvez o verdadeiro pecado fosse a ideia de que falar sobre o prazer feminino é uma transgressão que não deve ser confessada, um segredo que a sociedade insiste em silenciar Maisa Fidalgo destaca que essa representatividade e resiliência estão ligadas à luta de tantas mulheres, como a da Rita, cônica roqueira de cabelos vermelhos. Ao cantar sobre prazer, Rita Lee abriu portas para que inúmeras outras mulheres se sentissem no direito de também se expressar e sentir. “Se a Rita fala, se a Rita é, então eu também posso falar, eu também posso ser”, ressalta.

Enquanto se vira para pegar alguns vibradores no expositor dois pequenos, d l f t t

na cor rosa em formato de golfinho , a empresária conta um pouco acerca do perfil dos clientes “Vêm mais homens Já as mulheres têm vergonha e não entram. ‘Ah, porque vão me ver’, dizem Ou: ‘Ah, porque é um sex shop’, e aí não entram. Os homens não ligam pra isso”, revela. Ainda atrás do balcão, ela pede um dildo gigante (consolo utilizado para simular penetração) pintado com as cores do arco-íris e que estava em uma prateleira do outro lado da loja. Assim que o objeto é entregue em suas mãos, ela continua a conversa, manuseando-o com naturalidade. “Eles entram e já sabem o que querem Às vezes, pode até ser a mulher que pediu para o marido ou namorado vir. É interessante como acontece”, conta.

Os excitantes femininos, os lubrificantes com efeitos anestésicos, o energético natural, os sabonetes íntimos e os vibradores coloridos são o top5 dos produtos mais procurados pelos clientes no sex shop 100 Mistério

O receio que as mulheres têm de frequentar sex shops está profundamente enraizado em um conceito cultural que associa a mulher à ideia de compostura e ao homem o anseio, d vamente os sentidos. Esse xpresso no texto de Arnaldo afirma que “amor é mulher; o casamento perfeito é do go mesmo”, relacionando sticas a gêneros específicos. stumam se restringir mais ao al Enquanto na loja física o dominantemente masculino, e no Instagram a presença is clara. No mundo virtual, à vontade para explorar e utos. Em decorrência desse Jaqueline adquiriu outro zado nos fundos da loja e, nte, em um corredor pouco movimentado Tudo planejado para evitar os olhares que as mulheres poderiam enfrentar ao passar pelas vitrines.

INTENSIVÃO DE EDUCAÇÃO

SEXUAL E CHÁ DE LINGERIE

VOCÊ SABIA?

Em 1997, ocorreu a primeira feira de produtos eróticos no Brasil, com um público majoritariamente masculino (cerca de 95% do total). Contudo, em 2013, esse cenário mudou drasticamente, com 88% dos consumidores sendo mulheres.

A antropóloga Maria Filomena Gregori analisa essa transformação em seu livro “Prazeres Perigosos” Ela explica que, a partir dos anos 2000, os significados ligados às sex shops começaram a se modificar, influenciados por movimentos feministas e materiais midiáticos, como a série de televisão norte-americana Sex and The City (1998-2004).

Gregori cunhou o termo “erotismo politicamente correto” para descrever essa mudança de percepção, que deslocou a ideia da sexualidade como algo centrado na pornografia e na visão masculina para uma associação com o bem-estar, fortalecimento da autoestima e autoconhecimento.

“PARA MUITAS MULHERES,

FALAR SOBRE O PRÓPRIO

PRAZER É UMA POSSIBILIDADE

MESMO QUANDO DEMONIZADO

POR DISCURSOS SOCIAIS, COMO OS RELIGIOSOS”

MAISA FIDALGO

PESQUISADORA EM GÊNERO E SEXUALIDADE PELA UNICAMP

“Nesse outro estande, são duas portas de enrolar Aí eu vou abrir uma delas e deixar só para as pessoas entrarem mesmo. Vou colocar um varalzinho pregado no teto e deixar tudo pronto para quem quiser entrar pelo outro lado, já que nesse outro corredor quase não passa gente As mulheres vão conseguir entrar para comprar e conhecer mais”, diz Esse “conhecer mais” ao qual a Jaqueline se refere está relacionado ao “intensivão” de educação sexual que ela promove, como uma espécie de aula sobre tudo o que deveria ter sido aprendido ao longo da vida, mas feita em apenas uma tarde em certos casos, a conversa com as clientes se mantém por diversos dias ou até meses. Tudo para que elas se sintam compreendidas e passem a se abrir para as novas possibilidades

“Uma queixa que eu tenho de outros sex shops que só pensam em vender é que eles não dão esse suporte. As pessoas compram os produtos e não recebem uma orientação sobre como usar. Toda pessoa tem que se conhecer, tem que saber do que gosta Quando você goza a vida, vive melhor”, constata Jaqueline. Ela continua: “Eu gosto de chamar de consultoria, né? Porque tem um pessoal que acha que é só chegar e comprar, mas um produto que funciona para uma não vai funcionar, necessariamente, para outra. Se você estiver com alguma irritação na pele, por exemplo, não se recomenda usar nada que esquente. A gente conversando e quando a mulher se sente à vontade, ela vai contando sobre o que gosta e vemos juntas um produto que a-

tenda as expectativas”, conta Jaqueline, também especializada em “chá de lingerie”, celebração voltada para a noiva e suas madrinhas e na qual se presenteia com peças íntimas que podem ser usadas no dia do casamento ou na lua de mel

Apesar da interação com as mulheres, a proprietária comenta que esses momentos não se repetem com os clientes homens, que já chegam com algum produto em mente e decididos sobre o que vão comprar. “Com eles não têm muita conversa. Chegam falando ‘quero isso e aquilo’ e pronto As mulheres, apesar da vergonha, acabam sendo mais abertas para pensar nessa troca de experiência”, pontua. Enquanto guarda os produtos em seus devidos lugares, a empresária ressalta que nenhum dos itens está ali para substituir ninguém, mas sim para auxiliar na descoberta e no caminho para o prazer. “O meu marido, junto com os meus pais, é quem mais me apoia. Até porque antes de comprar em quantidade, eu preciso saber se o produto realmente funcio

mundo sai feliz”, diz gargalhando. E é essa parceria e apoio mútuo entre os parceiros que Beate Uhse-Rotermund tanto falava: o compartilhamento de interesses desafia a concepção de que amor e sexo são categorias opostas. A busca pelo prazer é fundamental, assim como o cultivo do sentimento romântico Quando esses dois elementos se entrelaçam, a experiência se torna ainda mais gratificante

No fim das contas, não há razão para polarizar o que pode coexistir tão naturalmente. E talvez, apenas talvez, essa ideia tenha estado presente o tempo todo na a canção de Rita, Roberto e Jabor, só precisava de um olhar mais aprofundado. Baseando-se na premissa proposta inicialmente por Arnaldo Jabor na sua crônica, eles oferecem uma letra que considera e reafirma os conceitos que parecem como opostos, mas é no título que encontram uma maneira implícita de expressar a conjunção adversativa “mas”. A música se chama “Amor e Sexo”, e não “Amor ou Sexo”.

MULHERES HISTÉRICAS

A jornalista Mariana Monteiro analisa a construção histórica da ideia de loucura feminina, destacando que, desde a Grécia Antiga, o homem é colocado como referência para entender o que significa ser mulher. Essa visão começou a ser questionada após a Revolução Francesa, que pregava igualdade entre cidadãos e enfraqueceu a noção de inferioridade feminina “Na medicalização do feminino, qualquer mulher que ousasse sair do papel de dona de casa/mãe seria uma anomalia e considerada doente pelos médicos da época – das histéricas às que viviam sua sexualidade em busca de prazer”, explica Mariana.

Além de ser dona do primeiro sex shop, a alemã Beate Uhse-Rotermund também era conhecida por oferecer orientações sobre sexo e métodos anticoncepcionais, cultivando uma relação próxima com suas clientes

E é com essa reflexão que encerramos o nosso texto: os dois conceitos podem até existir separadamente, mas acabam por ser melhores juntos Não há nada de errado em coexistir, assim como o sex shop 100 Mistériio se mantém firme em um local tão tradicional quanto o Mercado da Produção. Um vendendo roupa; o outro, prazer. O medo do novo e a necessidade de dividir não levam ninguém a lugar algum. A novidade sempre chega e, em meio a essa jornada, abre-se um espaço para a liberdade e a exploração dos desejos. Trata-se do direito inalienável de se descobrir e se reinventar. (MCC e JL)

“AMOR É ISSO, SEXO É AQUILO

RITA LEE, ROBERTO DE CARVALHO

E ARNALDO JABOR

NA CANÇÃO “AMOR E SEXO”

PAIXÕES IDEAIS: O AMOR COMO UM DESEJO

As perspectivas de relacionamentos idealizados e as interpretações do desejo a partir da visão psicológica das relações amorosas

Por Isadora Noia e Sinval Autran

Imagine se apaixonar por alguém que vive há milhares de quilômetros de você, e como se não bastasse, criar ....... uma história de amor, a mais detalhada possível acreditando fielmente que aquilo poderia se tornar realidade Parece uma história inventada, não é mesmo? Pois fique sabendo que isso realmente acontece!

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Juliana Tavares tinha apenas 15 anos quando começou a acompanhar um tenista que se destacava no esporte por ser um dos atletas mais jovens a competir na Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), o grego Stefanos Tsitsipas. Interessada, Juliana não só o seguiu na rede social do Instagram, como também passou a assistir a todos os jo-

gos do atleta, acompanhando a sua vida pessoal e profissional. Ela só não esperava que esse interesse evoluiria para algo um pouco mais sério. Conforme o passar do tempo, um sentimento complexo se materializava e a fertilidade de sua imaginação, não por coincidência, levou-a até o distrito de Monte Carlo, em Mônaco, a pequena cidade-estado europeia situada na costa do Mediterrâneo onde o tenista vive “Eu já tinha idealizado como seria a minha jornada até chegar a Mônaco. Como eu conseguiria estudar e trabalhar por lá para conhecer o Stefanos. Eu sabia até o lugar que iria morar, depois do nosso casamento Me apaixonei não só por ele, mas também pelo estilo de vida que idealizei e que eu levaria no futuro”, conta Juliana.

No vasto universo das emoções humanas a idealização de relacion conceito que atinge inúm todas as faixas etárias. Se existir um amor que relacionamento romântic profundo e emocionalm Para muitos indivíduos, s é uma realidade presente Em vez de um relacion romântico, esse tipo de por meio de uma forte ad pessoa, muitas vezes de fo

“EU IDEALIZEI TUDO O QUE EU IRIA FAZER POR NÓS, SENDO QUE ESTE ‘NÓS’ NEM EXISTIA.”
JULIANA TAVARES ESTUDANTE

ou imaginária. Portanto, esse tipo de sensação consiste em um sentimento profundo e irreal que não se concretiza em um romance ou em relações físicas.

Stefanos Tsitsipas não fazia ideia do amor que Juliana sentia por ele, nem das expectativas projetadas pela adolescente sobre um possível (ou impossível) futuro que envolvesse os dois Nos pensamentos da estudante, seu caminho até chegar a Mônaco, onde seria a sua “futura casa”, e iniciar um relacionamento com o tenista já era certo, mesmo que esse acontecimento fosse improvável, não por conta de fatores lógicos, como a idade e a distância, mas pelo simples fato de não haver um amor concreto. “Ele não sabia o quanto eu o amava, a vida que eu idealizei junto a ele e tudo que eu iria fazer por nós sendo que liana.

INDÚSTRIA DO FANATISMO

“Descobrir como é ser fã foi algo muito novo para mim, com muitos pontos positivos e negativos. Só alguém que é fã entende como esse amor ocupa um ese paço enorme na nossa vida”, reconhece. Mesmo optando por manter o anonimato, Luís B , com como prefere ser chamado –topou falar com a Fora da Caixa sobre a sua idealização sentimental, bem como sua experiência vivenciada com o fanatismo. “Nunca esperei

Juliana Tavares lembra de sua paixão pelo tenista grego Stefanos Tsitsipas de maneira bem-humorada Foto: Juliana Tavares/Acervo pessoal

vivenciar nada disso”.

A existência de relacionamentos não concretos ou que apenas se encontram na imaginação é frequentemente observada na relação entre fã e ídolo. Isso ocorre por conta fenômeno social de identificação Quanto mais você se identifica com alguém considerado famoso, a necessidade de estar mais próximo começa a aparecer Essa realidade tem sido cada vez mais constatada no universo do pop sul-coreano, ou K-pop para os mais íntimos, e foi justamente nesse ambiente que Luís B. conservou uma paixão por Soobin líder do grupo TXT (Tomorrow X Together). “Eu amo todos os membros do TXT, mas com o tempo desenvolvi um carinho maior pelo Soobin, líder do grupo, por quem sinto um amor unilateral que jamais será correspondido. Eu sempre procuro por qualquer coisa relacionada ao Soobin para me sentir melhor, como se fosse uma pessoa próxima e muito querida que eu chamo quando estou passando por um momento difícil”, reconhece Luís.

O fanatismo tem raízes semânticas atreladas à devoção e à adoração de diversos deuses. O indivíduo fanático desconsidera a opinião alheia e qualquer outra colocação que vá de encontro com os seus princípios. Mas, como a definição de fanatismo pode estar associada à idealização de um relacionamento? Mais do que isso, como um indivíduo fanático, a exemplo de Luís, lida com sentimentos que ultrapassam a admiração e se tornam uma paixão?

Segundo ele, a paixão pelo líder do TXT se manifesta, principalmente, nos momentos delicados de sua vida. Apesar da distância ou

da falta de contato pessoal, Soobin existe em sua vida como uma figura que passa segurança, fazendo-se presente em momentos difíceis. “Começou apenas como uma admiração e foi crescendo até se tornar dependência emocional. Foi daí que surgiu essa idealização Quando menos percebi, eu já estava imaginando como seria tê-lo fisicamente do meu lado”, expõe Luís.

Na indústria musical, sobretudo no universo do pop sul-coreano, a figura do ídolo é moldada de modo a criar uma imagem de alguém perfeito. Nesse sentido, as músicas não são o único produto vendido pela indústria, a performance do artista também passa a fazer parte desse ambiente A imagem criada por essa atmosfera tem o objetivo de cativar os fãs de diversas maneiras. Uma delas é por meio da idealização que pode evoluir para uma dependência emocional Dessa maneira, a paixão desenvolvida pelos fãs não necessariamente se refere ao artista e, sim, à sua performance.

Apesar de Luís idealizar a imagem de Soobin como alguém perfeito, ele reconhece que aquela figura pode não ser real e confessa um certo temor. “Eu vivo em uma eterna aflição com a possibilidade do Soobin fazer alguma coisa errada e me decepcionar algum dia, porque essa idealiza ção que tenho dele pode não ser verdadeira e no fim eu posso estar confiando em um personagem”

Luís B conheceu o Tomorrow X Together em 2022 e sua paixão por Soobin (foto ao lado), líder do grupo, manifestou-se após um ano

A concepção de fanatismo que desemboca na idealização de um relacionamento implica em questões psicológicas profundas Segundo a perspectiva pessoal de Luís, o sentimento construído por Soobin se baseia na sensação de conforto e felicidade, algo que não pode ser descrito como positivo nem negativo, visto que a sua paixão é fruto da indústria musical. “Eu não trocaria ser fã do Soobin e de todo o TXT por nada no mundo, é algo que sei como é forte dentro de mim e ter alguém para admirar e me orgulhar é a melhor coisa que existe”, conclui Luís.

O AMOR DO MUNDO DAS IDEIAS

A idealização dos relacionamentos, bastante comum na construção dos sonhos amorosos, encontra na psicologia terreno fértil para a compreensão e análise. Desde o início das civilizações humanas, o amor foi moldado por narrativas que exaltam a paixão ideal, um estado de graça que transforma o cotidiano em poesia. No entanto, essa visão muitas vezes distorcida, alimentada por contos de fadas e romantização da mídia, esconde a complexidade das relações. A psicologia alerta sobre a idealização romântica. Isso ocorre a partir do momento em que o sujeito projeta as suas expectativas em outra pessoa, criando uma forma de adoração que, embora possa soar pura à primeira vista, frequentemente se distancia da realidade.

Para a psicóloga Agna Ariane, especialista em relacionamentos e sexualidade, a idealização de uma relação refere-se a uma conexão emocional ou espiritual, sem envolvimento físico e sexual É um amor que só há nas ideias, ou seja, quase perfeito.

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A psicóloga Agna Ariane diz que a idealização de um relacionamento pode trazer tanto desenvolvimento emocional, motivações e autoconhecimento quanto expectativas fictícias, desilusões, isolamento, ansiedade e frustração

“Para a psicologia moderna, essa idealização é compreendida como um relacionamento íntimo e significativo, no qual o afeto é profundo, mas sem necessidade de contato físico e sexual Pode ocorrer com amizades mais próximas, em que existe um vínculo forte, sem desejo romântico Porém, quando idealizado excessivamente, pode levar a frustração, criando uma desconexão com a realidade”, afirma Agna.

No cerne desse fenômeno emocional, está a busca por um ideal que raramente se concretiza As relações, por sua natureza, são imperfeitas e exigem esforço, comunicação e comprometimento. A psicologia ensina que o amor verdadeiro não reside na perfeição, mas na aceitação das falhas e na construção conjunta de um espaço onde ambos possam crescer.

Agna explica que esse tipo de amor pode ocorrer em várias fases da vida e em diferentes contextos, mas, devido às grandes mudanças e início da formação de uma identidade, está mais propenso a aparecer durante a adolescência e o início da fase adulta. A juventude é considerada uma fase de exploração emocional e desenvolvimento pessoal, em que os jovens estão aprendendo a lidar com os novos sentimentos e constru-

gna Ariane/ rvo pessoal

indo suas identidades. Tudo isso num contexto em que a idealização e a conexão espiritual ou emocional são mais acessíveis do que as relações físicas.

Para reforçar esses conceitos, a psicóloga faz questão de relembrar em seus atendimentos clínicos que essa idealização pode trazer tanto resultados positivos quanto negativos. Positivamente, pode gerar fortalecimento e desenvolvimento emocional, inspirações, motivações e autoconhecimento Porém, de forma negativa, pode levar à idealização irrealista, ocasionando expectativas fictícias e desilusões, as quais podem impulsionar para o isolamento social e o evitamento a interações reais A incapacidade de se concretizar ou expressar o amor pode gerar sentimentos de frustração, ansiedade e autoestima baixa.

Juliana Tavares, que idealizava o seu futuro vivendo em Mônaco com o tenista grego Stefanos Tsitsipas, descreve sua experiência como positiva e amadurecedora, afirmando contribuir para a produção do seu próprio conhecimento sobre o mundo, pessoas, histórias e lugares. “Eu não me arrependo, nem acho vergonhoso Na verdade, eu acho fofo. Vejo apenas uma adolescente de 15 anos apaixonada e que criou coisas na cabeça Na minha opinião, foi uma época muito bem vivida, até porque eu compartilhava isso com os meus amigos e a gente ria bastante. Nunca me trouxe nenhum dano”, conclui a estudante.

No entanto, como aponta a psicóloga, essa experiência também pode ter consequências negativas, como a vivenciada pela estudante Larah Reis, 20 anos. Ela ainda era adolescen-

te, quando começou a construir uma amizade com um colega de turma Amizade que evoluiria para uma paixão cultivada de maneira inconsciente. À medida que os dois se aproximavam, Larah idealizava um relacionamento com o garoto, que não correspondia da mesma maneira Tendo isso em mente, a jovem começou a internalizar a situação e a se culpabilizar pelo sentimento não correspondido

DANÇA DE LUZ E SOMBRA

“Eu me comparava com as meninas pelas quais ele demonstrava algum tipo de interesse. Achava que ele não me queria porque eu não era magra o bastante, e isso me fez sentir inferior durante um tempo”, relembra. A situação experienciada por Larah reflete a perspectiva citada pela psicóloga a respeito das frustrações que podem acontecer com um relacionamento que ocasionalmente não se concretiza, não por culpa do objeto desejado nem do indivíduo que o deseja, mas pelas condições que existem entre as partes. No caso da jovem, o seu sentimento foi externalizado, porém a falta de correspondência foi o motivo pelo qual suas frustrações vieram à tona, o que ocasionou na sua baixa autoestima e insatisfações internas.

Ao desmistificar o amor idealizado, a psicologia nos convida a repensar os nossos anseios. O verdadeiro amor, longe de ser um conto de fadas, é uma dança complexa de luz e sombra e um caminho que exige coragem para amar e ser amado com todas as suas nuances Esse entendimento torna os relacionamentos mais autênticos, nos quais a vulnerabilidade se transforma em força e a conexão mais profunda

IDEALIZAÇÃO OU AMOR PLATÔNICO?

A interpretação distorcida do sentimento amoroso a partir da contextualização filosófica do pensamento de Platão como álibi do desejo

No imaginário popular, o “amor platônico” é associado a história de uma paixão não correspondida, em

que uma pessoa nutre um carinho profundo por outra, mas sem a esperança de que esse afeto se traduza em algo físico. É o amor que vive nas páginas dos livros e nas canções, um sentimento que pode ser tanto doloroso quanto belo, pois carrega consigo a nostalgia do que poderia ser

Nesse espaço etéreo, o amor platônico é, acima de tudo, uma celebração da essência do outro, no qual o foco está na alma e não no corpo, na intimidade emocional e não nas carícias. Esse amor seria justamente aquele vivenciado por Juliana, Luís e Larah, com as suas respectivas experiências, descrito pela psicóloga Agna Ariane como um sentimento que não envolve a interação física e sexual, sendo pura idealização.

Porém, se dissermos que um amor platônico não é bem isso que você está pensando nem aquilo que Juliana Tavares, Luís B. e Larah Reis vivenciaram? Pode parecer confuso, mas a originalidade do conceito de amor platônico é diferente daquela que se espera. Advindo da filosofia de Platão, mais especifinquete”, es-

As obras de Platão foram interpretadas de diferentes maneiras, descontextualizando o verdadeiro significado de amor platônico

Foto: Leonidas Drosis/Wikimedia Commons

sumação física, mas se manifesta em uma conexão profunda e espiritual entre indivíduos. Este amor transcende o desejo carnal, explorando a conexão emocional e intelectual que muitas vezes define as relações mais significativas e duradouras.

O termo “amor platônico” foi utilizado pela primeira vez pelo filósofo neoplatônico florentino Marsilio Ficino, no século XV. O conceito foi se perdendo ao longo do tempo até chegar ao que conhecemos hoje O professor, pesquisador e autor do livro “Platão contra o Amor Platônico”, Juliano Caram, docente da Universidade Federal da Fronteira Sul, em Santa Catarina, com pesquisa voltada à filosofia antiga, ressalta os dualismos criados a partir desse termo. “Quando falamos em amor platônico, há a ideia de uma idealização do amor. Isso se deve, em grande parte, à forma como Platão

O BANQUETE

O Banquete é um diálogo de Platão que aborda temas como amor e amizade. A obra foi escrita entre 385 a C e 380 a C , sendo ambientada em um jantar oferecido pelo poeta Agatão em Atenas. O diálogo se caracteriza por uma competição na qual se deveriam fazer discursos elogiando Eros, o deus do amor Entre esses presentes, estão Sócrates, Aristófanes, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Agatão e Alcibíades.

do cristianismo, diz o professor da UFFS Juliano Caram

foi interpretado ao longo da história, especialmente no início do cristianismo. Houve uma leitura dualista de sua obra, separando razão e paixões, corpo e alma, e idealizando o amor como algo contrário ao amor terreno, carnal”, explica o professor

Por meio de uma investigação profunda da obra O Banquete de Platão, Juliano elucida a relação presente entre o amor e o desejo, identificando se o filósofo realmente estipulava essa dualidade. Na perspectiva de Caram, a discussão sobre o amor se faz presente na obra como uma relação que envolve tanto o corpo quanto a racionalidade “Meu objetivo era mostrar que Platão não via o amor como algo puramente idealizado, mas como algo que começava na dimensão física para, eventualmente, chegar ao conhecimento do belo em si” O professor esclarece que há duas palavras em grego essenciais para entender o amor na obra do filósofo: Eros e Epithymia. O termo Eros – deus do amor na

itologia grega – está relacionado ao amor erótico, que hoje é associado ao aspecto físico e sexual No entanto, para Platão, a construção imaginária de Eros também estaria associada a uma dimensão de intimidade intelectual. Já Epithymia se manifesta no desejo em geral, tudo aquilo que está ligado às paixões

Em sua obra, Platão entende que o desejo está intrinsecamente ligado à jornada filosófica pela busca do conhecimento. Portanto, o amor é uma forma de desejo, mas não limitado ao físico. “Platão desmistifica Eros ao longo do ‘Banquete’ Ele transforma a ideia sobre Eros de um deus para uma paixão humana, sugerindo que, se Eros deseja, ele não pode ser um deus, pois os deuses são completos e não precisam de nada”, elabora Caram

O professor complementa que, socialmente, as relações amorosas transmitem a ideia de completude ou algo fechado apenas às duas partes envolvidas, porém Platão sugere algo um pouco diferente. O filósofo, ao longo da obra defende que o amor não é o desejo de encontrar a “outra metade da laranja”. Nesse sentido, o amor platônico pode ser descrito como aquilo que justamente dá sentido à vida e preenche o indivíduo de maneira duradoura, na medida que o conhecimento não é passageiro, em contraste com a beleza física. Assim, enxergar o amor como completude pode ser

O famoso Cupido para os romanos, Eros era conhecido pela mitologia grega como deus do amor e do desejo sexual, simbolizando o controle das paixões humanas Foto: Decorar com Arte

A idealização do amor se deve à forma como Platão foi interpretado ao longo da história, sobretudo no começo

uma armadilha do intelecto, ocasionando em tragédias, como sugere o professor. “Ao idealizarmos o amor como algo que completa, caímos em um ciclo de consumo. Esse amor de consumo, no qual a pessoa é vista como um objeto a ser possuído, pode levar a tragédias. Feminicídios e outras violências podem ocorrer quando alguém acredita que não pode viver sem a outra pessoa”, exemplifica

“PLATÃO

CONTRA O AMOR PLATÔNICO”

As várias interpretações de “O Banquete”, de Platão, como explicou Juliano Caram, ao longo do tempo, apontaram para uma noção equivocada da utilização do termo Qualquer pessoa que já tenha ouvido falar em amor platônico dirá que se trata de uma idealização inalcançável. Mas, quais foram as condições para que esse equívoco se mantivesse de maneira tão solene? Para o autor do livro “Platão contra o Amor Platônico”, as modificações de sentido foram absorvidas de maneira errônea com o tempo. “A imagem do amor platônico começou a sofrer uma certa interpretação para além do texto de Platão no final da era pré-cristã e no começo da era cristã Muitas interpretações equivocadas dos textos se baseavam na conversão do platonismo em cristianismo, como Agostinho”, afirma

O professor da UFFS também atribuiu a mudança de conceito inicial aos dualismos estabelecidos por diversos autores ao se referir às obras de Platão. Muitos deles estabeleceram uma contraposição radical entre algumas terminologias citadas pelo filósofo, como: razão e paixão, alma e corpo, e amor idealizado e amor físico Essas instâncias foram interpretadas como se não dialogassem entre si, quando, na verdade, estão intrinsecamente conectadas. Para os gregos antigos, datados do período entre os séculos IV e VI a.C., a ideia de um “amor não correspondido” ou “não recíproco” não existia Para que um amor se concretize, é necessário haver reciprocidade.

Segundo Juliano Caram, o título de sua obra “Platão Contra o Amor Platônico” foi justamente uma maneira de mostrar que, se formos investigar algum conceito filosófico, é necessário procurar pelas fontes e não se basear apenas em interpretações. “Se quiserem entender Platão realmente, leiam e verifiquem se a minha interpretação é válida Eu quis fazer esse movimento de ir às origens e analisar o que ele nos permite dizer sobre o amor, tanto físico quanto não físico É evidente que essas dimensões não são excludentes e que o amor idealizado que entendemos na contemporaneidade como amor platônico são interpretações do texto do filósofo e matemático grego”. (IN e SA)

Depois do jantar (banquete) os homens se reuniam para debater certo tema enquanto bebiam vinho, momento conhecido como simpósio

UM DIÁRIO MASCULINO ENCONTRADO NAS CAIXAS DA SUA CASA

Um relato introspectivo sobre ser homem e amar como um

Por João Paulo Santos

Os diários são p engraçados, Escrevemos neles como se fossem confissões ao vento e deleites profundos; histórias que ficarão guardadas para nós e que nunca serão lidas por outros. Para o “eu” que ler isso no futuro, fique sabendo que tenho um motivo para escrever este diário: não é para falar do meu dia a dia, muito menos para contar apenas sobre minha vida. O motivo é uma crise existencial, uma tentativa de descobrir e entender como “eu”, sendo homem, amo.

Não sei bem como “eu” vou estar quando ler isso aqui, então um contexto cai bem. Vai que estou lendo isso no auge dos meus 60 anos. Quando pequeno, passei parte da

Cresci vendo os homens se expressarem sempre da mesma forma, então, como toda criança, fui lá e copiei Eu, pelo menos, nunca vi um homem da minha família chorar ou ser vulnerável; os únicos choros que vi foram de felicidade. Lembro de ver os homens sempre sendo frios, e o máximo que eles expressavam era raiva. Os homens vivem um estoicismo emocional, Bell Hooks, teórica feminista, sabe bem do que fala. Vendo que ninguém parecia sentir muito, pensei que deveria fazer o mesmo, e, assim, ganhei um apelido que ficou na minha cabeça para sempre: “psicopata”.

No patriarcado, quanto mais antissocial e menos você expressa sentimentos, mais “homem” você é, então, eu deveria ser a própria definição Meu rosto sempre à paisana, mesmo quando eu estava prestes a explodir de dor, talvez seja um problema que os gatos têm Apesar de tudo isso, recebi esse apelido em um retiro religioso masculino, e lembro bem que passei todos os quatro dias sem chorar. Mas todo mundo explode, todo mundo sente, não é? Lembro de explodir, de, ao me chamarem assim no último dia, chorar, mas chorar tanto que eu soluçava, eu gritava, porque eu queria que eles percebessem que eu também sentia. Nesse dia, quando todos me abraçaram, acolheram-me e pediram desculpas, eu senti, de fato, o amor que homens podem dar

Depois daquele dia, criei para mim uma lei: “homem que é homem expressa o que sente e, o mais importante, sente”. Isso aí,

obviamente, vem das minhas ideias infantis. Eu era apenas um gatinho chegando à adolescência, no mundo de homens tão estranhos e agressivos. É sempre muito engraçado Eu pensava que homem faz isso, faz aquilo, mas eu nem definia o que era ser homem, e muito menos sei definir isso agora. Bom, o “eu” do futuro deve saber, espero

Apesar de pensar assim, dificilmente eu conseguia agir de acordo com esses preceitos. A primeira vez em que vivemos algo parecido com um romance sempre fica marcada na nossa memória, e eu lembro bem da minha. Quando adolescente, conheci uma garota numa festa de um amigo.

Não vou me aprofundar nos detalhes, porque aquele dia passou tão rápido ao lado dela que mal consigo me lembrar das pequenas coisas, mas o rosto dela, isso eu lembro No final, estávamos lá nos olhando e conversando de uma forma tão íntima que eu conseguia sentir o calor de um dia cansativo transmitido dos olhos dela para os meus. Eu poderia contar essa história de forma romântica, mas ela termina de um jeito engraçado e trágico. Ela olhou fundo nos meus olhos e disse: “Eu gosto de você” E eu... travei.

É difícil explicar o quanto eu não consegui lidar com nada que envolvesse sentimento Falar parece fácil, mas, na hora, as palavras simplesmente não saem. Essa experiência foi estranha, não só pelo momento em si, mas também pelo que veio depois E queria conversar com alguém sobre isso, mas sempre me senti errado em buscar esse tipo de apoio. Não queria parecer frágil diante da minha família, e, quando desabafava com um amigo, só ouvia o clássico: “é complicado, cara” Cresci sabe do que precisava expressar o q sinto, mas sem nunca realmen entender como deveria fazer i so. Quando cheguei aos 18 anos, eu me sentia deslocado das identidades masculinas tradicionais. Sempre go bastante do universo q cercava as mulheres. V

Gênero é uma identidade e uma experiência individual e única, de acordo com a psicóloga especializada em sexualidade Jéssica Oliveira

cê pode achar que é porque sou um gato em meio aos homens, mas eu ainda sou homem. Lembro o quão transformador foi ver uma drag queen pela primeira vez.

Perceber que dentro de toda masculinidade existe uma parte feminina foi mágico. Aos poucos, fui aceitando meu lado feminino e, embora me sentisse mais perdido do que nunca, fiquei feliz por isso Em um dos meus sonhos mais estranhos, encontrei Bastet, a deusa egípcia da fertilidade, da reprodução, da dança e da música, e desde então tento guiar minha vida inspirando-se nela, buscando me tornar semelhante a essa divindade representada por uma gata com corpo humano e cabeça de felina também ligada ao amor.

Sabe, desde pequeno, eu cresci com o sonho de ser pai. Acho que era uma forma de inspiração da minha mãe; eu não podia ser uma mãe, mas podia ser pai e talvez suprir aquilo que nunca tive. Não sei se é comum, mas sempre fui um filósofo mirim, sempre divagando sobre conceitos. Então eu desejava ter um conceito de paternidade É engraçado isto e parece bobo para muitos, mas um desenho como One Piece foi o que me fez sentir tudo que eu sempre quis: ter uma figura paterna. Não quero fazer você que está lendo se perder nesse processo, mas nessa série de mangá escrita e ilustrada por Eiichiro Oda tem um personagem chamado Barba Branca, que é um pai adotivo de vários personagens. Nele, eu vi algo: foi a primeira vez que, de fato, enxerguei um homem, apesar de ser algo ficcional. Sabe, eu quero ser assim, um homem que ama sem medo de se ferir e nunca foge. Eu quero ser uma junção de feminilidade e masculini-

dade, ao mesmo tempo que uma deusa do amor meio gato meio humano, um pai.

Hoje fui à terapia, e achei interessante o que surgiu nas conversas e respostas Gostaria de registrar isso aqui, pois acredito que será importante para meu “outro eu” mais maduro ler no futuro

VOCÊESTÁCONECTADO CONSIGOMESMO?

Não sei como o meu “eu” que está lendo lida com a terapia, mas, para mim, ela é um processo de introspecção no qual coloco todas as minhas crises e vou encontrando as respostas sozinho, enquanto a terapeuta apenas observa, divertindo-se com mais um “perdido” no mundo que busca se encontrar.

O nome da minha psicóloga é Jéssica

Oliveira. Ela é uma pessoa agradável aos olhos, paciente e organizada É formada em terapia cognitivo-comportamental, terapia do esquema, terapia sexual e possui especialização em sexualidade humana. Esse processo de terapia sempre me impressiona. Ela chega, pergunta "como você está?" e tudo começa a fluir como se eu estivesse abrindo um papiro antigo que já nem parece me pertencer, mas, quanto mais leio, mais me sinto conectado a ele.

Não quero fazer você, que está lendo no futuro, perder tempo, então vou direto ao ponto. Expliquei a ela sobre a crise existencial que tive e contei o que fiz Conversei com diversas pessoas, que, com as suas diferentes ideias, acabaram me deixan-

do ainda mais perdidos.

Eu sempre amei muito a arte, então para mim, o primeiro lugar a qual fui buscar respostas foi na arte. Sururus é uma banda que eu participo. Lá conheci pessoas muito diferentes, e redescobri o mundo de pessoas que já amava

Os integrantes com quem conversei foram Eduardo Macedo (baterista, mas toca tudo o que o homem criou), um ser inacreditável. Se me permitirem soltar as palavras e desprender-me do valor da modéstia, ele é a pessoa mais criativa com quem tive contato, um exímio artista. Pedro Leite (cantor e praticamente um produtor também) é muito inteligente, além de ser alguém que nasceu para a arte; ele é um ser que se permite existir na vida de forma plena Enzo Fon (guitarrista e que, às vezes, rouba meu baixo) é uma pessoa que, apesar de ser o mais novo, tem sabedoria de alguém mais maduro e a energia de um jovem.

Como todo artista que se consagra, vive bem e é alguém com quem é maravilhoso ter uma conversa filosófica de madrugada. Apesar disso, vale dizer que Matheus Alves (guitarrista) não estava presente na conversa, mas se encontrarem com ele, podem chamá-lo de anão

“Amor só é bom quando dói”, para Eduardo Macêdo, integrante da banda Sururus

EDUARDO
ANÃO
PEDRO
FON
EDUARDO

Eu conversei com eles sobre várias coisas e falei sobre isso com minha terapeuta Pedro opinou que ser homem é um papel social, uma performance, mas que “a definição de uma pessoa não deve ser feita apenas com base nesse papel, mas, sim, na forma como ela se identifica verdadeiramente”. Ao falar sobre isso, ele mencionou o filme Noriko’s Dinner Table, em que cada membro da família tem um papel específico, mas a mensagem é que não precisamos ficar presos a papéis designados a nós.

Jéssica então falou: “Gênero é uma identidade que vai além de como você nasce Seria a sua identidade, sua experiência individual e única. Papéis, comportamentos e expectativas sociais de como você se percebe Então, me percebo masculino, feminino, me percebo não binário, me identifico com mais de um gênero. Essa é uma experiência muito individual e particular”, explica a psicóloga. Ela percebeu que, ao contar sobre isso, era preciso entender melhor o conceito.

Sobre esse tópico, todos concordavam no aspecto livre de se identificar. No fim, todos têm o direito de procurar e achar a forma que considerarem mais próxima de si mesmos A conversa foi caminhando para o tópico de estilo, forma de se vestir e performar Foi incrível ver como eles viam isso. Fon disse que vestia o que queria, da forma que queria, que não se prendia a rótulos e que, para ele, isso era libertador, mas que entendia a importância de levantar uma bandeira de resistência Pedro, porém, falou como sua performance como homem era homofóbica, pois tinha medo de não ser visto como “macho” Isso é interessante,

pois o autor Michael Kaufman fala sobre isso em seu texto “A Produção Simultânea de Masculinidades Hegemônicas e Subalternas”, abordando como os homens constroem sua identidade masculina a partir do outro, de forma opressora em relação a esse outro. Nesse sentido, o homem precisa constituir sua masculinidade em relação ao que não é, oprimindo a mulher (desigualdade social) ou então exercendo opressão sobre outros homens, por exemplo, de forma sexual, etnicidade e idade.

Eduardo falou sobre sua experiência com isso Como ele cresceu em um ambiente machista, sentia muita insegurança e medo de se expressar: “Comecei a deixar o cabelo crescer, a pintar as unhas e a fazer outras coisas que não eram aceitas onde eu cresci. Isso gerou conflitos sérios com meus pais e um grande medo de me expressar”, disse. É interessante ver o impacto da internet na construção de nossas identidades Como Eduardo não via essas expressões em casa, mas as via online, ele encontrou mais de si fora de casa do que em casa. Para complementar, Pedro mencionou o filme “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, drama de 2016 dirigido por Barry Jenkins e ganhador do Oscar de Melhor Filme no ano seguinte

“Ele retrata a luta interna e a busca por identidade de maneira tão genuína. Isso me fez refletir sobre como, muitas vezes, tentamos manter uma imagem de força, mas, na verdade, estamos lidando com muitas fragilidades que não permitimos que sejam vistas”, acrescenta Eduardo Macedo. Depois de um diálogo sobre identidades, conversamos sobre amor de fato

“AMOR É AMOR, AMOR É

VIDA, NÉ?”, DISSE O ENTREGADOR DA PIZZA

Para Fon, o amor era algo com múltiplas perspectivas, que ele refletia bastante, já que o amor possui diversas facetas. “Esse amor desprovido de posse, que é mais sobre compreensão e respeito pelo próximo, é, para mim, o mais valioso”. Para Eduardo, o amor é quando você se importa profundamente com alguém, quase como se a pessoa fosse parte de você. Já para Pedro, é sobre amar a essência de alguém

Enquanto falávamos sobre isso, tínhamos pedido uma pizza No meio da conversa, trocamos algumas palavras com o entregador, e ele nos disse uma frase linda: “Amar é vida”

Quando contei isso na terapia, Jéssica falou sobre como o amor é uma experiência subjetiva, ou seja, cada pessoa sente e expressa de uma forma única Isso me despertou curiosidade, então perguntei aos meus amigos como eles expressavam o amor. “Tenho vergonha e problemas em mostrar meu amor. Quando amo alguém, fico extremamente focado nessa pessoa, mas, mesmo assim, não demonstro, porque temo ser rejeitado”, disse Pedro Eduardo falou sobre sua experiência familiar: como ele não se lembra de seu pai dizendo que o ama, sente dificuldade em expressar seus sentimentos. “Um exemplo pessoal é que, várias vezes, quando estou só com meu irmão em casa e ele está acordado, tenho vontade de lhe dizer ‘boa noite’ Mas acabo não falando, porque há um bloqueio na minha mente que me impede”, completou.

Isso me lembrou de um texto do sociólogo

Victor Seidler que fala sobre como o homem é construído na sociedade capitalista a partir de uma ótica da ética do trabalho, na qual somos moldados para sermos racionais e suprimir nossas emoções e formas de expressão emocional. Quando mencionei isso para Jéssica, ela disse que essa repressão pode afastar o homem do que ele realmente sente, de suas necessidades, e que isso é algo perigoso.

Por fim, conversamos sobre arte. Falamos sobre como a arte e o amor estão interligados, sendo, para nós, a maior forma de expressão possível. Percebemos que a chave é ser verdadeiro consigo mesmo. Como Pedro mencionou: “Você está conectado consigo mesmo? Com quem você está conectado? Com sua família? É isso que eu quero dizer: você está conectado consigo mesmo?”

ELUCIDAÇÕESSOBREA ARTEDEAMAR

Depois daquele dia com a banda, o tempo passou, e comecei a entender e ver conceitos bem diferentes sobre a realidade. No entanto, ainda me sentia com dúvidas sobre o amor. Compreendia a importância da arte e da liberdade identitária, mas queria saber como era amar. Lembrei de um amigo de longa data, alguém com quem não conversava há muito tempo, mas que sempre foi assertivo em sua forma de expressar afeto. Decidi então falar com ele.

Rodrigo Rebouças tem 21 anos, é arquiteto e urbanista, além de professor de inglês e

designer de interiores. Marcos Mendonça tem 42 anos, é veterinário e professor universitário Eles são um casal, e achei que, entre todos que conheço, seriam os melhores para falar sobre amor romântico e masculinidade, pois pertencem a gerações diferentes.

Como todos com quem conversei, eu queria saber: “O que é ser homem?” Marcos respondeu: “Ser homem é você se sentir homem”. Gostei dessa resposta e senti que ela me contemplava completamente. “Ser homem é ser honesto, é ser decente, é ser um ser humano confiável”, acrescentou

Ele disse algo que resume bem como vê o mundo: “É preciso ter coragem para desagradar. Eu acho que isso é uma coisa que nunca deixará de ser parte da minha essência como homem, porque faz parte da vida essa luta. Essa é uma luta diária de se desvincular da pressão”

O veterinário Marcos Mendonça (à esquerda nas fotos) e o arquiteto Rodrigo Rebouças (à direita nas fotos), super fofos ♡, são um casal, pertencem a gerações diferentes e tem impressões particulares sobre a pressão de ser homem

Sempre senti essa pressão para me encaixar, como mencionei anteriormente. Portanto, quando ouvi Rodrigo dizer que não sentia essa pressão, senti admiração. “Eu acho que não sinto pressão para nada Nada que seja externo, assim. Nada que venha de uma convenção social, que a sociedade promulgue como sendo de certa forma Nada disso eu acho que me pressiona e nunca me pressionou”, Rodrigo não nega que a pressão existe, mas afirma que ela não o afeta como comumente se espera. Ele fala sobre como, por serem um casal homoafetivo, sofrem pressões da própria comunidade, mas que isso não o impacta

Sempre tive curiosidade de saber sobre como as pessoas se conhecem Quando vejo um casal, eu costumo me perguntar: “Como será que eles se conheceram?” Marcos e Rodrigo me contaram que se conheceram em uma festa, algo bem aleatório. Depois daquele dia, conversaram pelo WhatsApp, e a relação foi se aprofundando. É lindo como

Foto: Marcos Mendonças e Rodrigo RebouçasAcervo pessoal

as coisas são; imaginar que cada pequena ação pode causar tantas consequências complexas É fascinante como um dia comum pode se tornar especial para alguns.

A conversa entre Marcos e Rodrigo fluiu para o tema do amor, e eles se complementam de maneira instigante Marcos compartilhou: “Como eu cresci assistindo a filmes da Disney, esse amor romântico sempre foi muito presente para mim. Então, é um amor de escolha, em que, acima de tudo que está acontecendo, eu ainda amo essa pessoa”.

“AMOR NÃO
UMA

RODRIGO REBOUÇAS

ARQUITETO, URBANISTA E DESIGNER DE INTERIORES

Rodrigo acrescentou: “Amor é uma decisão diária, um hábito diário, um sacrifício diário. Não é algo que sempre é fofo ou fácil, mas é uma decisão Você decide amar alguém e amar essa pessoa do jeito que ela é; não é algo simples”. Era deslumbrante como tudo o que diziam me conectava com eles e fazia eu me sentir bem. Apesar do amor ser uma luta diária, percebi que os ho-

mens modernos ainda têm dificuldades em expressar isso. Então, perguntei se essas repressões sociais também os afetavam Rodrigo falou sobre como é uma luta diária quebrar essas barreiras, que impactam não só o relacionamento a dois, mas também as amizades. O mais interessante é que, por ser mais novo, Rodrigo viveu uma realidade totalmente diferente da de Marcos.

Marcos descreveu como cresceu ouvindo que “homem não chora”, que “homem não fraqueja”, que ele deveria ser dominante e líder da casa Ele expressou o quanto isso afeta a lógica de encarar a realidade, enfatizando que era inadmissível ser fraco: “Não pode ser fraco. Isso é impossível. Então, isso realmente é uma repressão muito grande em relação aos sentimentos Você não pode ter medo; você tem que enfrentar e tem que fazer”.

Conversei com Jéssica sobre como nós, homens, somos criados para sermos quase como máquinas éticas de trabalho. Muitas vezes, nossa realização pessoal está atrelada ao “sucesso profissional”. “Um homem bemsucedido na sua profissão pode ser colocado sob uma pressão constante e um fardo, com a sensação de que precisa fazer mais ou ser o único a carregar essa responsabilidade”, comentou. Segundo ela, isso pode levar o homem a longas jornadas de trabalho e a se

sentir fracassado quando não consegue alcançar esse sucesso no ambiente de trabalho, podendo até desenvolver Síndrome de Burnout, uma síndrome caracterizada pela exaustão extrema causada pelo esgotamento profissional, estresse e outros problemas de saúde. “Quando esse sucesso financeiro não é atingido, os homens podem se sentir aprisionados a padrões de ter que ter sucesso”, diz Marcos. Ele continuou: “Hoje, como homem, algumas situações muito sentimentais ou que me levam a demonstrar fragilidade não funcionam. Não vai, não vai, não vai Isso também nos afeta porque eu acabo me tornando muito mais duro, rígido e irritado”, constata. Rodrigo, por sua vez, é mais espontâneo, o que assusta Marcos, não

por ser algo negativo, mas fora daquilo que sempre foi considerado comum em um homem “Então, hoje, com esse conflito de gerações, conseguimos ser um pouco mais soltos”, garante

“A HONESTIDADE, A DECÊNCIA, ISSO PARA MIM ERA SER HOMEM”

MARCOS MENDONÇA MÉDICO VETERINÁRIO E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

Após discutirem suas visões sobre amor e masculinidade, quis saber se havia alguma forma de materializar essas ideias. Perguntei se existia uma referência de masculinidade que fosse significativa para eles. Rodrigo mencionou Paulo Gustavo, ressaltando como ele representa a luta diária que ele mesmo enfrenta, como ator, humorista e roteirista que é publicamente homossexual e lutou pelo amor e respeito. Por outro lado, Marcos explicou que as figuras masculinas em sua vida nunca foram exemplos do que fazer, mas sim do que não fazer Ele escolheu o Ex-Papa João Paulo II (chefe da Igreja Católica de outubro de 1978 até abril de 2005) como uma referência, , pois representa uma masculinidade diferente daquela à qual estava acostumado.

“Os pontos de referência sobre o que é ser homem, para mim, eram completamente contrários aos estereótipos tradicionais. Eram muito mais voltados para a honestidade e a decência, por isso eu via essas qualidades como o que significa ser homem Não havia uma figura masculina clara”, refletiu Marcos.

No final, perguntei a eles o que achavam bom em ser homem e amar como um. Rodrigo respondeu: “Eu me sinto bem sendo homem, amado como homem, amando um homem sendo homem Isso me transmite um sentimento de felicidade e de cumprimento das minhas expectativas, uma sensação de realização. Tudo isso faz parte de mim, então me sinto muito bem sendo quem sou e amando quem amo”

Marcos, por sua vez, acrescentou: “É tão bom ser homem que eu gosto de homem. Eu sempre falo isso. Eu não me vejo de outra forma”

AMOREROMANCE,NEM SEMPREESTÃO INTERLIGADOS

Após refletir sobre as conversas anteriores, pensei que havia encontrado respostas satisfatórias No entanto, durante uma conversa com Jéssica, ela abordou a complexidade da sexualidade, suas diversas formas de expressão e orientação. Isso me fez recordar um amigo que se identifica como arromântico, ou seja, ele sente pouca ou nenhuma atração romântica por outras pessoas João Pedro Batista, estudante de ciências sociais na Universidade Federal de Pernambuco, me abriu um novo parênteses: como é amar sem a parte romântica e como esse amor se manifesta na questão da masculinidade?

perguntando o que é ser homem. João respondeu: “Ser homem não é algo que simplesmente acontece conforme você cresce, mas sim algo que você vai incorporando e aceitando dentro de si, à medida que entende o mundo e a maneira como se vê enfrentando-o”.

João Pedro Batista, meu grande amigo, que se identifica como arromântico, por sentir pouca ou nenhuma atração por outras pessoas

Foto: João Pedro/Arquivo pessoal

Nossa conversa, realizada em uma tarde ensolarada do mês de setembro de 2024, fluiu de maneira bagunçada, mas rica. Discutimos sobre a sociabilidade de gênero, ressaltando que, em nossos cursos, a maioria dos colegas é feminina João mencionou: “Entre as meninas, existe mais entendimento e ajuda mútua, principalmente uma sensação de apoio emocional, de compartilhar o dia a dia e as experiências de forma mais próxima”

Como em todas as conversas, comecei

Por outro lado, ele apontou que “a interação entre amigos homens costuma ser mais brusca, um pouco mais agressiva,

menos suave e doce. Existe uma tolerância maior em relação ao que se fala, e muitas vezes a interação tem esse aspecto mais áspero”. Concordei com ele, lembrando do livro de Bell Hooks, “A Vontade de Mudar”, que discute como a única emoção permitida aos homens é a raiva, pois ela instiga a competição e a necessidade de se mostrar melhor que os outros.

Nosso papo abordou ainda a masculinidade e, como amantes que somos de desenhos animados, falamos sobre a série norteamericana Apenas um Show, criada por JG Quintel para o Cartoon Network e exibida entre 2010 e 2017. João comentou: “O personagem Rigby tenta, mas não consegue se encaixar naquele padrão de masculinidade, de ser o provedor, de sustentar a mulher e de ser alguém forte no mercado de trabalho. Isso o faz se sentir inseguro e mal emocionalmente Ele não se sente suficiente, nem para ela, nem para ele mesmo”.

Essa reflexão ressoou profundamente, pois percebemos que, para nós homens, quando não conseguimos realizar aquilo que nos foi ensinado, ficamos confusos e perdidos em relação à nossa identidade e às expectativas que nos foram impostas.

Conversamos sobre a primeira vez que amamos, e João compartilhou que sua primeira experiência de amor foi pela família, algo que muitos consideram comum Com o tempo, ele desenvolveu laços de amizade, mas sempre se sentiu perdido em relação ao amor Ele pensava que, se uma pessoa era bonita aos seus olhos, isso era motivo suficiente para namo-

rá-la. À medida que cresceu, começou a questionar a razão para as pessoas sentirem atração umas pelas outras: “Por que essa pessoa, em certo momento, despertou essa atração? É como nos filmes e nas músicas” Ele refletiu, então: “Não, isso é apenas exagero, coisa de conto de fadas”. Para ele, sentir um amor instantâneo parecia mágico, mas também irreal.

“DIZER QUE O AMOR ENTRE UMA OU MAIS

PESSOAS DEFINE QUEM

VOCÊ NÃO É BEM ASSIM.

EU NÃO SINTO ATRAÇÃO

ROMÂNTICA OU SEXUAL POR NINGUÉM, MAS SOU UMA PESSOA NORMAL COMO QUALQUER OUTRA”

JOÃO PEDRO BATISTA

ESTUDANTE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Um dia, João assistiu a um vídeo de Jaiden Animations, uma criadora de conteudo estadunidense de animação que faz videos com humor sobre as suas experiencias pessoais. Esse video chamou a sua atenção porque falava sobre não ser hétero Ele esperava que fosse a respeito de relações homoafetivas, mas a mensagem do vídeo mudou sua vida. Jaiden compartilhou sua experiência de se sentir deslocada no mundo romântico e sexual Ela falou sobre como, ao dirigir e ouvir uma rádio, teve uma epifania: percebeu que as histórias de amor que ouvia não se aplicavam a ela e que não sentir atração romântica ou sexual não a tornava menos válida Essa revelação a te-

ria libertado. Enquanto assistia ao vídeo, João começou a perceber que também não sentia atração romântica e encontrou semelhanças em sua experiência. Isso o levou a buscar mais informações sobre sua própria identidade, e ele se sentiu livre e fortalecido. “Dizer que o amor entre uma ou mais pessoas define quem você é como ser humano não é bem assim. Eu não sinto atração romântica ou sexual por ninguém, mas sou uma pessoa normal como qualquer outra”, completou.

Nós também conversamos sobre como a sociedade enxerga o namoro Na maior parte do consumo cultural, o amor é retratado de maneira romântica, como se não pudesse existir amor fora desse contexto. João comentou que, se apenas uma das pessoas em um relacionamento sente amor romântico, é visto como um relacionamento fadado ao fracasso Ele trouxe o exemplo de um personagem de uma série chamada Killing Eve, uma série britânica que fala sobre uma agente de segurança obcecada por uma assassina internacional, nessa serie tem um personagem masculino homossexual, mas casado com uma mulher lésbica.

“Eles têm um casamento, mas não uma relação sexual Eles realmente se gostam, mas deixaram a relação aberta, porque não esperam ter uma relação sexual entre si. Ele tem seus amantes, e ela os dela. Eles se amam da mesma maneira que qualquer outro casal, só que em uma configuração que não é considerada padrão ou normal”. A conversa nos levou a refletir sobre a diversidade das experiências amorosas e como elas desafiam as normas sociais.

Conversamos sobre sentimentos e a experiência de ser homem. João compartilhou que, por um longo tempo, acreditou que precisava se resguardar e que era certo não expor suas emoções No entanto, ao fazer terapia, ele percebeu a importância de se expressar. Ele comparou esse processo a tirar pedras das costas: “quanto mais você guarda algo dentro de si e não fala sobre isso, mais pesado se torna”

Discutimos também figuras masculinas em suas vidas. João mencionou que seu tio era uma referência significativa para ele, com quem sempre teve uma conexão forte, ao contrário do pai, que sempre se sentiu distante e indiferente.

Ao final da conversa, João concluiu: “Acho que o importante é não ter medo de expressar o amor da maneira que você deseja Você deve amar como se sente confortável, sem se preocupar com a aceitação das pessoas ao seu redor ou do ambiente em que está O fundamental é ser feliz, independentemente de como você vive esse amor e de como você é na sua vida”

VIVENDO UMA VIDA SEM EROS

Uma conversa quem renunciou seus desejos carnais

Depois de todas as conversas com pessoas da arte, com um casal, e com um arromântico, eu quis falar

com alguém que voluntariamente escolheu não se relacionar de forma romântica e sexual, mesmo havendo interesse. Então, fui conversar com o sábio Luís Carlos Almeida, uma pessoa que vive em um celibato católico, tem 67 anos, é psicólogo clínico e participa de um movimento chamado Focolare. A critério de curiosidade para o “eu”, Focolare, conhecido também como Obra de Maria, é um movimento leigo católico que busca a unidade entre as pessoas, baseado na fala de Jesus: “Para que todos sejam um”. “Dessa vez, eu gravei e gostaria que você ouvisse. Ele permitiu”. Para você que está lendo meu diário, meu “eu” do futuro, vai transcrever a conversa

Luís Carlos Almeida,

No fina estivesse cada ou uma refl proposta é sair um pouco da caixinha. Muitas vezes, as pessoas buscam respostas definitivas e tentam encaixar conceitos rígidos em formas predefinidas Porém, esses conceitos são muito dinâmicos e não se limitam a uma estrutura fixa “O amor é como um rio impetuoso que não se limita às suas margens; ele transborda. O papel do texto é permitir que esse transbordamento aconteça em cada pessoa. Que o leitor, ao se deparar com novas perspectivas, possa sair dos parâmetros pré-estabelecidos e ser surpreendido com esta reflexão”, deseja Luís Carlos Almeida em entrevista a João Pedro Santos, da Revista Fora da Caixa.

homem de Deus, um tremendo sábio

FORA DA CAIXA Como você vê o amor?

LUÍS CARLOS ALMEIDA Eu gosto muito da concepção grega que divide o amor em algumas dimensões Inicialmente, três principais: o ágape, que é o amor divino, que se doa gratuitamente, sem esperar nada em troca; o amor filial, como o de uma mãe por um filho, que é incondicional e contém gratuidade. Esse amor filial, às vezes, faz com que continuemos amando e cuidando de figuras maternas ou paternas, mesmo quando não são tão amáveis, por uma obrigação de filho. Já o eros é o amor da atração A pessoa celibatária talvez não experimente essa expressão de eros, embora eros não se limite ao carnal Eros inclui o interesse por alguém, mesmo sem conotação sexual Hoje, a palavra "erótico" costuma ser associada quase só ao sexual Então cada pessoa vai ter uma nuance diferente, na concepção do amor É uma palavra que não fica, não cabe numa caixinha.

FC O que é ser homem e amar como um?

LCA Eu acho que o masculino se constrói também na relação com a mulher. O homem é diferente da mulher, e é isso que o enriquece ainda mais No entanto, ele também contém aspectos femininos, pois foi gerado por uma mulher. De certa forma, o amor masculino contém algo do feminino. Podemos dizer que o amor gerado, que está mais ligado à figura materna, também é paterno, pois o homem também gera. Nesse sentido, o amor pode ser tanto pai quanto mãe, manifestando-se de forma intensa em ambos os papéis. Eles estão em uma relação plena, não antagônica, mas que se complementa

FC Mas, nesse quesito que você mencionou sobre o amor do pai e a questão do rigor, isso não acaba sendo apenas uma consequência social, e não uma característica essencial?

LCA Uma cultura machista acha que o homem tem que ser viril, tem que ser forte, tem que ser aquele que pune, aquele que impõe, mas isso é uma questão cultural. Conversando com um africano que está passando alguns dias aqui em casa, a questão do homem, do ancião, é muito forte, ele é aquele que mantém, de certa forma, a comunidade unida, aquele que tem a sabedoria Acho que essa é uma estratégia milenar. Ao longo dos séculos, em que a mulher foi colocada à margem, ela sempre esteve muito presente, às vezes sustentando aquele que, aparentemente, era o mais forte

FC Entrando nessa questão feminina, pensando desde o passado até agora, com todas as lutas feministas e os direitos conquistados pelas mulheres até os tempos atuais, vemos que a mulher ganhou mais espaço no mercado de trabalho e nos processos mercadológicos E acabou que, nesse processo, o homem deixou de ser o principal provedor, deixou de ser a maior autoridade. Aos poucos, essa lógica vai se perdendo, e aí surge a questão: se tirarmos toda essa ideia e modificarmos a estrutura, o que seria o homem nesse contexto? Se toda essa construção vai sendo desconstruída, e o homem vai se modificando, o que seria o homem, então, nesse processo atual?

LCA Quem sou eu se perder isso que estou acostumado a fazer? Mas quem disse que isso tem que ser assim, sempre do jeito que está? Como diz a canção “Modinha para Gabriela” [do compositor baiano Dorival Caymmi]: “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou sempre assim”. Essas novas possibilidades de ser mulher e ser homem geraram muitas mudanças, especialmente nos anos 70 Inclusive, geraram medos Algumas pessoas se agarraram com unhas e dentes à tentativa de impedir que a mulher avançasse. A mulher trabalha muito mais porque, além de tra-

balhar fora, quando chega em casa, ainda sente a obrigação de arrumar a casa, cuidar dos filhos, entre outras tarefas Se você pegar um grupo misto, com 50% de homens e 50% de mulheres, e perguntar no âmbito familiar quem acorda o filho para levar à escola, quem prepara o café, geralmente é a mulher que faz isso. A igualdade ainda não foi plenamente alcançada A mulher trabalha fora e ainda se sente culpada se não consegue dar conta de todas as tarefas da casa, da família. os homens, ao chegarem em casa, pensam: “Finalmente, posso descansar” Vão assistir TV, tomar um banho, e até deixam a toalha cair no banheiro sem se sentirem culpados. Estive em um congresso de psicólogos, e acho que 90% dos participantes eram mulheres. Foi feita uma pergunta parecida com essa, e houve uma grande reflexão, porque essas mulheres empreendedoras que trabalham tanto, muitas vezes, acabam adoecendo O adoecimento físico vem da sobrecarga e da doação excessiva. A Síndrome de Burnout, por exemplo, é uma doença moderna que vai consumir a pessoa pelo excesso de entrega. Muitas mulheres adoecem de Burnout porque se doam muito e estão sempre se sentindo culpadas, pensando: “Eu deveria ter feito mais, eu não estou conseguindo ser uma boa mãe”, devido às múltiplas tarefas que precisam desempenhar.

FC Não sei se você conhece a escritora Bell Hooks Ela tem um livro sobre o amor e também um sobre masculinidade. Ela fala algo interessante sobre esse tema: a mulher é ensinada, desde pequena, a amar o homem e isso não no sentido apenas de marido, mas de amar o homem social o irmão, o pai, todos os homens com quem convive. Por isso, ela carrega a obrigação de cuidar da casa, de fazer as coisas, sempre valorizando o cuidado com o homem. Enquanto isso, o homem é ensinado a amar ou-

tras coisas. Nesse aspecto, ao ser ensinado a amar coisas externas, o homem acaba negligenciado suas emoções pessoais Bell Hooks explica que o homem é ensinado a focar nessas outras coisas porque precisa ter um valor mercadológico muito bem estabelecido, então ele deve trabalhar, ser produtivo. Tudo na vida dele gira em torno do trabalho, além da questão sexual, onde ele é pressionado a ser super ativo sexualmente, entre outras demandas

LCA O homem muitas vezes se preocupa em ser o provedor, e, apesar de toda essa ascensão feminina, quando ele fica desempregado e precisa ser sustentado pela mulher, entra em uma crise existencial. Eu até conheço alguns que fazem isso, mas não sem passar por uma grande crise Ele pode até se acostumar em certo ponto, dependendo de como a esposa lida com isso, mas ainda assim não parece algo natural Para muitos, parece mais natural que a mulher cuide das tarefas domésticas, mesmo com todos os avanços A cultura vai mudando aos poucos, mas para que isso se torne algo realmente introjetado, que mude a mentalidade, ainda vai levar bastante tempo

FC Você acha que conviveu com essa repressão emocional, como, por exemplo, ser desencorajado a chorar ou a demonstrar certos sentimentos?

LCA A gente desenvolve a habilidade de segurar o choro, de não se permitir. Muitas vezes, gostaríamos de expressar a emoção. Diante de uma dor, de um luto, como seria bom, às vezes, poder chorar. Eu me lembro de poucas vezes em que realmente chorei Certamente, isso me influenciou muito, apesar de eu acreditar que admitir a emoção e aceitá-la é algo curativo É como trazer seu lado mais forte para cuidar do seu lado mais vulnerável. Dentro de nós, há crianças

fragilizadas, e podemos, com nosso lado mais saudável, cuidar dessas fragilidades, assim como cuidamos de pessoas

FC Não sei se você conhece a escritora Bell Hooks. Ela tem um livro sobre masculinidade, em que fala algo interessante sobre o tema: a mulher é ensinada desde pequena a amar o homem e isso não no sentido apenas de marido, mas de amar o homem social o irmão, o pai, todos os homens com quem convive. Por isso, ela carrega essa obrigação de cuidar da casa, sempre valorizando o cuidado com o homem. Já o homem é ensinado a amar ar coisas externas, o que acaba negligenciado suas emoções pessoais. Ela explica que o homem é ensinado a focar nessas outras coisas porque precisa ter um valor mercadológico muito bem estabelecido, então ele deve trabalhar, ser produtivo Além da questão sexual, onde ele é pressionado a ser super ativo sexualmente, entre outras demandas.

LCA O homem muitas vezes se preocupa em ser o provedor, e, apesar de toda essa ascensão feminina, quando ele fica desempregado e precisa ser sustentado pela mulher, entra em uma crise existencial. Eu até conheço alguns que fazem isso, mas não sem passar por uma grande crise Ele pode até se acostumar em certo ponto, dependendo de como a esposa lida com isso, mas ainda assim não parece algo natural Para muitos, parece mais natural que a mulher cuide das tarefas domésticas, mesmo com todos os avanços A cultura vai mudando aos poucos, mas para que se torne algo realmente introjetado, que mude a mentalidade, ainda vai levar bastante tempo

FC Você acha que conviveu com essa repressão emocional, como, por exemplo, ser desencorajado a chorar ou demonstrar certos sentimentos?

LCA

A gente desenvolve a habilidade de segurar o choro, de não se permitir. Muitas vezes, gostaríamos de expressar a emoção Diante de uma dor, de um luto, como seria bom, às vezes, pode chorar Eu me lembro de poucas vezes em que realmente chorei Certamente, isso me influenciou muito, apesar de eu acreditar que admitir a emoção e aceitá-la é algo curativo É como trazer seu lado mais forte para cuidar do seu lado mais vulnerável Dentro de nós, há crianças fragilizadas, e podemos, com nosso lado mais saudável, cuidar dessas fragilidades, assim como cuidamos de pessoas vulneráveis ao nosso redor

A raiva, socialmente, é interessante, porque, quando uma mulher a demonstra, muitas vezes é rotulada como “histérica”. Já com os homens, raramente se usa esse termo; para eles, a raiva é vista como uma luta Colocar-se nesse papel é arriscado, porque todos temos momentos de luta e enfrentamento, mas também temos momentos em que não estamos em condições de lutar dessa forma Aceitar a própria fragilidade é um grande ganho psicológico Se conseguimos admitir isso, conseguimos suportar estar nesse lugar de vulnerabilidade também É engraçado como o xingamento, muitas vezes, é interpretado como uma forma indireta de carinho A gente aprende a entender isso assim, porque expressar amor diretamente não é algo comum. Essas ações são maneiras sutis de expressar amor No entanto, pode parecer que esses gestos funcionam como uma máscara, para não mostrar diretamente o afeto. É raro um homem chegar para outro e dizer “Eu te amo ” . Mesmo entre pais e filhos, pode ser difícil para um pai expressar esses sentimentos Em um trabalho com crianças vulneráveis, percebi que os meninos, que frequentemente exibiam comportamento agressivo, podiam expressar afeto apenas por meio de brincadeiras físicas que envolviam contato

FC No meio masculino é muito difícil expressar amor, como você vê isso?

LCA A expressão do amor é uma necessidade básica para todos os seres humanos Muitas pessoas, para se sentirem amadas, acabam desenvolvendo estratégias não adaptativas e prejudiciais A necessidade de amor e aceitação é fundamental para a nossa própria sobrevivência

emocional Quando ajudamos os outros e provocamos sorrisos, isso se reflete em nós mesmos, trazendo um sentido para nossas vidas Uma comparação que ouvi é que o amor é como o farol de uma bicicleta que funciona com um dínamo: quando você pedala, a luz acende Quando você ama, tem a luz para enxergar. Quanto mais você se doa e se entrega ao amor, mais você encontra propósito e satisfação.

Portas são fechadas para se abrir janelas, conhecer-se é libertador

Essa foi minha semana. Gostei muito das conversas; procurei respostas, mas percebi que cada um tem a sua, .

de certa forma No fim, compreendi que devemos questionar os valores sociais, e, às vezes, nesse processo, nos tornamos pessoas melhores. “Eu acho que o principal passo é realmente a quebra daquele padrão de repressão emocional A desconstrução dessa repressão é o principal passo, para que os homens possam se permitir e sejam encorajados a ser mais livres para se expressar,” disse Jéssica Oliveira para mim, e escrevo isso aqui para o “eu” do futuro.

Saí da sessão e fui para casa pensando sobre isso. No fim, percebi que sou livre para ser o

que quero ser. Minha vida me pertence. Decidi ser um gato, pois gatos simbolicamente são dóceis, fofos e empoderados, igual a quem está lendo. Também são curiosos e atentos, e a mim nada sobraria se não pudesse refletir sobre existir No fim também são brincalhões, e um pouco ignorantes com quem não conhecem, mas quando conhecem são super preocupados e carinhosos

Agora, é minha vez de dizer algo ao “eu” do futuro que ler isso: espero, do fundo do meu coração, que você seja livre. Ser homem é apenas um conceito, muito vago Ame da forma que quiser e busque o amor. Tudo é possível através do amor (JPS)

AMOR ANTES DA LUTA: A COMUNIDADE LGBTQIA+ EM FOCO MULTIFACETADO

Relatos pessoais, representações midiáticas e sentimentos além da paixão revelam as diversas formas de amar e resistir em Maceió

FORA DA CAIXA

Aconstante luta para que o amor seja visto como amor, e não como algo que precisa ser batalhado aaaaa

para ser vivido, é um dilema corriqueiro da população LGBTQIA+. No Brasil, a sigla evoluiu de GLS, termo que designava gays, lésbicas e simpatizantes e não englobava as mulheres trans e travestis que começaram a mobilização pela inclusão e a igualdade, e posteriormente se estendeu, acrescentando outros movimentos e letras como forma de representatividade.

Vasto e multifacetado, o amor é um conceito que transcende definições rígidas e assume formas e intensidades Essa multiplicidade de significados é explorada no artigo “Do amor à cidade”, escrito pelo arquiteto do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo Jorge Ricca Junior e publicado na Revista IDE, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. “A palavra amor é velha; o sentimento mais ainda, portanto Desgastada pelo uso, é o único signo que temos para designar os vários sentimentos abrigados sob seu guarda-chuva. A imprecisão da palavra amor reflete precisamente a nossa incapacidade de defini-lo”, afirma Ricca Junior.

Essa visão múltipla do amor varia conforme o contexto. No caso de Jorge, ele falava do amor às cidades, especificamente, do sentimento, do pensamento e da ação em relação a São Paulo, a grande metrópole brasileira Mas bem que poderia ser uma metáfora para várias outras cidades, como a que você, leitor, vive agora A diversidade também no livro de Coríntios, 46º livro da Bíblia e o sétimo do Novo Testamento, escri-

to pelo apóstolo Paulo para os cristãos de Corinto, na Grécia, devido às dificuldades vividas lá. Nos versículos 4 a 7 do capítulo 13, a epístola de Paulo descreve o amor como paciente, bondoso, livre de inveja, orgulho e rancor, alegrando-se com a verdade e resistindo às injustiças.

Tanto o texto de Jorge quanto o de Paulo destacam esse sentimento como uma força generosa e transformadora que se manifesta em vários gestos e relações, entrelaçando diferentes vivências e atuando como uma base que abraça a complexidade e a diversidade da experiência humana. Essas manifestações abrangem o amor próprio, os laços sociais, o convívio urbano, as relações familiares, a saúde e a representação na mídia, compondo relacionamentos que, moldados ao longo da história, desempenham um papel fundamental na forma como os vínculos amorosos são mantidos e perpetuados No entanto, a invisibilização de diversas formas de amor e das pessoas que amam ainda é um desafio significativo, afirma Cleane Sibaldo, advogada formada pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), com impactos que vão desde a constituição de família até o direito à cidade, o acesso ao mercado de trabalho e o atendimento médico. “É um campo de análise muito rico e urgente”, diz Cleane

Diante de tantas lutas, a comunidade LGBTQIA+ enfrenta desafios diários para garantir seus direitos fundamentais e viver com dignidade, o que inclui a visibilidade e a representividade na mídia de modo geral, o combate ao preconceito em espaços públicos

e no mercado de trabalho, na saúde e na educação Entre as reivindicações, estão a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o combate à violência de gênero e a defesa de políticas de saúde inclusivas, que garantam o acesso à hormonioterapia, cirurgias de afirmação de gênero e a superação de preconceitos em atendimentos médicos

No artigo “União Homoafetiva como Entidade Familiar”, o estudante de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Davi Souza discute o conceito de dignidade humana como princípio essencial do Estado Democrático de Direito, sobre o qual se sustentam os demais valores jurídicos, sendo eles a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político Ele destaca que, por estar garantido na Constituição, especificamente no inciso III do artigo 1º, esse princípio possui força normativa, exigindo que o Estado assegure a dignidade de todos os indivíduos, sem discriminação ou preconceito

Em seu texto, Davi reitera como o conceito de família toma novos aspectos, com o entendimento da não necessidade da presença de um homem e uma mulher para poder constituir uma entidade familiar. Ele ressalta como a figura do legislador evoluiu nas causas que envolvem a comunidade: “O respeito à sexualidade é importante para o indivíduo Como direito fundamental do ser humano, torna sua vida digna e feliz. Motivo este que levou o direito a buscar princípios que tutelassem a livre manifestação sexual”. Portanto, sim, mesmo que, por vezes, o

amor seja encarado de forma heterossexual e conservadora, o país está em constante evolução Cleane destaca avanços como o conceito de isonomia, princípio jurídico que estabelece a igualdade de todos perante a lei, garantindo direitos iguais para uniões estáveis, tanto homoafetivas quanto heterossexuais, a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo e a regulamentação do Ministério Público do Trabalho para o uso do nome social – modo como pessoas trans se auto identificam socialmente, reafirmando sua identidade de gênero –, que estabelece diretrizes para assegurar o respeito à identidade de pessoas trans e travestis em ambientes de trabalho e em instituições públicas e privadas.

O uso do nome social é crucial para travestis e transexuais (masculinos e femininos) Essa prática não apenas valida suas existências, como também contribui para a construção de um ambiente mais inclusivo e respeitoso, no qual cada indivíduo pode ser reconhecido como desejado No Brasil, o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais na administração pública federal são garantidos desde 2016, através do Decreto Presidencial nº 8 727 Assim, a alteração do nome pode ser pedida para o RG e o CPF.

Com experiência em Direito Civil e Direito do Trabalho, Cleane Sibaldo tem atuação em causas LGBTQIA+

UMPOUCODACOMUNIDADE

Lésbicas

Mulheres que se relacionam com mulheres

Gays

Homens que se relacionam com homens

BiePan

Pessoas que se atraem por todos os gêneros

Assexuais

Pessoas que não nenhuma ou parcialmente não sentem atração sexual + demais causas

Trans

Pessoas que não se identificam com o seu gênero biológico (o termo travesti também é usado para se referir à mulheres trans)

Queer

Termo que engloba pessoas que não se identificam como hétero/cis*

Intersexo

Pessoa que biologicamente desenvolve características sexuais que não apresentam padrões específicos do sexo masculino ou do feminino, ambos são vistos, em razão dos cromossomos, genital externa e interna, situações gonadais, no caso testículo e ovário e quadros hormonais.

MACEIÓ ROMÂNTICA, O DIREITO LGBTQIA+ À CIDADE

É no espaço urbano em que vivência, expressão e pertencimento devem ser garantidos a todos

Acidade representa mais do que um simples espaço geográfico, sendo um ambiente onde a vivência, a

expressão e o pertencimento devem ser assegurados a todos os cidadãos. No artigo “Os Impactos da Cidade na Saúde Emocional: Alternativas para uma Condição Saudável”, do arquiteto Fabio Manente, apresentado no 12º Seminário Internacional de Investigação em Urbanismo, em dezembro de 2020, a cidade é apresentada como um espaço onde se dá a relação entre a mente humana e suas emoções. Nessa perspectiva, a cidade se torna um local para as percepções e os sentimentos que influenciam o bem-estar psicológico, envolvendo como o indivíduo se sente consigo mesmo e se relaciona com os outros.

Dentre os efeitos positivos, Manente destaca a conexão entre ambiente e emoções, a identidade e o pertencimento ao espaço, além das relações interpessoais, ressaltando como o ambiente urbano influencia as interações sociais. O autor enfatiza esse potencial para o bem-estar, pois a cidade pode se configurar como um espaço repleto de oportunidades para lazer, cultura e convivência, elementos fundamentais para a promoção da saúde emocional.

O entendimento da psicologia e da essência humana no contexto urbano oferece uma nova abordagem, diretamente

ligada à qualidade de vida e ao equilíbrio do indivíduo consigo mesmo e com o mundo ao seu redor; o texto salienta a importância da integração em um espaço que o represente. “A relação da pessoa com a cidade parece modificar-se a cada evento cultural, esportivo e a cada ação, a exemplo da plantação de alimento. Cultura, esporte e ações organizadas aproximam as pessoas, o que é positivo e saudável”, afirma Fábio Manente

O amor e os relacionamentos também são vividos na cidade, sendo comum que namorados saiam para Hilda Marinho, arquiteta e urbanista formada pela Ufal, explorou, em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “Cidade e Diversidade: Cartografia Lesboafetiva em Maceió-AL”, o afeto sob a perspectiva sáfica.

Foto:HildaMarinho/Acervopessoal

Emseutrabalhodeconclusãodecurso, a arquiteta e urbanista Hilda Marinho analisaarealidadesáficadeMaceió(AL)

O termo sáfico engloba todas as mulheres que gostam de mulheres, destacando a importância da inclusão e da diversidade nos contextos urbanos públicos e também abordando como essa dinâmica se desenvolve a partir de dados estatísticos. Hilda observa que a visibilidade da comunidade LGBTQIA+ em Maceió está concentrada principalmente no bairro do Jaraguá, localizado na região da orla marítima, na parte baixa da cidade. “A comunidade LGBT ocupa apenas um dos 50 bairros de Maceió, e mesmo assim, somente

rante a noite”, destaca. Essa centralização limita o circuito de lazer para os moradores da parte alta da cidade, criando barreiras no acesso e na participação nos espaços culturais e de convivência voltados à comunidade. Segundo o estudo conduzido pela Hilda, as mulheres entrevistadas relataram que seus primeiros beijos e experiências afetivas com outras mulheres ocorreram de forma discreta e em locais específicos, distantes dos espaços públicos tradicionais, tendo o bairro Jaraguá como destaque. A autora afirma que essa é a área

Gráfico 1: Idade das participantes da cartografia

Qual sua idade? (19 respostas)

Fonte: produção Hilda Marinho, 2024

Gráfico 2: Bairro de residência das participantes da cartografia

Fonte: produção Hilda Marinho, 2024

da cidade onde mais se veem casais sáficos demonstrando afeto.

Em seu trabalho, Hilda criou uma colagem que sintetiza os resultados da pesquisa É uma obra autoral que apresenta e destaca, por meio de imagens e texto, os locais em que ocorrem os primeiros beijos lésbicos na cidade de Maceió. A colagem, uma arte física feita com recortes de papel e cola, simboliza tanto a conexão emocional quanto a luta pela visibilidade. Na produção visual, Hilda utilizou notas adesivas brancas para registrar as respostas das entrevistadas e post-its coloridos para indicar os bairros Pelo mapa produzido, a maior parte dos locais onde ocorreu o beijo foi a própria casa, em instituições de ensino ou na praia.

“Algumas pessoas especificaram apenas o bairro, enquanto outra estava inclusive no transporte público ou em um evento evangélico”, complementa. Bairros da parte baixa de Maceió (mais próxima dos centros comerciais da cidade), a exemplo de Jatiúca, Ponta Verde, Poço, Pajuçara e Barro Duro, foram apontados na pesquisa como locais do primeiro beijo lésbico. Por outro lado, em localidades da parte alta (mais distantes da orla e dos principais centros comerciais), bairros como Serraria, Cidade Universitária, Farol e Santa Amélia, a situação foi outra O propósito da cartografia foi preservar a memória desse momento tão especial, como um testemunho da resistência e do amor.

Isso revela a importância da representação em espaços públicos, permitindo a Hilda expressar em seu TCC a sua criatividade e a sua emoção de forma palpável e visível às pessoas através de uma representação visual.

“Fica nítido que Maceió ainda tem muito o que avançar. Pela pesquisa, percebi que uma parcela do público ocupa, em sua maioria, lugares privilegiados, como cafeterias caras, possui plano de saúde e frequenta escolas particulares. Mesmo assim, neste cenário, a insegurança para manifestar afeto sáfico em espaço público ainda é grande”, constata a arquiteta.

Ela sugeriu no trabalho o desenvolvimento de um aplicativo que informasse sobre eventos culturais voltados à comunidade e serviços de atendimento básico para garantir segurança e um ambiente de trocas na plataforma. O trabalho de Hilda é um convite à reflexão sobre o direito à cidade e à expressão plena do afeto, mostrando como a visibilidade e a ocupação dos espaços urbanos ainda são desafios enfrentados pelas mulheres sáficas. A sua pesquisa evidencia a necessidade de expandir esses territórios de liberdade e segurança, permitindo que o amor e a diversidade floresçam em todas as partes da capital alagoana.

VOZES E HISTÓRIAS NOS

DESTAQUES INCLUSIVOS

Um destaque cultural inclusivo apresenta uma abordagem que valoriza e promove a diversidade cultural em um contexto onde todos os grupos, identidades ou experiências têm espaço para se expressar e participar. Ele envolve práticas, políticas e ações que reconhecem e celebram as diferentes vozes e histórias, fomentando um ambiente de respeito, reconhecimento e pertencimento para todas as pessoas Em Maceió, o bairro do Jaraguá, região portuá-

vozes

ria e histórica da cidade entre o centro urbano e a orla turística, cumpre esse papel.

Promovendo um ambiente onde a diversidade cultural é valorizada e celebrada, o bairro histórico se tornou um ponto de destaque. As iniciativas culturais presentes na região, como o BarZart, a boate Joy Club e o Rex Jazz Bar, promovem a inclusão ao oferecer uma variedade de eventos que atendem a múltiplas expressões artísticas e identidades. O BarZart combina a atmosfera de um bar com um bazar artístico e apresentações de arte performática Já a casa noturna Joy Club é um ponto de encontro vibrante, conhecido por seus shows e festas, fomentando um sen-

so de comunidade e pertencimento. O Rex Jazz Bar é um espaço de resistência cultural e celebração das identidades LGBTQIA+ através de uma programação alternativa, realizando eventos como a Festa das Sáficas, celebração voltada para mulheres que gostam de mulheres. Esses locais, sendo o BarZart e a Joy Club na mesma rua, enquanto o Rex Jazz Bar fica nas proximidades, em uma via paralela, não apenas proporcionam entretenimento, mas também contribuem para a construção de um ambiente de respeito e reconhecimento, onde todos se sentem bem-vindos e valorizados Assim, o Jaraguá se destaca como um núcleo que promove a convivência harmônica entre diferentes identidades e ex-

Na colagem produzida no trabalho de conclusão de curso, a arquiteta Hilda Marinha destacou os locais dos primeiros beijos lésbicos em Maceió, simbolizando a conexão emocional e a luta pela visibilidade

pressões, se alinhando à perspectiva apresentada por Fabio Manente, que enfatiza o potencial da cidade em proporcionar um espaço seguro.

Pedro Vermelho e Flávio Henrique Santos, casal de estudantes de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), respectivamente, destacaram que há limitações significativas, especialmente em relação à oferta de espaços voltados para o público LGBTQIA+. Para eles, isso evidencia a carência de infraestrutura cultural e social que atenda à comunidade. A ampliação de locais de convivência e lazer, bem como a realização de eventos que

Foto: Reprodução Google Maps

A casa noturna Joy Club é um dos pontos LGBTQIA+ que fomentam o senso de comunidade e pertencimento

Além do amor, a admiração pela cantora pop Madonna, em especial a música “Ray of Light”, une Pedro Vermelho e Flávio Henrique, que se conheceram na recepção dos calouros de Relações Públicas e Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

da comunidade abrange também os profissionais envolvidos nas festas. Isso vai desde aqueles que animam os eventos, até os que os organizam e compõem a comunidade LGBTQIA+, tendo uma relação com esses espaços que perpassa apenas o consumo. O casal destaca a necessidade de novas oportunidades Embora o Jaraguá seja uma referência para a comunidade, eles acreditam que é fundamental criar novas possibilidades. Baseados em suas experiências, eles destacam que o Brasil possui exemplos em outras metrópoles e expressam o desejo de que Maceió se torne um lugar onde todos se sintam à vontade Eles observam que São Paulo proporciona a diversidade que tanto desejam ver em sua própria cidade “Eu queria que essas relações entre comunidades e grupos fossem cada vez mais fortes em Maceió Essa coisa de mesclar todo mundo, todo tipo de tribo, colocar no mesmo lugar e todo mundo se dar bem”, diz Pedro. Flávio também destacou seus sentimentos ao articular o amor às diversas esferas da vida “Amor também é cidade, é como você está no espaço, é sobre onde você se sente confortável”, comentou. (LIA e TL)

TE VENDO AMOR! RETRATOS LGBTQIA+ NAS MÍDIAS

A representação nos meios de comunicação: do entretenimento à produção genuína, reflexões sobre visibilidade e identidade

Amídia dita conceitos e tem um papel social notável como mediadora de conhecimentos, es-

tando mais e mais inserida no cotidiano das pessoas Dentro dessa seara, os meios de comunicação apresentam um caráter central de informar e exibir cenários reais e fictícios, sendo este último relacionado ao entretenimento. O acesso à informação é essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, no qual os direitos fundamentais são garantidos pela Constituição.

Tendo em vista esse contexto, é evidente que a cultura LGBTQIA+, quando propagada, causa um impacto significativo Para essa construção, a estudante de História e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Ewdja Awane, destaca que, apesar das restrições, como a falta de representações mais diversas, especialmente de corpos negros, gordos e pessoas com deficiência, existiram avanços em relação ao autoconhecimento proporcionado pela internet. Isso permitiu uma maior visibilidade e inclusão, no que se refere a datas como Dia das visibilidades (bissexual, transexual, lésbicas) e mês do orgulho, tanto

LGBTQIA+ como de cada orientação ou sexualidade. No entanto, como observa, ainda há um controle da mídia tradicional sobre as representações e seus formatos

Pedro Sales, um homem que ainda está descobrindo sua sexualidade, contou como o filme brasileiro “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014) e a série de televisão britânica “Heartstopper” (2022) lhe abriram as portas para entender o amor entre pessoas do mesmo gênero e descobrir a sexualidade. Foi ao assistir a essas duas obras, em anos diferentes, que ele conseguiu compreender que o amor pode sempre ser redescoberto e vivido de diversas maneiras. No filme brasileiro, “Hoje eu Quero Voltar Sozinho” Leonardo, é um adolescente cego, que lida com a mãe superprotetora, e conhece Gabriel em seu colégio Os novos sentimentos começam a surgir, fazendo com que ele descubra mais sobre si mesmo e sua sexualidade Já na série britânica “Heartstopper”, os adolescentes Charlie e Nick descobrem sentimentos um pelo outro e enfrentam juntos os desafios da autoaceitação, das questões escolares e das complicações do primeiro amor. Por trás das câmeras, Nara Normande, diretora de “Sem Coração” –filme que tinha pré-selecionado para a indi-

cação ao Oscar e gravado em Guaxuma, bairro da capital alagoana –, destacou a importância de abordar o amor entre duas mulheres de uma forma que pudesse ressoar naqueles que assistem “No meu caso eu falo sobre mulheres lésbicas, porque é o que eu sou. Eu também gosto de viver essa fase (fazer uma produção sobre um amor lésbico) de alguma forma”, comentou Nara. O filme de temática LGBTQIA+, que se passa no verão de 1996, trata de retratos comuns na sociedade por meio de duas personagens femininas que acabam se apai-

xonando, sem quaisquer exageros ou clichês representados antigamente em películas a respeito de amo-res lésbicos, nos quais o lado sexual e estereotipado costumava ser exacerbado Antes, Nara já havia feito o curta “Sem Coração” (2014), que trata da mesma história, porém o amor nesse curta era de cunho heteronormativo

Já no longa-metragem, ela se aproxima da sua sexualidade “Saí da bolha e pude mostrar o amor lésbico e a experiência dele em Guaxuma, um espaço geográfico da minha terra natal”, diz Nara. (LIA e TL)

cis,

e lésbica que cresceu na Praia de Guaxuma, em

Seu filme “Sem Coração” já ganhou diversas premiações Mulher cis negra, Ewdja Awane (foto acima à direita) participa de um grupo de estudos em história, gênero e sexualidade da UFAL em que inicia suas pesquisas no campo da violência de gênero e colonialismo, em Maceió Já Pedro Sales (foto abaixo à direita), um homem cis branco de 20 anos e graduando de Jornalismo, diz redescobrir a sua orientação sexual; sua visão de amor são os vínculos afetivos

Nara Normande (foto à esquerda) é uma mulher
branca
Maceió

QUEBRANDO O (CIS)TEMA, A VIVÊNCIA TRANS NO AMOR

Desafiando normas e estereótipos: a experiência trans nos relacionamentos e a busca pela autenticidade em meio às expectativas sociais

Gênero e sexualidade representam coisas distintas, contudo, ambos são envolvidos no recorte do amor

romântico O comportamento e performance trans, inclusive, têm relação direta nesse contexto Pessoas trans, cuja identidade de gênero difere do gênero que lhes foi atribuído ao nascer, em uma visão comum da sociedade, necessitam desempenhar uma expressão principalmente estereotipada de seu gênero Ou seja, homens trans precisam ser completamente masculinos e mulheres trans e travestis necessitam ser categoricamente femininas para serem aceitas na sociedade e no amor

O artigo “Gênero, performatividade e a experiência trans”, do pesquisador do Núcleo de Estudo de Gênero da Universidade Federal do Paraná Jamil Cabral, aborda questões sobre a “passabilidade” de gênero e a performance exercida por pessoas trans na busca por aceitação da sociedade. A passabilidade de gênero se refere à capacidade de uma pessoa trans ser percebida pela sociedade como o gênero com o qual se identifica Quando se “passa” por um gênero, suas características físicas, comportamentais e de expressão são lidas pelos outros de acordo com sua identidade de gênero, podendo trazer bene-

fícios em termos de segurança e aceitação social

A performatividade é o termo designado à maneira como pessoas trans tendem a se encaixar nos conceitos tradicionalmente ligados ao feminino e ao masculino Essa noção se baseia no fato de as identidades de gênero e sexualidade serem formadas por práticas e comportamentos repetidos socialmente. Jamil realça os impactos negativos que surgem quando o indivíduo se esforça excessivamente para se alinhar a um gênero, particularmente para evitar questionamentos sobre sua identidade como pessoa trans.

Esse tema também apresenta um viés político, ao passo que se torna obrigatório expor uma conduta extremamente alinhada a padrões masculinos ou femininos, dado que reforçar padrões de beleza e normas rígidas de gênero, colocando pressão para que as pessoas se encaixem em expectativas convencionais. Por vezes, a passabilidade é vista como uma forma de proteção contra discriminação e violência, mas ela também levanta questões sobre autenticidade, saúde mental e a liberdade de expressão da identidade de gênero, sem a necessidade de corresponder a padrões sociais O pesquisador Jamil Cabral pontua em seu ar-

tigo que os argumentos e experiências individuais são fundamentais, pois evitam qualquer interpretação essencialista sobre a construção das identidades de gênero. A formação dessas identidades ocorre de maneira complexa e não linear, em um processo que precisa considerar não apenas as diferenças socioculturais, mas também a diversidade presente.

O autor frisa que é essencial entender o gênero como um dos elementos que constituem a identidade, interagindo com outros aspectos que também moldam quem eles são “Cabe dizer que o gênero masculino não é um constructo fixo, estável, homogêneo, do mesmo modo que o gênero feminino também não é um conjunto rígido, seguro, harmônico, já que, ambos, estão sempre em constante processo de relação/diferenciação”, pontua.

Peter Brasil, de 23 anos, homem trans e professor de inglês, fala de forma particular o panorama da performance de gênero Ele afirma que nunca se sentiu menos homem por gostar de maquiagem ou outros acessórios e elementos comuns do universo feminino. “Sempre gostei de usar cropped, de ter unha grande e de pintá-la Também fico muito lindo de saia, modéstia à parte”, ressalta Vale salientar, para quem não sabe, que cropped é um tipo de blusa ou top que se caracteriza por ser mais curto, geralmente terminando acima da cintura ou na altura do umbigo e sendo usado para diversas ocasiões A perspectiva do amor romântico, de fato, envolve paixão, afeto e o desejo de permanecer em parceria com outra pessoa Esse sentimento, em sua intensidade, conduz

a vínculos, mas não implica em um conceito rígido de como se vestir ou agir. Assim como as pessoas são diversas, as formas de amor também são. Peter destaca esses aspectos ao refletir sobre as expectativas impostas aos homens trans, muitas vezes pressionados a performar masculinidade.

Ele compartilhou que nunca se sentiu alinhado aos conceitos comportamentais que a sociedade impõe às mulheres. “Na infância, eu me via apenas como criança, sem me preocupar com questões de gênero. Com o tempo, fui me identificando mais com o universo masculino, como jogar

Peter Brasil, homem trans professor de inglês, vive a sua autenticidade e reforça a expressão da identidade

Um episódio marcante ocorreu quando uma aluna sua de 14 anos idade não compreendeu o conceito de “trans”, o que o levou a explicar sobre as questões relativas ao gênero, como o termo cis, que descreve pessoas que se identificam com o gênero biológico. Em outra situação, ele enfrentou desconforto com um aluno mais velho que frequentemente errava seu pronome. Apesar disso, Peter se manteve firme, insistindo em ser chamado corretamente, pois, como ele destaca, “não sou uma garota”. No ambiente de trabalho, Peter é muito respeitado, o que acredita ser resultado da sua postura profissional Para ele, o mais importante é ser reconhecido como professor. “Eles me respeitam porque eu mostrei respeito primeiro”, explica, ressaltando que se dedica a construir um ambiente de aprendizado onde o respeito mútuo é fundamental.

As ideias apresentadas por Jamil Cabral se alinham ao relato de Peter, já que ambos abordam a complexidade das identidades e das relações de gênero. Cabral enfatiza a importância de entender o amor e a diversidade de experiências emocionais como aspectos fundamentais da vida humana Já para Peter discutir a respeito das expectativas sociais sobre a masculinidade podem impactar a vivência de homens trans

OPRESSÃO VIA SISTEMA

DAS PESSOAS CIS

Essa convergência de pensamentos ressalta a necessidade de reconhecer e respeitar as múltiplas formas de expressão de amor e identidade, e Peter enfatiza sua diversidade na forma de se vestir como uma expressão fundamental de sua identidade e individualidade Ele critica a postura rígida e conservadora imposta para aparência exigida. “A maioria dos homens trans acreditam que, para ser homem, tem que ter cabelo curto e não pode usar roupa feminina, ter unha grande, se maquiar, que deve seguir as normas da cisgeneridade. Isso, para mim, não faz sentido nenhum. Na verdade, é como se você está sendo oprimido por esse ‘cistema’, sistema com C”, reflete

Peter critica como a pressão social e as normas culturais podem restringir a expressão de gênero, levando muitos a suprimir suas verdadeiras identidades Ele reforça que se permitir vestir como desejado e se expressar de maneira própria é essencial, uma forma de amor-próprio. Ao expressar sua individualidade, cada pessoa se conecta mais profundamente com sua verdadeira essência, permitindo-se viver de maneira autêntica e plena (LIA e TL)

O AMOR É MUITO MAIS ALÉM

Redefinindo o amor: perspectivas sobre assexualidade e a psicologia em seus aspectos

Aassexualidade é uma orientação sexual caracterizada pela ausência ou pouca atração sexual por outras

pessoas, o termo funciona como um guardachuva para diversas outras nomenclaturas Para muitas pessoas assexuais, o amor não se restringe ao sexo. Elas experimentam suas conexões afetivas e emocionais intensas através das amizades ou relacionamentos românticos não baseados em desejo sexual

A psicóloga Milka Freitas comentou sobre como a assexualidade é encarada na psicologia, destacando que “a área deve acolher todas as expressões da sexualidade de maneira saudável e respeitosa”. Segundo ela, as pessoas assexuais, assim como qualquer outra identidade, podem experimentar diferentes formas de desejo. Ela também ressaltou que alguns profissionais podem não compreender ou estudar adequadamente a diversidade sexual, o que leva a interpretações errôneas. Milka compartilhou uma experiência pessoal ocorrida durante uma palestra sobre relacionamentos, quando o tema assexualidade foi abordado Na ocasião, uma psicóloga perguntou qual seria o método adequado para lidar com uma pessoa assexual Milka observou como a visão equivocada de que a assexualidade não é uma expressão legítima da sexualidade é prejudicial e como a falta de atualização de alguns profissionais impede a criação de um

diálogo responsável e justo, especialmente no processo terapêutico, que exige acolhimento, compreensão e cuidados adequados para o bem-estar do indivíduo.

Jhessyka Fernandes, formada em Biologia e graduanda em Jornalismo pela UFAL, é um exemplo de como a assexualidade pode ser vivida de forma ampla. Para ela, o amor vai além da dimensão sexual e se expressa nas relações afetivas e emocionais que constrói com amigos e pessoas mais próximas, manifestando-se de maneiras diferentes das convencionais. Ela explica que, dentro do seu círculo social, nunca houve rejeição ou projeções, e sua assexualidade não influencia a forma como experimenta e expressa o amor. “As pessoas não me julgavam. Já não chegavam logo de cara e diziam ‘ah, você é hétero?’, não tinha essa coisa de colocar dentro de uma caixa”, compartilhou ela Essa aceitação em seu am-

Pessoas assexuais podem experimentar diferentes formas de desejo, afirma a psicóloga Milka Freitas

biente social tem sido fundamental para que possa viver sua identidade de maneira plena, sem as pressões que costumam recair sobre quem não se encaixa nas expectativas normativas de relacionamentos

Em sintonia com os pontos abordados por Jhessyka, Pedro Sales, um homem cis que está descobrindo sua sexualidade, enfatiza que, para ele, o amor se manifesta de forma mais intensa nas amizades do que nos relacionamentos românticos. Ele acredita que as conexões afetivas no contexto da amizade são profundamente significativas, muitas vezes superando o amor romântico em termos de intensidade e profundidade. "O único amor que realmente sei e tenho certeza é o amor de amizade. A intensidade e os comportamentos em um amor de amizade são melhores do que em um amor mais romântico", afirma Pedro.

Dentro do contexto de normas sobre gêneros e sexualidade, Milka Freitas analisou que a sociedade impõe um modelo de sexualidade “padrão”, baseado na heterossexualidade e cisgeneridade Ela esclarece que, na infância, as crianças não têm uma compreensão definida sobre quem são O ideal seria que aprendêssemos sobre o cuidado de si, como o filósofo Michel Foucault descreve no volume 3 do livro A História da Sexualidade. Na obra, Foucault fala do cuidado de si como uma relação da pessoa consigo mesma. A sexualidade, nesse caso, seria resultado das práticas concretas da vida cotidiana em que os sujeitos vão construindo sua identidade e direcionando sua conduta Segundo Milka, esse processo do cuidado de si não costuma ser tão desen.

Para a bióloga e estudante Jhéssika Fernandes, o amor se manifestando de maneira forma das convencionais

volvido como deveria, pois as pessoas não se acolhem durante seu crescimento. Ela ainda apontou que o Estado impõe um ideal de comportamento e sexualidade, gerando conflitos e violências, muitas vezes começando no ambiente familiar

“Para desenvolvermos uma sexualidade saudável, seja qual for, precisamos nos enxergar profundamente e sem nos sabotarmos, isso demanda coragem e não é um processo fácil”, considerou. Milka também salientou que, quando uma pessoa faz parte de um contexto familiar e social que a motiva e acolhe de maneira saudável, ela consegue expressar sua sexualidade de forma genuína. Nesse ambiente de apoio, enfrentar os desafios se torna menos difícil, incentivando a pessoa a viver de maneira plena. A partir da psicologia e das experiências compartilhadas por Jhessyka Fernandes e Pedro Sales, fica claro que a intensidade nas relações afetivas não precisa estar atrelada apenas ao amor romântico. Esses exemplos mostram como as relações podem ser profundas e significativas, além das normas sociais impostas. (LIA e TL)

A IDADE DO AMOR

Amar na velhice pode ser tão leve como andar sem os sapatos ou até mesmo um rio de lembranças e emoções

Por Filipe Norberto e Giovanna Lôbo

Apossibilidade de um novo começo é sempre um desafio para qualquer um, principalmente quando se trata de redescobrir o amor “Encontrá-lo foi sinônimo de que a vida sempre tem uma grande surpresa para a gente e que a esperança não pode deixar de existir”. Foi dessa maneira que Neide Melo, divorciada aos 66 anos, definiu a experiência de iniciar um relacionamento na terceira idade com Paulo César Soares, de 67

Neide e Paulo César se conheceram durante o Carnaval de 2022 A troca de olhares dos dois gerou uma conexão instantânea, mas que Neide cautelosamente evitou por um tempo, só voltando a encontrá-lo 40 dias depois do primeiro contato em um restaurante

No Sábado de Aleluia, em plena Semana Santa daquele ano, surgiu uma vontade repentina em Neide de ir a um restaurante e reunir os amigos, e lá estava Paulo César. Ao passar por ele, Neidinha (como preferimos chamá-la tamanha descontração e intimidade criada durante a nossa entrevista) percebeu a expressão de tristeza de Paulo. A amiga que estava junto com o grupo dela incentivou-a a dar uma “boa tarde” ao charmoso camarada que estava sentado sozinho e com uma cara de insatisfação difícil de se esconder. Ela recuou, sentindo-se acanhada em fazer esse gesto

Mas, ao final da tarde, Paulo César pegou a quentinha de almoço com a feijoada que tanto apreciava e, antes de ir embora, foi até

Neide Melo e Paulo César Soares: um casal que experimenta a liberdade de ter uma relação baseada no diálogo e respeito às individualidades pessoais

a mesa de Neide para cumprimentar um amigo que fazia parte do grupo dela. O que era para ser apenas um mero “olá, como vai?”, se tornou uma conversa de horas com Paulo sentado exatamente ao lado de Neide E como ela mesma disse, não teve o que fazer, simplesmente aconteceu a conexão. “Ele largou a feijoada, reabriu a conta e nisso já se foram dois anos e quatro meses. Tudo por conta de um tchau, um tchauzinho”, relembra.

O encantamento de Neide com aquele homem só aumentou quando ela soube o motivo pelo qual Paulo estava com aquele ar inquieto durante o almoço. Era saudade dos filhos. A vontade de vê-los era tanta que ele ficou arisco.“Eu nunca tinha ouvido de ninguém isso, nunca vi ninguém ficar daquele jeito por conta dos filhos”

A vida compartilhada a dois após os 60 anos tem um ritmo diferente de quando se é jovem. Na juventude, a ansiedade da correspondência apressa o fluxo natural dos acontecimentos e compromete o amadurecimento da relação que se perde na fluidez do cotidiano, o que não costuma acontecer na terceira idade.

Neide e Paulo experimentam juntos a liberdade de terem uma relação construída pelo diálogo e respeito às individualidades básicas e naturais que cada ser humano deve usufruir. “A gente nunca quis tirar o outro da vida que lhe pertence, entendendo sempre que cada pessoa tem seu espaço” Os filhos de cada um dão total apoio ao casal e aceitaram o envolvimento com tranquilidade, fortalecendo o namoro.

Eles tornam a rotina diária o mais dinâmica possível, viajando, aproveitando os bares com música ao vivo e indo à praia Com a delicadeza e leveza de quem sabe que “a vida é para ser vivida”

Ao se lançar nessa nova aventura aos 65 anos de idade, Neidinha revela que saiu da própria zona de conforto e que foi a melhor atitude que ela poderia ter tomado. “Em algum momento atrás, eu ficava me perguntando: ‘meu Deus, se eu namorar, como é que eu vou ficar, depois de 20 anos dentro dos meus hábitos?’ É preciso ter coragem de trabalhar dentro da sua própria honestidade”, reconhece.

Neide carrega a certeza de não se sujeitar a relações pesadas e que não agreguem em sua vida. “Eu acho que a cada descoberta que a gente percebe através do outro, a gente renova valores. E a relação é conquistada gradualmente e precisa ser leve. É como dizem: se o sapato tiver apertado, tire. O sapato confortável é aquele que lhe cabe”, afirma.

A construção de relacionamentos após os 60 anos revela um fenômeno novo na população brasileira. Com o aumento da expectativa de vida, as construções sociais a respeito da velhice têm mudado O número de matrimônios na faixa etária dos 60 a 70 anos, conforme o Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aumentou entre 2018 e 2022. Passou de 60 580 para 74 798 casamentos, refletindo um aumento de 23, 5% nesse período.A abertura à possibilidade de se envolver com alguém na velhice têm causado um importante impacto na saúde mental e física

dos idosos, que aproveitam essa fase para apreciar a vida com mais calma e a sabedoria que só se pode atingir após se fazer uma avaliação de vida tardiamente, como explica Neidinha

“A maturidade é como um termômetro ao contrário Quando a gente é mais jovem, vivemos tudo com muita intensidade e não temos maturidade para encarar as situações Na medida que a gente vai envelhecendo, a maturidade vai chegando e passamos a viver de forma mais amena. Somos eternos aprendizes e esse aprendizado vem gradualmente”, concluiu

ENTRE DISCOS E FOTOGRAFIAS

Era uma tarde ensolarada de 1972, em Caruaru, centro de efervescência comercial do Agreste de Pernambuco, quando os adolescentes Aildes Queiroz, que ainda era uma menina de 13 anos, e Augusto de Lima, no auge dos seus 16 anos dourados, se conheceram Ao voltar da escola, Aildes passou pela Hi-Fi Discos, de propriedade de Seu Djalma Lourenço, quando se deparou pela primeira vez com o funcionário da loja com que ela fez questão de conversar e atrasar o seu percurso de volta para casa Bendito atraso, porque se não fosse a vontade dela de saber qual era a novidade musical da semana, ela não teria encontrado o grande companheiro de vida dela.

Dali em diante, nunca mais se desgrudaram. Da amizade nasceu o interesse musical em ouvir os discos de Chico Buarque ou dos Beatles Mais tarde, em dezembro de 1977, cinco anos depois do primeiro contato, o casal resolveu se casar. A união resultou em

filhos e uma relação de quase 50 anos.

Aildes e Augusto passaram por várias situações em que o amor deles foi colocado à prova Como quando eles já com filhos se mudaram para Maceió, Augusto precisou retornar ao trabalho em Pernambuco. Aildes se viu sozinha cuidando das crianças,

mas teve resiliência em manter a relação que sempre foi pautada na confiança e no diálogo.

Para eles, o segredo para manter um relacionamento tão duradouro é conciliar o seu bem-estar e os interesses pessoais com o respeito às diferenças e os espaços

Aildes Queiroz e Augusto de Lima têm mais de 47 anos de casados e souberam manter o amor nesse período Na foto do casamento, ocorrido em dezembro de 1977, a cena clássica do casal diante do bolo

fortalece a relação. Além de com o tempo ao ganhar nossos filhos conseguimos compartilhar e um amor ainda mais belo e com o passar dos anos a alegria de ter netos”, diz Aildes

Ela admira o talento de Augusto para a fotografia Ela vê nele a habilidade de capturar os momentos e seus significados. “As fotos que ele tira refletem sua paixão e sua capacidade de enxergar a beleza onde outros poderiam passar sem notar. É um talento muito legal e gosto muito de ver suas fotos, principalmente as dos nossos netos”, afirma Além disso, ela destaca a forma descontraída com que Augusto leva a vida sempre tirando piada de tudo, enfrentando os desafios com bom humor.

O amor para ser longevo e perene tem que ser cuidado tal qual uma planta. “A chama do amor passa por uma transformação: deixa de ser uma paixão passageira e se torna como a raiz de uma árvore, que vai se ramificando, crescendo, ficando forte e dando frutos. A chama se transforma em dedicação ao trabalho para conquistar uma vida em conjunto e criar os filhos, e assim por diante”, explica Aildes.

Heráclito, filósofo conhecido da Grécia

Antiga, disse, certa vez, que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois as águas que por ali passaram já não são as mesmas e a pessoa também se modificou. Compreendendo o devir como uma característica comum ao homem, já que tudo se transforma o tempo todo no mundo, Heráclito nos ajuda a compreender, junto com o relato da Aildes, de que manei-

ra o amor muda ao longo dos anos.

“Se nós mudamos, quem dirá o amor? Ele também se transforma. O amor não depende apenas do sentimento, mas de tudo o que construímos juntos. Com o tempo, a vida vai ficando melhor de se viver. O amor nunca é o mesmo, ele está sempre mudando, conforme passamos por diferentes fases, com novas prioridades e mais maturidade”, reconhece.

Seguindo esse raciocínio da Aildes, podemos relacionar às ideias do Heráclito, baseadas na lei fundamental da natureza, de que “tudo flui” e “nada é permanente, exceto a mudança”. Ela fez ainda uma observação acerca de como o dia a dia é transformado quando se tem alguém com quem se pode contar até o fim “O amor se torna parte do cotidiano, mas não de uma forma cansativa É a segurança de saber que você tem alguém ao seu lado, todos os dias”.

Augusto de Lima cultiva o hobby da fotografia e diz gostar de capturar elementos da natureza e paisagens, uma das formas que demonstrar o seu talento à esposa Fto:o A u tsug o d e L i m a / Ace rvo

O AMOR TAMBÉM É MEU

A autoestima na terceira idade para amadurecer feliz e com saúde

“Quando a gente se ama, a gente tem um compromisso com a gente. De cuidar da nossa saúde mental, da nossa saúde física”

liane Rodrigues, aposentada aos , referindo-se à realidade do viver or na terceira idade, o fato de se ar

ser uma das filhas entre 11 irmãos, a-se foi uma forma de refúgio ao diviamor dos pais. Crescendo, Eliane fimente encontrou uma forma de focar amor se dedicando a cuidar de seus filhos, mas nunca deixando de se ae cuidar de si, já que na melhor idaode realmente se dedicar a viver sua ida para si, se amando e vivendo da melhor forma.

egundo o IBGE, atualmente a expeciva de vida média no Brasil é de 76,7 os, sendo que, em 2060, poderá cher aos 81,6 anos. Ou seja, hoje, temos a clara noção de que com 60 anos ou temos muito para realizar e viver.

doso com uma autoestima elevada enfrentar melhor os desafios do cimento e os momentos difíceis da ra se manter saudável, é importante doso cuide de sua aparência, dedique às atividades que aprecia e busque er coisas novas “Sim, eu me amo! o e aprendendo, desfrutando, ressig-

nificando e entendendo que a vida é como ela é Porque felicidade é uma coisa que vem de dentro pra fora”, disse Eliane sobre se sentir amada por ela mesma hoje

Um estudo feito por alunos do Programa de Pós-graduação em Envelhecimento Humano (PPGEH), vinculado ao Instituto da Saúde, da Universidade de Passo Fundo (IS/UFP), no Rio Grande do Sul, entre os meses de agosto e outubro de 2018, investigou como os cuidados com a aparência influenciam a percepção social entre mulheres idosas. A pesquisa, vinculada ao projeto integrado “Envelhecimento, Educação e Saúde”, teve como foco entender de que maneira a estética impacta a autoestima e as relações sociais dessas mulheres, revelando a importância dos cuidados com o corpo e a aparência para o bem-estar psicológico e social na terceira idade.

O projeto, de natureza qualitativa, envolveu entrevistas semiestruturadas e questionários com 11 participantes na faixa etária dos 60 aos 83 anos de idade, todas frequentadoras do grupo de convivência da Coordenadoria de Atenção ao Idoso, da Prefeitura de Passo Fundo, no interior gaúcho

Foto: Reprodução iStock

Quatro perguntas nortearam as entrevistas: O que é estética ou beleza para você? Quais são os cuidados habituais com a sua aparência? A opinião dos outros sobre a sua aparência interfere na sua participação no grupo de convivência? O cuidado com sua aparência tem influência nos aspectos sociais e emocionais da sua vida?

Entre os cuidados relatados por mulheres idosas, a aparência física e a estética corporal ganham destaque, com uma ligação evidente entre saúde e beleza. As entrevistadas mencionam práticas voltadas ao bem-estar físico, como manter o peso, ter uma alimentação equilibrada e aderir a exercícios regulares, incluindo caminhadas, aulas de ginástica e pilates. Esses hábitos, no entanto, ultrapassam a saúde física, pois impactam diretamente a autoestima, a confiança e o bem-estar social. Cuidados específicos como cortar e colorir os cabelos, além de fazer as unhas, são apontados como essenciais, pois proporcionam uma sensação de jovialidade e reforçam a valorização da própria beleza, refletindo um autocuidado que vai além da estética e contribui para uma percepção positiva de si mesma. Os resultados da pesquisa saíram no artigo “Cuidados e o impacto da aparência estética na percepção social de um grupo de mulheres idosas”, publicado na Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia. “De acordo com as falas das mulheres idosas, as expressões e percepções que emergiram enalteceram a busca do cuidado de si com ênfase no cuidado com a aparência física como expressão de liberdade, de diálogo, de autodeterminação e autoconhecimento, de reconhecimento e de inserção social. Todas

essas expressões de cuidado com aparência física demonstraram um diálogo profícuo das mulheres idosas consigo e com o outro”, escreveram os pesquisadores Márcia de Mello, Helenice Scotegagna e Nadir Pichler, que assinam o artigo.

Ao falar do amor próprio, a autoestima é de extrema importância. Ela deve sempre ser exaltada e apreciada, não importando o momento ou a idade. Toda pessoa idosa merece se sentir bonita e bem cuidada, pois a vaidade mantém um posicionamento mais confiante e um amor próprio mais elevado. Um dos pontos que alertam sobre a maturidade da pessoa sobre sua autoestima é assumir o cabelo branco que, para muitos, não é algo fácil. É uma mudança e tanto que exige muita maturidade e amor para assumir cem por cento dos cabelos brancos, segundo diz Eliane. “Assumir os cabelos brancos é libertador para mim Minha mãe teve cabelo branco a vida inteira, ela era linda Meu pai dizia minha mulher é linda”

Ao assumir os cabelos brancos, a aposentada Eliane Rodrigues reafirma a beleza de se amar nesta fase

A autoestima dos homens idosos também merece destaque. Muitas vezes, a sociedade coloca menos pressão sobre a aparência masculina, mas isso não significa que os homens não enfrentam desafios com o envelhecimento e a própria imagem. Para eles, lidar com a perda de cabelo, o surgimento de rugas e outros sinais da idade pode também afetar sua confiança. O amorpróprio e a aceitação do envelhecimento são igualmente importantes, e cuidar da própria aparência pode ser um ato de autocuidado e fortalecimento da autoestima. Assim como acontece com as mulheres, a vaidade e o cuidado pessoal nos homens podem contribuir para uma postura mais confiante e para uma sensação de bem-estar, independentemente da idade.

Para a psicóloga clínica Rita de Cássia Lima, a terceira idade deixou de ser um momento apenas de espera e recolhimento, como costumava se pensar há alguns anos atrás, para se tornar uma fase de redescobertas. “O comportamento das pessoas nessa faixa etária mudou e o que elas mais desejam é ter companhia para passear, viajar e se divertir, podendo fazer, inclusive, coisas que não faziam anteriormente. As pessoas dessa idade estão se cuidando mais, buscando ter uma melhor qualidade de vida, com apoio de exercícios”, afirma Segundo a psicóloga, a maturidade costuma trazer para os relacionamentos menos cobranças e maior cumplicidade. “Dessa forma, é possível prevenir depressão, solidão e ter uma postura de vida mais ativa, principalmente com companhia, que revigora a alma de qualquer pessoa”, complementa Mesmo com as limitações físicas e mudanças no esta-

do emocional, que são características deste momento da vida, o desenvolvimento do amor torna-se a chave para um efeito positivo nas relações interpessoais. A especialista vê a autoestima como importante aliada para a promoção de uma saúde mental satisfatória. “Nessa faixa etária, amar e sentir-se amado revigora demais e eleva a autoestima. Sentir-se atraído pelo outro é a maior demonstração de estar vivo no mundo e poder se afastar da solidão. A gente parece que volta naquela fase adolescente de se sentir desejado, amado, isso é muito gostoso de se viver. A pessoa nessa faixa etária deve se cuidar mais para continuar sendo cativada e admirada pelo outro, então amor próprio e autoestima em alta transformam a vida das pessoas”, diz.

De acordo com Rita de Cássia, a receita para bem viver a velhice consiste na compreensão do que é a fase, equilibrando os componentes físico, emocional e espiritual. “É preciso viver o que se deseja e o que o coração for determinando. Viver a vida não tem idade, até porque a própria idade é a vida que se tem. Continuar vivendo com esperança e com motivação é a chave para toda a saúde física e mental, e não é diferente para essa idade maravilhosa que chega com maior maturidade A maturidade tem seus encantos, que é viver de nada diferente àquilo que já foi vivido um dia de uma forma melhor e com maior disposição”, concluiu. Pensar o amor na terceira idade compreende dialogar com uma série de desafios e imposições. Visivelmente etarista, a sociedade atual desconsidera as vivências e narrativas referentes à velhice. Certa vez em

entrevista ao portal UOL em dezembro de 2020, a antropóloga Mirian Goldenberg, pesquisadora da área do envelhecimento e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), falou sobre a tendência socialmente aceita de evitar a velhice

“A sociedade diz que envelhecer é feio, que quando você envelhece não pode mais trabalhar, estudar, namorar, fazer escolhas, você não pode mais existir É uma espécie de morte simbólica. O envelhecimento no Brasil é uma morte simbólica e nós envelhecemos muito cedo”, refletiu.

A escritora pondera, ainda, a respeito da perspectiva ageless da geração atual de idosos que conseguiu unir felicidade e envelhecimento. “Ageless são as pessoas que não aceitam uma etiqueta: agora eu tenho 50 anos, 60 anos, 70 anos e não posso mais fazer isso ou aquilo. Elas não se deixam rotular e não se limitam pela idade, continuam fazendo o que sempre gostaram, e até melhor do que antes”, pontua

Nesse sentido, seja ao perceber a leveza de um encontro amoroso após os 60 anos, seja mantendo vivo o amor de muitas gerações ou até descobrindo em si o valor de seu próprio bem-querer, é mais do que correto dizer que os idosos do século XXI não ligam para o que diz a sua carteira de identidade, se a sua mente é capaz de navegar pelo infinito de possibilidades que não se fecham ao se completar 60, 70 ou até 100 anos.

Vivenciar o amor na terceira idade prova isso. Desfrutar da liberdade demanda uma consciência diferente Como qualquer outra

pessoa, o idoso é capaz de expressar a seu relacionamento. Amor não tem idade, e ele beneficia os idosos em várias áreas, contribuindo para o suporte emocional e bem-estar mental, redução de ansiedade e estresse, combate à solidão, melhoria da saúde física, estímulo cognitivo, além da felicidade e satisfação

TUDO É RIO

Seguindo uma linha processual entre os amores, o primeiro que deve ser estimulado é o amor próprio, que como se vê na relação de Eliane com a sua individualidade bem estabelecida e que está solidificada aos 68 anos faz ela uma mulher bem-resolvida e sem inquietações quanto à isso. Sendo assim, a posição de Eliane infere-se quanto ao amor como aquele que vem de si para si.

Enquanto em outra perspectiva, temos Neidinha e Paulo César que vencem as barreiras do preconceito de idade ao se permitirem dividir seus dias, alegrias e fadigas. A história deles prova que é possível redescobrir o afeto, mesmo depois de experiências individuais passadas e com o amadurecimento Eles constroem liberdade de se entregar ao mistério do amor, que Djavan tão bem descreveu na sua música “Pétala”, - “que por ser exato não cabe em si, e por ser encantado revela-se por ser amor, invade e fim”

No que diz respeito aos amores longevos, tem-se o caso de Aildes e Augusto que se desdobraram em mil para fazer desse amor a singela equação entre o rio que carrega tudo e muda sempre a sua rota e a canção que permanece atemporal e que toca a cada

novo brilho no olhar apaixonado deles como um “amor que a gente inventa, pra se distrair”, como cantou o mestre Cazuza na música “O Nosso Amor a Gente Inventa”, composta por ele em parceria com Rebouças e Rogério Meanda e que embalou tantas noites do casal.

Mas e o amor? O que é depois de tudo isso?

Será necessário muito mais do que meras análises para se definir esse sentimento leve, fácil de sentir e que se aviva na humanidade.

Carla Madeira em sua aclamada obra “Tudo é Rio”, que se tornou livro-símbolo de uma geração, explicou perfeitamente o que muitas vezes, não é possível de se dizer com facilidade

“Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro, O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo”, escreve Carla. (FN e GL)

EDIÇÃO 14 - ANO 3 - FEV/25

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