Ed. 11 | Festas Juninas | junho 2024

Page 1

REGIONAL

SÃO JOÃO NA ROÇA: A GRAÇA DO INTERIOR

ECONOMIA E AGRICULTURA

A URBANIZAÇÃO DO MILHO

NA CULTURA ALIMENTAR

EDIÇÃO 11 EDIÇÃO 11 - ANO 2 - JUNHO/2024 - ANO 2 - JUNHO/2024 TOP HITS SÃO JOÃO: QUAIS SÃO OS IMPACTOS DA PLATAFORMIZAÇÃO NO CONSUMO DE MÚSICA?

FESTAS JUNINAS

alavantu
REVISTA LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFAL

Avida fica melhor com cuscuz

ÍNDICE

ENTRE ANARRIÊ E TRUPÉS PÉ NA ROÇA, RITMO DA CIDADE

CELEBRANDO A DIVERSIDADE NAS FESTAS JUNINAS [ [ 68 A ARTE NÃO TEM GÊNERO [ [ [ [ [ [

NADA SAGRADO, MAS TUDO PROFANO

RAÍZES DA TRADIÇÃO

AS ESPIGAS DE MILHÕES

23 TOP HITS SÃO JOÃO

EXPEDIENTE

A Revista Fora da Caixa é um produto editorial da disciplina Laboratório de Mídia Impressa desenvolvido pelos alunos do turno vespertino do 5º período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Esta edição foi produzida no semestre letivo 2023 2

Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte (ICHCA) Curso de Jornalismo

Endereço

Av Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro do Martins, Maceió - AL / CEP 57072-900

E-mail: rforadacaixa@gmail com

Instagram: @revista.foradacaixa

Youtube: youtube.com/@RevistaForadaCaixa

Issuu: issuu com/revistaforadacaixa

EDITOR-CHEFE

Marcelo Robalinho (MTE 13538/PE)

MONITORIA

Bruno Melo

Caroline Oliveira

Eduarda Lima

Felipe Vieira

Maria Clara Godoy

Maria Clara Tenório

EDITORA

Sinara Beserra

REPORTAGEM

Ana Cecília Oliveira

Jhessyka Fernandes

Laura Nascimento

Maryana Vitória

Matheus Bomfim

Pollyane Martiniano

Sinara Beserra

NÚCLEO DE REDES SOCIAIS

Editora:

Ana Cecília Oliveira

Subeditoras:

JhessykaFernandes

Maryana Vitória

NÚCLEO DE DESIGN

Diagramadora:

Pollyane Martiniano

Revisor: Marcelo Robalinho

Siga o perfil da Fora da Caixa no Spotify e fique por dentro das nossas playlists!

[
58
[ [ [ [ [ 39 48
63 15 06

E D I T O R I A L

Caro leitor,

Nesta nova edição, a Revista

Fora da Caixa se veste especialmente de chita, xa-

drez e chapéu de palha Com sons contagiantes da sanfona, arrastapés e aromas irresistíveis, somos levados para um cenário de comemoração para celebrar Santo Antônio, São João e São Pedro através das festas juninas. É com imenso prazer que dedicamos estas páginas aos festejos que vão além da geografia, permeando corações e lares com alegria, muita tradição e um irresistível espírito junino. As festas juninas são mais do que uma simples festa. São um reencontro com as nossas raízes, as tradições que moldaram nossa cultura e um testemunho da nossa diversidade e riqueza do povo, convidando-nos a sair da caixa das rotinas diárias e mergulhar nos folguedos, danças, comidas típicas e muita música

Neste número especial dedicado às comemorações do mês de junho, convidamos você, caro leitor, a explorar conosco as múltiplas facetas dessa celebração tão singular Desde as origens das comemorações até as inovações que renovam e enriquecem essa tradição secular, vamos juntos desvendar cada aspecto desse festejo encantador, embalados ao som das quadrilhas, forrós e outros

ritmos que permeiam as noites de junho, resgatando memórias afetivas e criando novas histórias

Neste período de comemorações, convidamos você a pensar “fora da caixa” Que tal explorarmos as novas formas de celebração, que mesclam tradição e modernidade e respeitando as raízes culturais, ao mesmo tempo em que abraçam o novo e o diferente? As festas juninas são democráticas e abertas aos que desejam participar, criar e reinventar.

Queremos ressaltar a importância de valorizar as nossas tradições. Em um mundo mais globalizado, as festas populares representam autenticidade e identidade. Que possamos celebrar com respeito e alegria, honrando quem nos antecedeu e inspirando gerações futuras. Que este período junino seja um tempo para celebração da vida, da cultura e da diversidade e vivamos com olhos abertos para as maravilhas que nos cercam

Boa Leitura!

Editora da 11ª edição da Revista

Os textos veiculados nesta revista não representam a opinião do Curso de Jornalismo nem da UFAL

Por Laura Nascimento

pe na roca, ritmo da cidade

Um recorte dos festejos juninos em cidades do agreste de Alagoas

Éuma verdade regionalmente conhecida que festa junina boa é aquela realizada na roça. Enquanto

o ambiente urbano se atreve a replicar as tradições do interior rural, dizem os interioranos que o bom arrasta-pé é no chão de barro e o milho mais gostoso é o que vem direto do pé Numa época em que se ouvem e dançam tantos outros ritmos que não os juninos para celebrar o mês de junho, surge a questão: será que, em algumas das roças do agreste alagoano, essa cultura continua bem preservada como no imaginário comum das festividades?

Graciliano Ramos, em seu romance São Bernardo, de 1934, relata que na casa do Seu Ribeiro, contador e guarda-livros de Paulo Honório, o protagonista, uma fogueira muito grande iluminava a sua residência em noites de festas de São João. “Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado Assava-se milhoverde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só desenferrujava nos festejos de São João”. A citação é o recorte de um típico festejo rural, neste caso de Viçosa, a 86km de Maceió, de uma época em que as tradições

06

juninas eram uma marca fundamental da cultura do nosso estado Conforme a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de Alagoas (Secult), essas festividades não apenas celebram tradições centenárias, mas também fortalecem os laços comunitários, preservam a identidade cultural e promovem a economia local através do turismo e comércio

CELEBRAÇÕES ATEMPORAIS

As festas juninas têm origens antigas, remontando aos povos arianos e romanos na Europa, durante a Idade Antiga. Naquela época, eram celebrações marcadas pela transição para o verão (ou inverno no Hemisfério Sul). As comunidades rurais realizavam essas festas para afastar os maus espíritos que ameaçavam a fertilidade da terra, as colheitas e a ocorrência de secas

A popularidade da festa foi tão grande que a igreja não foi capaz de proibi-la É como diz o ditado: “Se você não pode com eles [seus inimigos], junte-se a eles” Situado na época do solstício de inverno, o dia 24 de junho tornou-se o dia de São João. Por pura “coincidência”, já que tanto o aniversário de Jesus Cristo, primo do santo em questão, segundo a Bíblia, quanto o do próprio São João Batista, nunca foram confirmados e acabaram sendo atribuídos a datas de festividades pagãs populares. Foram adicionados, ao longo do tempo, Santo Antônio, o casamenteiro, e São Pedro, que tem as chaves do céu. As celebrações a eles acontecem nos dias 13 e 29 de junho, respectivamente.

Não tão distante, Estrela de Alagoas é uma cidade pequena em densidade demográfica, registrando 59,17 habitantes por quilômetro

FORA DA CAIXA 07
F o t o : A i l t o n C r u z / R e p r o d u ç ã o
Sem muita movimentação comercial ou turística, Estrela de Alagoas se transforma no São João com as festas
REGIONAL

quadrado, segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022. O município conta com um total de 15.429 moradores, situando-se a cerca de 150 quilômetros da capital de Alagoas, Maceió, no Agreste do estado Grande parte de sua população se encontra em áreas rurais. Em junho, a tradicional festa e os ritos religiosos do padroeiro São João Batista se misturam, originando uma única festividade que dura praticamente todo o mês e é muito mais religiosa que mundana.

Falar de tradição é entender como os conceitos passam de geração em geração, assim como aprender a rezar um rosário

Dona Eliete Maria da Conceição, agricultura de 80 anos de idade, vive na zona rural de Estrela de Alagoas desde que nasceu e até hoje planta e colhe milho com o esposo Joel, também agricultor, de 89 anos. A cultura do milho é bastante comum na região e, a partir de meados de maio a abril, o plantio começa a ser realizado. Personagens capa desta matéria, Dona Eliete da Conceição e Seu Joel são casados há mais de 60 anos e são agricultores no sítio Lagoa Grande, na zona rural da cidade Eliete conta que se lembra das festas de um jeito bem diferente de hoje em dia. “As moças faziam uma roda ao redor da fogueira, tinha tocador de sanfona e as músicas eram marchas, baião e xaxado Havia quadrilha e até o padre cantava as músicas. A gente sentava e escutava, e aqui sempre teve missa, novena e terço nessa época, tudo para o São João Batista”, conta. Revelando que a intersecção entre a festividade e religião sempre existiram de maneira forte na cidade.

Ao ser questionada sobre as músicas ouvidas com mais frequência nas festividades de hoje, ela diz que não se identifica mais como antes. “Antigamente, tinha Luiz Gonzaga falando da seca, cantigas com letras bonitas que tinham sentido. Hoje em dia, é só ‘zoada’ Ninguém nem entende o que estão cantando”, critica Eliete.

A programação de Estrela de Alagoas para as festas de junho de 2023 deu destaque a artistas considerados forrozeiros, mas nenhum se enquadra realmente nos estilos citados por Eliete. Nos dias 11 e 12 de junho do ano passado, por exemplo, estiveram presentes nomes como Thullio Milionário, Iguinho & Lulinha e Juninho do Acordeon, que cantam músicas que podem ser definidas como um forró estilizado e mais romântico, com traços semelhantes ao sertanejo universitário.

Ritmos estilizados dominam a lista de atrações do São João de muitas cidades da capital e interior de Alagoas

FORA DA CAIXA 08
F o t o : R e d e s S o c i a i s / R e p r o d u ç ã o REGIONAL

O geógrafo Janio Roque Barros de Castro escreve, em seu artigo A Espetacularização das Festas Juninas no Espaço Urbano Como Estratégia Político-administrativa de Promoção do Turismo Cultural no Recôncavo Baiano, que as festas juninas atraem muita gente e chamam atenção da mídia Isso é importante para os governantes de algumas cidades pequenas no interior (no contexto do autor, da Bahia) Esses políticos até incluíram essas festas nos planos oficiais da cidade, como nos de desenvolvimento urbano. Fazem isso porque veem as festas como uma oportunidade para promover a cidade, atrair turistas e aumentar o consumo. Assim, as festas juninas se tornam eventos culturais e econômicos que ajudam a melhorar a imagem das cidades.

CONSUMO DE ALIMENTOS DERIVADOS DO MILHO NÃO MUDOU COM O TEMPO

“Pamonha, canjica, bolo de milho, isso sempre tem aqui de junho em diante, não sei se porque a gente planta milho aqui nessas terras. Mas, pelo que vejo na televisão, isso é algo que ainda ocorre em todo lugar”, afirma Eliete. Para ela, uma das poucas coisas que não mudou com o tempo foi o consumo de alimentos produzidos com o milho. “É comum que católicos expressem gratidão a São Pedro quando chove, pois o santo é conhecido como o guardião dos céus e portador de suas chaves”. Ele também é associado a diversos fenômenos meteorológicos, pela tradição. Esse aspecto é de grande importância para a agricultura, sobretudo durante as secas do Nordeste, tornando São Pedro alvo frequente de preces por parte dos agricultores

O “HOMEM-BOMBA”

Uma cultura que permanece no local é a compra e venda de fogos de artifício. Seu Cícero Luiz da Silva é um ícone quando se trata do assunto Assumindo o pseudônimo de “Homem Bomba”, ele assusta os locais e faz seu marketing durante a feira semanal de Estrela de Alagoas. Com humor, ele conta como se tornou o personagem. “Tem um bocado de bomba na banca Eu as visto, coloco no pescoço e essa é a minha propaganda, o ‘Homem Bomba’”, explica

Há mais de 40 anos no negócio, ele diz que os fogos mais vendidos em sua banca no mês de junho são “árvore de natal”, que lembra bastante as velas de aniversário que fazem o fogo subir, “apito gaiato”, que seria uma versão reduzida dos famosos fogos de comemoração e “traque-traque”, também conhecido como “traque de massa”, o “queridinho” das crianças

A festividade que não parece ser tão querida é o Dia de São Pedro. O vendedor de fogos relata que a fogueira mais fraca para venda das três festas mais famosas é a do padroeiro dos pescadores. Celebrado em 28 de junho, é comemorada à noite, e talvez ele não seja a razão pela quantidade menor de comemorações, mas sim o bolso dos fiéis, que já não é mais o mesmo do dia 12 de Santo Antônio ou do 23 de São João, uma vez que as fogueiras costumam ser acesas na véspera das datas celebradas oficialmente.

Segundo Seu Cícero, a época mais difícil nos seus negócios foi durante a pandemia da covid-19, quando as fogueiras foram proibidas Na simbologia da Igreja Católica, as fogueiras estão associadas à religiosidade, sendo um símbolo de Santa Isabel, mãe de

FORA DA CAIXA 09
REGIONAL

Como “Homem Bomba”, Seu Cícero Luiz da Silva assustaria qualquer um, mas, no fundo, encanta-se quem o conhece

São João, para avisar à sua prima Maria, mãe de Jesus, que seu filho havia nascido. Atualmente, as fogueiras do período junino estão muito mais presentes no ambiente rural A diferença de idade entre os primos João Batista e Jesus é de seis meses apenas.

A quadrilha junina Arretadus formada por 25 jovens entre 16 e 25 anos, irá estrear nos festejos de 2024 Alânio Duarte, coordenador da quadrilha, afirma que a ideia surgiu como uma forma de reinventar a cultura local. “A ideia foi tomada em conjunto entre alguns amigos, com o intuito de revivermos a cultura que conhecemos no passado. Em se tratando de Estrela de Alagoas, não temos uma cultura muito forte nesse sentido”, reconhece.

Alânio relata que os principais desafios enfrentados são: a busca por valorização e levar a ideia em frente sem apoio “Esperamos ser abraçados pela sociedade, recebendo convites para nos apresentarmos. Acredito que estejamos seguindo positivamente aos poucos”, conclui, acrescentando que a quadrilha será composta por representações teatrais atreladas às músicas tradicionais juninas Para a secretária do Estado da Cultura e Economia Criativa (Secult), Mellina Freitas, embora não haja dados específicos sobre resistência à cultura junina nos municípios do interior do estado, é possível notar que alguns locais enfrentam maior dificuldade na preservação das tradições. “Devido a influências externas, migração populacional

10
REGIONAL

Religiosidade e celebração profana se misturam nos festejos juninos pelo interior afora, mantendo antigas tradições

e mudanças socioeconômicas, a secretaria está atenta e busca estratégias para mitigar tais desafios”, diz Para Mellina, os principais desafios da Secult na promoção e apoio às festas juninas nas áreas rurais estão nas limitações orçamentárias, sazonalidade das festividades e a preservação das tradições frente à modernização

Em Estrela, a religiosidade permeia toda a relação com a festividade, através das imagens divulgadas durante o período. No perfil do Instagram da Paróquia de São João Batista (@paroquiasjbatista), observa-se que detalhes oriundos da tradição pagã, como as bandeirinhas, podem ser vistas juntamente com a celebração religiosa da procissão de São João Batista.

Até mesmo as datas de apresentações respeitavam a comemoração do santo. Por determinação do antigo pároco, o Padre Antônio de Melo, mais conhecido como Padre Motinha, qualquer som que não fosse os hinos de louvor ao santo de Estrela “e do mundo inteiro”, como diz a oração, estava proibido, disseram alguns entrevistados

Um padre, quando ocupa o cargo de pároco, detém considerável influência, sobretudo em comunidades pequenas. Em Estrela de Alagoas, cidade muito católica e rural, o padre é uma figura de destaque, rigorosamente aderente aos preceitos e mandamentos da fé. Em Estrela de Alagoas, é comum que o pároco esteja presente em todos os sítios e povoados da região, condu-

11
REGIONAL

zindo missas e sacramentos, como unções, casamentos, e outras celebrações religiosas. Como consequência disso, as festividades juninas da cidade passaram a ter uma influência religiosa muito maior desde a gestão de Padre Motinha.

Por outro lado, em Palmeira dos Índios, percebemos uma realidade um tanto distinta Como cidade vizinha de Estrela, Palmeira apresenta uma dinâmica urbana mais marcante e uma religiosidade menos evidente. Localizada a 136km de Maceió e a quarta maior cidade do estado, Palmeira dos Índios possui uma história rica, tendo sido lar do renomado escritor Graciliano Ramos, nascido em Quebrangulo, pertencente a microrregião alagoana de Palmeira dos Índios, cujas obras refletem as vivências do agreste alagoano

Mesmo próximas geograficamente, as diferenças entre Estrela de Alagoas e Palmeira dos Índios são notáveis, devido às dimensões e características sociais. A saída de Padre Motinha da paróquia de Estrela e transição para Palmeira dos Índios trouxe mudanças significativas, especialmente no que diz respeito às tradições festivas locais Andreia Gomes, organizadora da Quadrilha Mala Sem Alça, de Palmeira dos Índios, conta que estranhou as novas regras atribuídas ao bairro da cidade, Palmeira de Fora, quando Padre Motinha fora designado pela Diocese como pároco do bairro. Com isso, uma série de mudanças ocorreu Padre Motinha trouxe consigo uma nova política que afetou a comunidade local Anteriormente, a quadrilha junina existia há mais de 20 anos e era uma parte essencial da tradição do bairro.

Com a chegada de Motinha a Palmeira de Fora, os ensaios da quadrilha foram proibidos. Andreia, integrante ativa da comunidade, compartilha a dificuldade causada pela situação “Nós costumávamos ensaiar no salão da igreja, mas agora que a paróquia foi estabelecida, o padre não permite mais festas ou ensaios lá. Isso nos forçou a ensaiar nas ruas do bairro”.

Apesar das semelhanças históricas, Palmeira dos Índios parece mais distante do contexto religioso e das restrições impostas pelo padre, em comparação com Estrela de Alagoas Embora Palmeira de Fora esteja passando por um processo semelhante ao de Estrela, é possível que, com o tempo e a valorização das festividades locais, essas proibições sejam amenizadas, refletindo a pluralidade cultural e religiosa da cidade

ADAPTAÇÕES E RESISTÊNCIAS

A quadrilha surgiu de uma iniciativa do Ministério Público, através do Projeto Livro na mão e bola no pé, que em seguida recebeu como acréscimo o termo Música no ar. “Esse projeto visava a apoiar as famílias e, principalmente, crianças e adolescentes em vulnerabilidade social Eu fui uma educadora integrante. Durante o projeto, iniciei uma quadrilha com crianças”, relembra Andreia. Atualmente, a Mala Sem Alça segue com 18 pares de dançarinos. As músicas da quadrilha se misturam entre as atuais e as tradicionais. Segundo Andreia, é necessário fazer essas alterações para que os jovens participantes se engajem no processo Ainda de acordo com a psicopedagoga, a quadrilha já foi criticada por esse mesmo motivo. “Ano passado, utili-

FORA DA CAIXA 12
REGIONAL

zamos músicas de Edson Rasek (cujo estilo musical atribuído é forró swingueira), que possui um ritmo bem diferente, junto a músicas tradicionais. Precisamos inovar. Os temas da quadrilha mudam a cada ano e isso interfere no processo de escolha das músicas”, conclui

LOOK NO FIGURINO

O “São João do Povo”, promovido pela Prefeitura de Palmeira dos Índios, em 2023, realizou sete dias de atrações, que aumentaram 55% em vendas e turismo em relação ao ano anterior, segundo a Administração Municipal. Apesar de focar em quadrilhas e representações culturais, boa parte delas nem mesmo teve como figurino as roupas matutas. Em vez disso, foram roupas mais pomposas e enfeitadas e a festa foi mais mundana que religiosa.

Quando o assunto é figurino, a Dona Juraci, que é costureira lá de Arapiraca, município também do agreste situado a 125km a oeste da capital alagoana, tira de letra. Para ela, o nordestino respira o sentimento de tradição local ao falar em festa junina. Juraci diz ainda não curtir muito os vestidos mais atuais. “Da costura, a base nunca será esquecida, e sim acrescentada às tendências e inovações, mas defendo primordialmente o uso de vestidos tradicionais, podendo fazer uso em pequena quantidade”, destaca Quando se caracteriza uma roupa típica nordestina, explica, normalmente se associa a detalhes como o tipo de tecido, época e região. “A chita é muito utilizada aqui, principalmente na época junina O xadrez é um tecido que, além de remeter ao inverno, é muito utilizado nas roupas juninas. O que tira a cara do Nordeste nos vestidos típicos são os brilhos exagerados e os adereços con-

FORA DA CAIXA 13
F o t o : H u m b e r t o B a s t o s / G e t t y I m a g e s
REGIONAL
Tecido típico das festas juninas, a chita é usada tanto em vestimentas como na decoração

temporâneos comuns em fantasias de Carnaval, que agora são misturados ao figurino caipira. Isso descaracteriza um pouco a parte regional, a parte do matuto, as roupas que têm muito brilho, o que está mais associado ao luxo e a sofisticação, o que acaba descaracterizando um pouco as roupas juninas”, diz Juraci, refletindo sobre um dos indícios da espetacularização que vem ocorrendo com o tempo

Nas cidades do agreste, refletimos sobre o significado e importância dessas celebrações na preservação da identidade local. As festas juninas não são só momentos de diversão e entretenimento, mas também representam uma conexão profunda com as tradições ancestrais, enraizadas na história e vivência das comunidades rurais. Permeadas por séculos de tradição, elas enfrentam hoje desafios significativos em meio às mudanças socioeconômicas Urbanização, migração e influências da mídia e da indústria cultural vêm transformando gradualmente essas ce-

lebrações, adaptando-as aos contextos e gostos contemporâneos. O pedagogo, Judas Tadeu de Campos descreveu em 2007, que já era notado, mesmo em cidades pequenas que apresentam manifestações de cultura popular se distanciavam da tradição, com uma parte significativa de moradores ligada à zona rural. “Do ponto de vista cultural e econômico, a comunidade, em suas escolas, prepara todo esse entorno festivo, tão ligado à indústria cultural e tão distante de suas tradições Isso mostra o grau de penetração da cultura produzida de forma industrial em nossa sociedade e como ela se tornou hegemônica, mesmo nos lugares mais afastados dos grandes centros urbanos” Apesar das mudanças, é possível notar que o São João mais próximo das raízes e dos traços populares ainda persiste no interior Mas é uma realidade que esses traços vão se perdendo ao longo do tempo e sendo transformados em novas coisas, o que não é essencialmente ruim, mas um possível “risco” à identidade tradicional.

entre anarrie e trupes

Seguindo os passos das danças da quadrilha e do coco de roda, acompanhamos o compasso da história dos folguedos de Alagoas

Éjunho de novo Os vestidos floridos de chita e os chapéus de palha começam a aparecer nos comércios locais, como um par perfeito. As vestes esperam pelos dias de celebração, marcando o meio do ano, prontas para lembrar aos festeiros que em Alagoas se faz tradição. Estado marcado pelo colonialismo retém para si as muitas faces de uma cultura, expressando por meio de artes e saberes, e, neste caso, com as danças tradicionais

Movimentação do corpo, expressão física do êxtase dos sentimentos. É possível definir o que é dança, e o ato de dançar, de inúmeras formas. Segundo especialistas, a dança é uma das atividades mais antigas e significati-

vas para o ser humano, as práticas acontecem desde o período antes de Cristo. E para a identidade de um povo, cada dança popular e tradicional carrega consigo uma parte da narrativa histórica. Com os movimentos, manifestam-se significados e aprendizados acerca de acontecimentos que ocorreram há anos De tal forma se inicia a história das danças tradicionais de Alagoas, totalmente entrelaçada com as culturas ancestrais dos povos que por aqui passaram. O coco alagoano, a quadrilha junina, o guerreiro, o pastoril, entre muitas outras manifestações folclóricas, dizem muito a respeito da trajetória que o povo alagoano construiu ao longo das décadas. Em meio a TRADIÇÕES

15 FORA DA CAIXA
^

tantas mudanças que o tempo provoca, o que pode ser capaz de fazer resistir tamanhos saberes geracionais?

Para Hortencia de Farias, brincante da Companhia Cultural Flor Q’se Cheire, a força que conduz a resistência das danças alagoanas se dá pela persistência de alguns grupos, mestres, mestras e brincantes apaixonados, que, mesmo com pouco apoio das autoridades, recusam-se a encerrar seus legados preciosos. O grupo é um exemplo de como a arte alagoana, especialmente as danças tradicionais, ainda é celebrada

RESISTÊNCIA DAS DANÇAS ALAGOANAS SE DÁ PELA

PERSISTÊNCIA DE GRUPOS

APAIXONADOS QUE SE

RECUSAM A ENCERRAR

SEUS LEGADOS PRECIOSOS

Por meio de um encontro de pessoas com o peito aberto e o corpo pronto para aprender e dançar, a herança cultural se faz presente em todos os folguedos que as brincantes apresentam A Companhia Cultural Flor Q’se Cheirepossui em sua composição os grupos de Quadrilha Junina Flores de Seu Jão, o Coco de Roda Cheiro de Fulô, a Ciranda das Flores, o Pastoril Flores de Maria, o Peneira das Flores, o Guerreiro Lírios de São José, e a Baianá Alfazemas Cheirosas, além do grupo de artes cênicas e canto livre. Todos são compostos, em sua maioria, por mulheres corajosas e determinadas, que em plena pandemia somaram o desejo em comum pela qualidade de vida que a arte proporciona, resultando em um grupo cheio de cores e que exalam a cultura e a criatividade alagoana

Em meio a tanta alegria e cumplicidade, as tradições enfrentam grandes dificuldades para se manterem vivas e atuantes, diz Hortencia “Pouca coisa mudou do século passado para cá. Os grupos continuam se deslocando de uma cidade para a outra, de um bairro para outro. Sentimos a falta de estrutura, a dificuldade do distanciamento e falta de interesse de gestores para inclusão dos grupos”, comenta.

FORA DA CAIXA
16 TRADIÇÕES
R e p r o d u ç ã o : R e d e s S o c i a i s / A r q u i v o p e s s o a l
Hortencia de Farias é brincante da Companhia Cultural Flor Q’se Cheire e exemplo de valorização da dança

Segundo Hortencia, os figurinos são caros, os integrantes que geralmente se deslocam da zona rural e das periferias da cidade não medem esforços para participar e arcar com as indumentárias, os adereços e tecidos, muitas vezes deixando algo básico para suas famílias “É preciso um olhar inteligente dos gestores, ao compreenderem que os folguedos são importantes e fundamentais para a vida do nosso Estado”, completou.

Apesar do número reduzido, ela enfatiza que já é possível acompanhar um movimento das novas gerações, algumas categorias que começam a levantar as bandeiras em defesa e promoção das danças. Para a brincante, a educação tem um papel exemplar, os professores em sala de aula devem buscar o fomento da valorização das tradições culturais. “O jornalismo, através dos canais de comunicação, pode levar conteúdos que estimulem a juventude a ter orgulho de sua ancestralidade”, acredita

DE PAI PARA FILHO

Em se tratando de tradição junina, o que não pode faltar é a quadrilha. Embalando o nosso imaginário com todos os símbolos que acompanham esse momento tão especial no Nordeste, o balancê e a sincronia tão marcantes preenchem as festas de junho, e até nos meses posteriores em algumas ocasiões Diogo Santos (foto ao lado), presidente da Quadrilha Amanhecer no Sertão desde a sua fundação, no ano de 2002, conta que o que mantém a tradição viva até hoje é o repasse do saber geracional, de pai para filho, de modo que podemos assistir, mesmo que com uma cara

TRADIÇÕES

nova, as tradicionais danças de quadrilha junina Fruto de muito esforço e dedicação, para Diogo, a maior dificuldade se dá pela falta de valorização dos folguedos “Não temos, por parte do poder público, um grande incentivo. Nós estamos aqui, no estado e no município, com as leis de incentivo à cultura desativadas e isso gera muita dificuldade É preciso tratar o segmento da cultura popular de uma forma mais profissional”, critica. Mesmo que ainda haja certa mudança, ela acontece a passos lentos, e isso acarreta em empecilhos para o segmento “A cultura não é somente lazer ou coisa de gente desocupada. Cultura é um segmento importante e cada vez mais profissional”, defende.

Nas grandes cidades, um fenômeno bastante comum é a perda de elo comunitário A interação entre vizinhos e a realização de festas nas ruas e portas de casa têm se tornado cada vez mais escassas. Esse fato afeta diretamente aos grupos culturais, segundo Diogo. Os grupos de folguedos buscam resgatar esse senso de comunidade, e, para isso, as novas gerações têm um papel fundamental na continuidade do fazer cultural “É a nova geração que carregará a herança e a bagagem de toda essa tradição, e, dessa forma, os grupos permanecerão acompanhando toda a evolução da sociedade. Vivemos um momento em que os grupos estão cada vez mais se profissionalizando e buscando meios formais de serem sustentáveis através da economia criativa, da rentabilidade da cultura” É um novo desafio permanecer com os grupos vivos, não só como forma de entretenimento, mas também como meio de sustento de muitas famílias

Para o presidente da Amanhecer no Sertão, é preciso que o artista passe a se enxergar como tal, para acreditar que é possível viver da arte, ou exercê-la como forma de complementar a sua renda, para que ninguém seja obrigado financeiramente a deixar de realizar essa manifestação cultural tão significativa.

Essa arte possui um valor inestimável para quem produz. Os folguedos alagoanos portam uma grande bagagem ancestral, marcada e explorada em cada novo ensaio e encontro dos grupos Diogo Santos revela que existe um conflito muito comum para aqueles que brincam com as danças. “Quando falamos de folguedos, logo lembramos de cultura popular, ancestralidade e tradicionalismo E caímos muito no conflito de evolução e manter uma tradição Eu acredito que é necessário essa modernidade dos grupos, tanto na questão da coreografia, do figurino, da musicalidade e da teatralidade” Para ele, existem, sim, características marcantes de cada segmento, mas a estilização se fez necessária ao longo do tempo.

As quadrilhas atualmente passam por um grande movimento de transformação, partindo da tão conhecida “quadrilha matuta”, onde as jovens usam vestidos de chita, babados de renda, tranças no cabelo e flores para complementar, já os jovens se adornam com blusas xadrez e calças remendadas com pedaços de tecidos coloridos. A dança desse estilo é marcada pela marcha e arrasta-pé A quadrilha estilizada busca fugir um pouco dos moldes conhecidos. Lançando mão de novos recursos, a exemplo de figurinos, sonorida-

FORA DA CAIXA
18 TRADIÇÕES

des, ritmos e temas para a apresentação Sendo, sobretudo, influenciadas pelas competições, os grupos de quadrilhas estilizadas buscam a cada ano inovar em suas narrativas artísticas. A avaliação se dá pelo modo de dançar, de se expressar e de se vestir. E ainda em busca do inovador, a variação mais recente que ocorre nos grupos juninos são as quadrilhas recriadas, nas quais o tema é ainda mais fundamental para as produções Surgem novos personagens, novos cenários e efeitos coreográficos Buscando um teor mais teatral através das danças, as quadrilhas recriadas são identificadas como um verdadeiro espetáculo. Tais mudanças ocorrem em decorrência dos campeonatos e concursos que os grupos participam e os levam a pensar além do tradicional, a fim de

percorrer um novo caminho que seja dinâmico e converse com quem chega e quem já está no meio, resultando em um movimento que promete perdurar e alcançar ainda novos objetivos. A Quadrilha Amanhecer no Sertão foi vencedora no concurso Forró e Folia de 2023, mostrando que a brincadeira entre o novo e o tradicional é possível e traz resultados.

“AS

PRÁTICAS CULTURAIS

SÃO

CRUCIAIS PARA QUE NÃO OCORRA O DESAPARECIMENTO DAS DANÇAS POPULARES”

NILTON RODRIGUES, DO COCO DE RODA XIQUE XIQUE

19 TRADIÇÕES
Grupo de Coco de Roda Xique Xique, surgido no bairro do Jacintinho, na capital alagoana, é referência em Alagoas

No coração da cidade de Maceió, há 24 anos atrás, foi fundado o grupo de Coco de Roda Xique Xique. Em meio às festas de Santo Antônio, padroeiro da comunidade do bairro do Jacintinho, o grupo surgiu para animar as festividades. Ao som marcante dos trupés, que são as batidas no chão com os pés feitas pelos brincantes durante a dança, os fundadores marcaram para sempre a vida de toda aquela comunidade. Hoje possui mais de 90 componentes entre dançarinos, músicos, equipe de apoio e direção, realizando um trabalho social com a juventude da comunidade em que tudo começou, através de atividades culturais. O grupo é o maior campeão dos festivais de coco de roda alagoano, possuindo nove títulos de concursos pelo estado.

Para Nilton Rodrigues, coordenador do Coco de Roda Xique Xique, é inevitável que as danças tradicionais acompanhem as mudanças. Para isso, é necessário então absorver a modernidade para que dessa forma as manifestações possam resistir. Hoje o grupo representa essa manifestação cultural ao redor do país, sendo referência em Alagoas. “Ainda assim, as dificuldades são diárias A falta de políticas públicas, de apoio financeiro e de espaço para ensaios, além da violência, são alguns dos problemas enfrentados pelos grupos culturais para manter vivas suas atividades”, enfatiza. No seu entendimento, as práticas culturais são cruciais para que não ocorra o desaparecimento das danças populares alagoanas. Ele cita um projeto realizado no grupo, um trabalho de pesquisa que juntou a juventude aos mestres patrimônios vivos para a absorção de conhecimento pela turma do coco contemporâneo para manter

as tradições da dança. “Outros segmentos culturais poderiam ser beneficiados caso seguissem esse exemplo, pois só existirão essas danças no futuro se as mesmas forem passadas hoje para as novas gerações”, sugere.

Atualmente, os grupos de coco podem participar anualmente do Festival Alagoano de Coco de Roda. Hoje existem os festivais (campeonatos) que incentivam muito os grupos. Nilton afirma que existem ligas que representam esses segmentos culturais, que lutam para que essas atividades não sejam restritas ao período junino, mas, sim, façam parte do calendário de atrações da cidade durante todo o ano. É preciso entender que a cultura está no dia a dia, na alimentação, no sotaque, nas cores e nos hábitos Celebrar o que é produzido pela comunidade, por quem faz Alagoas, deve ser prioridade”, afirma Nilton.

Muitas são as alegrias compartilhadas pelos grupos. O orgulho de ser brincante e entusiasta da cultura é comum a todos que fazem parte desse segmento, as emoções são parecidas e divididas entre a comunidade. Por outro lado, as dores e dificuldades também são semelhantes e perpassam a vida dessas pessoas por igual A evacuação provocada pela mineração de salgema da empresa Braskem em alguns bairros na cidade de Maceió, como Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e Farol, impactou profundamente as relações e vínculos entre os integrantes que moravam nessas localidades Hortencia acredita que a Braskem enterrou um capítulo muito importante da nossa cultura popular. “O bairro de Bebedouro, um dos maiores celei-

FORA DA CAIXA 20 TRADIÇÕES

ros da nossa diversidade cultural do Estado, foi totalmente afetado Como refazer essa história? Os poucos espaços encontrados após o desastre terão que refazer caminhos e descortinar novos horizontes”, diz. Nilton revela uma realidade ainda mais difícil. “Os grupos desses locais praticamente deixaram de existir, pois os membros se espalharam por outros bairros, dificultando que continuassem participando”. A distância e a carência do convívio diário afetou a sobrevivência dos grupos, relata Diogo. “Os bairros de Bebedouro e do Mutange são tradicionais no que tange a cultura popular, sobretudo

os grupos de folguedos, como coco de roda e quadrilha Por isso, ocorreu a separação do elo comunitário que havia ali”, conclui. É com o conhecimento e a ação de muita gente que as danças se realizam. É tocar, dançar, cantar e viver das cores e sons do nosso “São João” Quem participa não se cansa e quem assiste não esquece. É necessário que haja diálogo, políticas públicas, reconhecimento, parcerias e trocas a fim de que essa manifestação cultural não se perca, além de espaço, cuidado e valorização que não se amarrem apenas em junho, mas possam fluir todo o ano, pois nossa cultura se faz todos os dias.

FORA DA CAIXA 21 TRADIÇÕES
F o t o : F e l i p e S o s t e n e s
Manter as tradições através das danças é uma das maiores formas de preservação da cultura das festas juninas

As mais tocadas do São João

Os impactos da plataformização no consumo de música em meio às tradições juninas

23

Com a modernidade dos novos tempos, o simples ato de celebrar em torno de uma fogueira deu lugar a festival grandioso e famoso A nova festa de São João tem novos símbolos, estética e jeitos diferentes de celebrar essa festividade A reunião em torno da fogueira com milho e pipoca na rua da vovó praticamente está desaparecendo No lugar, um espetáculo com foco na rentabilidade e alcance midiático e, muitas vezes, em torno de um palco para realização de shows musicais com gêneros para além do forró, xote, xaxado e baião, comuns nessa época

Com esse novo panorama atravessado por mudanças na sociedade, temos o nascimento do “São João Massayó”, nome dado pela Prefeitura de Maceió à programação promovida pelo município. Da tradição, apenas a referência ao nome “Massayó”, ou “Massai-ó-k”, como os indígenas denominavam o Riacho Salgadinho, antes conhecido como Riacho Maceió, curso d’água que tangenciava a vila que depois se tornou capital de Alagoas A origem do nome indígena quer dizer “o que tapa o alagadiço”. A festa poderia ser a ambientação do nosso episódio do Black Mirror, e na sinopse você verá como a programação deste evento pode ser impactada diretamente por estes fenômenos sociais da vida real e que são atravessados pela tecnologia. Depois de dois anos sem festas, devido a pandemia de covid-19 que assolou o país, a Prefeitura de Maceió resolveu fazer um mega evento no São João de 2022 A proposta era dar uma “repaginada” na tradição, realizando, assim, um festival multicultural para movimentar a cidade num período de baixa temporada pa-

COMPORTAMENTO

ra o turismo. Tudo isso com a presença de vários artistas conhecidos da mídia em enormes estruturas para shows. Logo em seu primeiro ano, foram 15 dias de festa, espalhada em três polos diferentes localizados nos bairros do Tabuleiro do Martins, que receberam quadrilhas, Benedito Bentes e Jaraguá, palco para shows de artistas locais e nacionais Jaraguá foi a localidade que concentrou a maior parte dos shows realizados, recebendo, naquele ano, cerca de 1 milhão de pessoas, que assistiram Ludmilla, Gusttavo Lima, Alok, Luan Santana, Thiaguinho, Xand Avião, Nattan, Pedro Sampaio, Léo Santana e Zé Vaqueiro. Em 2022, o São João movimentou algo em torno de R$ 100 milhões na economia local.

Após o sucesso de público e renda, a realização do São João de Maceió nos mesmos moldes em 2023 estava garantida. O evento teve duração de 30 dias e programação em sete polos diferentes, dentre os quais Jacarecica, Graciliano Ramos, Jacintinho, Fernão Velho, Clima Bom, Benedito Bentes e em Jaraguá. Este último bairro, mais uma vez, foi destaque na programação de shows, recebendo diversos artistas como Barões da Pisadinha, Alok, Juliette, Leonardo, Ivete Sangalo, Simone Mendes, Gusttavo Lima, Hugo e Guilherme, Léo Santana, Ana Castela, Zé Vaqueiro, Zezé di Camargo e Luciano, Wesley Safadão, Tarcísio do Acordeon, Murilo Huff, César Menotti e Fabiano, Taty Girl, Gustavo Mioto, Thiaguinho, Bell Marques, Jonas Esticado, Luan Santana e João Gomes. A festa junina moderna resultou numa movimentação financeira de R$ 351 milhões para a capital alagoana

25

MEMÓRIAS DE UM PASSADO (NEM TÃO DISTANTE ASSIM)

Este novo “São João Massayó” foi um marco significativo para as mudanças culturais da cidade. A matéria São João começa em vários bairros de Maceió, publicada em 14 de junho de 2015 pelo site Almanaque Alagoas, retrata as mudanças que ocorreram nas festividades e na na programação da capital alagoana num passado bem recente. O indicativo das diferenças aparece justamente no subtítulo: Mais de 50 arraiais estão preparados para abrilhantar os festejos juninos na capital. No decorrer do texto, vemos que o arrasta-pé era garantido em vários arraiais espalhados pelos bairros da cidade, sendo o ritmo predominante. A matéria quantificava ainda o número de eventos realizados e ali estavam apenas os inscritos no chamado “Edital dos Arraiais dos Bairros”, que oferecia uma ajuda de cus-

to da Prefeitura de Maceió na época O incentivo financeiro por parte do executivo municipal era recorrente para ajudar na organização de festas juninas tradicionais. Na matéria, é possível ver ainda os nomes dos arraiais realizados em cada bairro da cidade. Para além dos arraiais, com uma programação um pouco diferente, os principais polos da folia são os mesmos. Benedito Bentes, que na época possuía pouco mais de 200 mil moradores, recebeu uma programação musical com grandes atrações locais, tendo o show de Jorge de Altinho, cantor e compositor de forró, como um dos principais nomes anunciados. O estacionamento do Jaraguá, também foi palco de música que vinham do concurso de quadrilhas Ou seja, ao que parece, as atrações nacionais, como vemos hoje em dia, não eram comuns nas festas juninas da cidade promovidas pelo município.

FORA DA CAIXA 26 COMPORTAMENTO
O Polo Jaraguá, no centro histórico de Maceió, desde 2015 vem recebendo shows de artistas regionais e nacionais

Interrompi sua leitura?

Vem curtir sem anúncios

Siga o perfil da Fora da Siga o perfil da Fora da Caixa no Caixa no Spotify Spotify e fique por e fique por dentro das nossas playlists! dentro das nossas playlists!

Continue sintonizado...

Negociando agora com o algoritmo

Em entrevista à Fora da Caixa, pesquisador Victor Pires analisa as mudanças nos padrões de consumo musicais

28

Oano de 2015 ficou para trás e hoje existem outros fatores que definem os eventos relacionados ao São João da cidade que decidem o que toca na “playlist da festa”. Na visão da sociologia, ciências humanas que estuda a sociedade, para que as tradições sejam mantidas, é necessário que haja a inclusão de novos costumes, já que festas populares são passíveis de mudanças que acompanham os processos do mundo E é inegável constatar que hoje vivemos este processo intenso da mudança cultural, inclusive, e sobretudo, impulsionada pelas tecnologias digitais da informação e da comunicação O professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Victor Pires, que estuda as relações entre comunicação, mídia e música, dá uma ideia das mudanças que ocorrem nos padrões de consumo musicais e como isso influencia na mudança de repertório. Tendo como base as novas mídias digitais, as plataformas são o assunto de destaque na entrevista a Ana Cecília Oliveira. Victor explica como elas são importantes hoje em dia Saber o que toca no Spotify é ter certeza do que vai vir na nova festa junina. A chamada a indústria musical, teoria desenvolvida pelos filósofos e sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer, pode ser um caminho que nos ajude a pensar, claro que considerando os diferentes contextos dos tempos da teoria e de hoje em dia. Pesquisadores da Escola de Frankfurt, na Alemanha, eles criaram o conceito para tratar sobre a padronização do consumo, a partir da transformação de certas obras culturais em produtos, descaracterizando a reflexão proposta origi-

nalmente pela arte. Na lógica do capitalismo, surge uma nova forma de distribuição, comercialização e divulgação, criando novos serviços e novas demandas Em suas palavras, o professor afirma que a forma de consumir música é atravessada por diversas questões latentes na sociedade, além de tudo está é uma dinâmica que envolve todos aqueles ligados a estrutura musical, “Quando falamos em consumo digital de música, estamos falando de uma faceta da tecnologia e da cultura A tecnologia transformou a sociedade e a cultura e, consequentemente, a forma como nos relacionamos com a música.”, afirma Victor, autor de três livros e organizador de outros dois em colaboração, sendo o último deles “Deixa a gira girar: corporeidades musicais em tempos de escuta conexa”, lançado pela Editora UFMG, em 2023, de autoria dele com os professores Jeder Janotti e Tobias Queiroz.

FORA DA CAIXA - O consumo digital das músicas possui influência nas mudanças dos ritmos que envolvem tradições populares?

VICTOR PIRES - As mudanças passam, certamente, por outras questões sociais mais amplas que influenciam direta e indiretamente a música. Quando falamos em consumo digital de música, estamos falando de uma faceta da tecnologia e da cultura. A tecnologia transformou a sociedade e a cultura e a forma como nos relacionamos com a música Não é certo achar que os artistas vivem em bolhas isoladas dessas transformações As transformações tecnológicas e midiáticas não impactam só o público e sua forma de consumir música, mas também impactam os artistas e sua forma de produzir

FORA DA CAIXA 29 COMPORTAMENTO

FC - Quais mudanças mais impactaram no novo jeito de consumir música?

VP - Gosto de pensar, como sugeriu Raymond Williams [sociólogo e teórico da comunicação britânico], não apenas nas novidades em si, mas também nos aspectos emergentes, residuais e hegemônicos da cultura. Quando pensamos nos ‘streamings’, vemos como novas lógicas coexistem junto com lógicas de décadas passadas. Com a popularização das playlists, por exemplo, vemos uma revalorização dos singles musicais, prática comum no surgimento da indústria fonográfica. O álbum musical, principal produto editorial no final do século passado perde um pouco a sua importância em detrimento das playlists e lançamentos de singles Mas eu diria que a principal mudança está no jeito que as plataformas digitais oferecem a música e a cobrança de mensalidades e assinaturas fazem da música hoje não mero um produto, mas um serviço Não se paga mais pela música em si, mas pelo acesso aos catálogos.

FC - Há uma explicação para o meio digital de influenciar e modificar o que é consumido hoje?

VP - Não existe uma, mas várias possíveis explicações para a influência das tecnologias digitais. Por exemplo, em trabalhos recentes, eu e os professores Jeder Janotti Junior e Tobias Queiroz, temos proposto como a escuta musical tem se transformado com as plataformas digitais, através de um conceito que chamamos de “escuta conexa ” . Ou seja, hoje a escuta musical não passa só pela dimensão do sonoro, mas também, sobretudo, por um engajamento contínuo com tecnologias, dispositivos e plataformas.

FC - Quais são as mudanças mais significativas na indústria musical devido à tecnologia?

COMPORTAMENTO
F o t o : L u c a s N ó b r e g a

VP - Uma das coisas que percebemos hoje é o direcionamento do consumo musical através tanto da agência cada vez mais incisiva dos algoritmos de recomendação, quanto também das trends das mídias sociais Mas acho que isso só aponta para a existência e a transformação dos filtros e dos “gatekeepers” (conceito jornalístico usado para tratar originalmente das pessoas, no caso os jornalistas e editores, que decidem o que deve ser notícia nos meios de comunicação) de recomendação musical ao longo das últimas duas décadas Se antes tínhamos grandes veículos de comunicação pautando os lançamentos e as músicas das paradas de sucesso, vemos como, hoje, as plataformas adquirem mais e mais protagonismo, seja por meio da recomendação automatizada ou da curadoria das playlists de maior sucesso, por exemplo.

FC - Quais são os impactos negativos e positivos destas mudanças?

VP - Eu não diria se trata de impactos positivos ou negativos, mas é possível perceber como a estrutura da indústria tem criado novas hierarquias e lugares de privilégio Por exemplo, entrar em algumas playlists editoriais do Spotify é conseguir atingir públicos muito maiores do que as bandas atingiriam sozinhas Para muitas bandas, entrar nas playlists mais assinadas é uma das formas de “fazer sucesso ” As playlists, por exemplo, tem se tornado um lugar de evidência, um “filtro” do que é “ novo ” e “essencial” nas plataformas E isso cada vez mais é controlado de forma automatizada, por meio de playlists geradas por algoritmos que pesam engajamento positivo como plays, likes e saves. Acredito que disponibilizar sua música nas plataformas de streaming, por si só, não garante que sua música vai ser ouvida, garante apenas que ela estará disponível

31

FC - Você acredita que as plataformas de streaming musical têm a capacidade de influenciar a programação de shows?

VP - Sim, com certeza Não digo as plataformas em si, mas os dados gerados por essas plataformas, a partir das práticas de escuta dos seus usuários. É comum os agentes e empresários de bandas e artistas delimitarem suas prioridades de circulação em cima das cidades que se têm mais ouvintes.

FC - Em meio a diversas maneiras de impulsionar músicas nas plataformas, e todas financiadas com dinheiro, como os artistas independentes podem se encaixar neste novo cenário e chegar a paradas musicais e serem contratados para um show?

VP - Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Os artistas independentes estão tendo cada vez mais que se virar, buscar entender o funcionamento das plataformas nas quais compartilham sua música e tentar se fazer visíveis lá dentro. Uma das estratégias que mais se tem visto é a tentativa de artistas incentivarem os fãs a fazerem o pré-save (salvamento antecipado) de suas músicas para, quando a música for lançada, ela se destaque e seja notada pelos algoritmos que analisam as atividades dos usuários com lançamentos Isso se tornou um exemplo de como o músico, além de compor, tocar e gravar, precisa entender de estratégias de divulgação para tornar sua música “visível” em plataformas mais dependentes dos algoritmos. Negociar com eles é essencial, hoje, seja você um artista pequeno médio ou grande

Repertório dos artistas nos shows são definidos pelo nível de sucesso alcançado pelas músicas nas plataformas

FORA DA CAIXA 32 COMPORTAMENTO

Escolhido para você

Spotify, música para todas as pessoas

O consumo musical nas plataformas digitais e o papel da tecnologia na transformação da cultura

33

Segundo Vitor Braga, professor de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) que es-

tuda comunicação e mídias digitais, a cultura popular sempre foi atravessada pela TV, o rádio, o impresso e a fotografia, meios utilizados para, sobretudo, guardar a memória de um povo E é com essa perspectiva de impactos iminentes dos meios de comunicação que a cultura e seu consumo continuam, e continuarão, sendo atravessadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação

“O rádio e a TV já tiveram uma importância para isso No primeiro momento em que o Papa discursou no rádio, em 12 de fevereiro de 1931, inaugurando a emissora radiofônica do Vaticano, isso teve um impacto na comunicação. Ele impulsiona a saída de uma condição na qual não havia comunicação de massa. Uma pessoa que era analfabeta consegue agora ouvir e compre-

ender o papa Isso foi um salto tecnológico que impactou o campo da comunicação de maneira decisiva As pessoas podem estar mais conectadas ao conteúdo”, exemplifica. O papa mencionado foi o Pio XI durante o lançamento da “Statio Radiophonica Vaticana”, um fato que proporcionou a ampliação do discurso do papa para diversas partes da Itália, sendo notícia em outros países, inclusive.

Com esse exemplo, Braga nos leva ao passado, em um primeiro momento da introdução de uma comunicação de massa na sociedade, a partir do recurso sonoro. Aqueles que não tinham acesso à informação, em especial os analfabetos e os que não tinham acesso à educação formal, puderam, enfim, ouvir uma mensagem por completo. A mensagem chegou para um público mais amplo. Essa democratização às mensagens orais abriram alas para a criação de novas ferramentas de acesso, descobertas

34 FORA DA CAIXA
F o t o : T h e E v e r e t t C o l l e c t i o n
COMPORTAMENTO

e globalização da música. O impacto da criação do rádio influenciou, de certa maneira, no invento, décadas mais tarde, de novas plataformas sonoras, como o Spotify Com mais de cinco bilhões de downloads só em 2023, o “gigante” das plataformas de streaming musical, como é considerado, consegue reproduzir músicas para um número significativo de pessoas Fundado em 2006, a plataforma está disponível para mais de 60 países desde 2017. Em números de ouvintes, a plataforma fechou o ano passado com 602 milhões de usuários ativos por mês, Em relação aos assinantes da versão Premium, já são mais de 236 milhões de usuários nesse modelo pago. Ao incluir os não pagantes, o número de usuários sobe para 551 milhões de contas. A receita anual fechou por volta de US$ 4 bilhões

A partir desses números, é possível entender como se transforma as formas de consumo da me música, que agora se sustenta por meio de assinaturas mensais das plataformas digitais. Segundo o site da Spotify, mais de 53% da população on-line ouvem áudio no digital. São ouvintes que, provavelmente, descobrem, organizam e consomem mais conteúdo do que nunca Essas mudanças refletem diretamente na indústria musical e a forma desse mercado gerir os produtos fonográficos, gerando a redução das vendas de álbuns e faixas individuais, já que os consumidores podem ter acesso a uma biblioteca inteira de músicas apenas com um valor fixo mensal As playlists também desempenham um papel importante. Os ouvintes descobrem novas músicas por meio delas, o que fazem as gravadoras e artistas focarem na promoção e na inclusão de faixas em playlists populares

COMPORTAMENTO F o t o : S t e f a n o O p p o F o t o : S t e f a n o O p o

para aumentar sua visibilidade e alcance. Mudanças que também impactam o modelo de remuneração para artistas e gravadoras, que, em vez de receberem por vendas de álbuns e downloads, agora ganham royalties com base no número de reproduções nas plataformas de streaming O artista tem de se esforçar então para produzir singles, já que a reprodução da canção, e não do álbum, é mais valorizada É uma espécie de retorno a um passado não tão distante asso, da indústria fonográfica, até meados dos anos 80, quando as gravadoras lançavam discos vinis (os velhos “bolachões”) no formato de compactos simples e duplos, contendo duas ou quatro canções, na maioria das vezes antecipando faixas do álbum completo que viria a ser lançado posteriormente. Todas essas transformações trazem uma nova dinâ-

mica para o consumo de música, na avaliação de Vitor Braga. “O uso frequente desses dispositivos tecnológicos gera uma preferência e um desinteresse em outras práticas A pessoa fica presa e não consegue contemplar uma obra completa, porque ela não consegue ter esse nível de imersão, o que gera um impacto negativo, uma perda da capacidade cognitiva de entender. Como a gente consome esse conteúdo, isso reflete na produção de uma canção. Imagina hoje uma música de mais de sete minutos como ‘Bohemian Rhapsody’, da famosa banda britânica de rock Queen, fazendo sucesso! Isso muda porque as pessoas não têm paciência, concentração e foco, como antes”, argumenta Braga, que é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas l U i id d F d l d B hi (UFBA)

COMPORTAMENTO FORA DA CAIXA 36
Uso frequente dos dispositivos tecnológicos gera preferência por certo consumo de música, diz Vitor Braga

DA PLAYLIST AOS PALCOS

A nova lógica de consumo baseada, principalmente, na moda das playlists contribui para entendermos um processo crucial de escolha da composição da programação dos shows Os organizadores de eventos se baseiam nessas tendências atuais do mercado da música para montar suas programações, priorizando artistas com mais potencial de atrair patrocinadores e parceiros Os que possuem um apelo comercial maior e uma base de fãs mais engajada para aumentar as oportunidades têm mais chances de ser convidados. Alguns desses critérios indicam um pouco como se dá a escolha da programação, inclusive, do São João de Massayó. Baseados nisso, podemos fazer uma correlação entre os mais ouvidos do Spotify e a programação das festas juninas, observando os gráficos de consumo das músicas.

A VOZ DO PALCO

Para entendermos agora a visão de quem consome, Vitor Silva, estudante de 24 anos, diz ser consumidor assíduo das plataformas digitais, como o Spotify, e frequentador do São João de Massayó desde a primeira edição do festival. Ouvinte diário de música, Os fones de ouvido fazem parte do seu look. Seu gosto é eclético, escutando música de qualquer tipo, incluindo forró Para ele, é o cardápio de artistas que estão no “hype” (é o que está “dando o que falar”) que mais lhe agrada no São João Massayó. “No último ano, fui somente nos dias em que tinha algum artista que eu gostava muito e que ainda não tinha visto ao vivo”, relembra. Ele diz não lembrar como eram as festas juninas de antes. Sua lembrança é vaga, transportando-o para os arraiais e as foguei-

ras na porta de casa e chamando a família para confraternizar comendo pratos típicos Apesar de ter gostado muito das atrações trazidas até o momento, ele sente falta de mais atrações locais e regionais. “Se o evento é ligado ao São João, poderia ter mais atrações ligadas às tradições musicais da festa em si. Tudo bem mesclar com outros ritmos, mas isso não pode atrapalhar o sentido principal do evento”, opina.

PONTO DE VISTA DA PREFEITURA

Em nota, a Prefeitura de Maceió disse que vem valorizando, desde a primeira edição, os artistas locais e investindo na promoção e manutenção de expressões artísticas, do turismo, do desenvolvimento econômico e da diversidade cultural, tendo como base o ritmo do forró e a gastronomia típica. Em 2023, 70% dos shows foram de artistas da região, totalizando 274 apresentações com 2 792 artistas locais O grau de satisfação com o evento, segundo o município, foi de 98,4%, enquanto 87% dos visitantes que estiveram na capital alagoana afirmaram que pretendem voltar nas edições seguintes. A pesquisa da prefeitura, que está em seu segundo ano, mostrou que, no ano passado, os impactos diretos do evento foram de R$ 289 milhões gerados por meio da compra de bens e contratação de serviços locais. Já os impactos indiretos ultrapassaram os R$ 62 milhões oriundos do turismo, da compra de bens e da contratação de serviços por participantes e organizadores, mas que não se relacionam à infraestrutura direta do evento O comércio de roupas e acessórios movimentou mais de R$ 114 milhões e a venda de alimentos, R$ 98,6 milhões O embelezamento rendeu R$ 59 milhões e transportes, R$ 17,5 milhões. (ACO)

COMPORTAMENTO FORA DA CAIXA 37

Música no Spotify em Alagoas (2023)

TOP 5 ARTISTAS

Felipe Amorim

Taylor Swift

Nadson O Ferinha

NATTAN

MC Cabelinho

TOP 5 MÚSICAS

'Love Gostosinho - Ao Vivo', por Felipe Amorim e NATTAN 'Leão', por Marília Mendonça 'Coração de Gelo', por WIU 'Novo Balanço', por Veigh 'Toca o Trompete', por Felipe Amorim

E o São João de Maceió?

PROGRAMAÇÃO (2023)

Barões da Pisadinha, Alok, Juliette, Leonardo, Ivete Sangalo, Simone Mendes, Gusttavo Lima, Hugo e Guilherme, Léo Santana, Ana Castela, Zé Vaqueiro, Zezé di Camargo e Luciano, Wesley Safadão, Tarcísio do Acordeon, Murilo Huff, César Menotti e Fabiano, Taty Girl, Gustavo Mioto, Thiaguinho, Bell Marques, Jonas Esticado, Luan Santana e João Gomes.

38

raizes da tradicao ~

A magia das simpatias, rituais e crenças

Reza a lenda que Maria, mãe de Jesus, quando recebeu o anúncio do Anjo Gabriel de que estava grávida por obra e graça do Espírito Santo, soube também da gravidez de Isabel pela mesma criatura celestial. Essa notícia fez a Virgem Maria viajar às pressas por cerca de 153 quilômetros em direção às montanhas da Judeia (região onde se situa Jerusalém e outras cidades bíblicas), onde morava a prima idosa a quem todos chamavam de “estéril” e já se encontrava grávida há seis meses. Durante cinco meses, por prudência ou vergonha, não sabemos ao certo, Santa Isabel não saiu de casa, situação que só mudaria com a visita de Maria para compar-

tilhar as boas novas: que tanto ela estava grávida do primeiro filho quanto a prima também O filho de Isabel viria a se chamar João Batista e seria o precursor de Jesus.

Por três meses, Maria ficou ao lado da sua prima Santa Isabel para lhe servir. Como precisava voltar para casa, Maria perguntou: “Como poderei saber do nascimento de vossa criança?” Isabel respondeu: “Vou acender uma grande fogueira, assim você poderá vê-la de longe e saberá que João nasceu”. Promessa também feita por Maria a Isabel quando do nascimento de Jesus No dia 24 de junho, Nossa Senhora avistou a fumaça no céu, se-

guida por chamas vermelhas Era o menino João Batista que tinha nascido e, mais tarde, se tornaria um dos santos mais importantes da Igreja Católica, São João Batista, último dos profetas e único santo a ter comemoração no dia do seu nascimento, e não no da morte, como de costume.

Embora essa seja a versão transmitida pela Igreja Católica para explicar o início e a razão da tradição da fogueira nas festas juninas, estudos indicam que essa prática remonta às tradições pagãs da Idade Média. Segundo as autoras Luana Cantalice e Maria Manuela Vitoria no artigo A sobrevivência de tradições ‘pagãs’ medievais nas festas juninas, o calendário litúrgico utilizado para criar e disseminar o cristianismo está relacionado ao simbolismo das festas camponesas. Essas festas surgiram em um período de ascensão política e cultural e de institucionalização do cristianismo.

Nas civilizações antigas, as divindades eram frequentemente honradas por meio da contemplação e celebração dos fenômenos naturais. De acordo com o livro O Ramo de Ouro, de Sir James George Frazer, o mês de junho, época do solstício de verão no Hemisfério Norte, era marcado por diversos rituais realizados por diferentes povos, como os celtas, bretões, bascos, sardenhos, egípcios, persas, sírios e sumérios Nesse período, o Sol atinge seu ponto mais alto no céu ao meio-dia, tornando o dia mais longo e a noite mais curta do ano. Esses rituais tinham como objetivo invocar a fertilidade da terra, estimular o crescimento da vegetação, promover a abundância nas colheitas e atrair chuvas para garantir o su-

sucesso das safras A presença das fogueiras condicionava interações específicas, como acordos entre líderes e trabalhadores, possivelmente melhorando a produtividade agrícola e fortalecendo os laços comunitários, ao mesmo tempo em que simbolizava poder e proteção, revelando a riqueza e complexidade das práticas ancestrais No Brasil, as festas juninas e fogueiras desempenhavam um papel importante como marco do início do inverno e meio de estabelecer contato e fortalecer laços com os povos indígenas locais. Essas celebrações coincidiam com rituais das comunidades nativas, envolvendo a preparação de plantações e colheitas

Segundo Benedito Prezia em seu artigo As raízes indígenas das festas juninas, as celebrações populares de origem portuguesa gradualmente absorveram elementos da cultura indígena. Estas festas eram organizadas por mestiços, conhecidos como caboclos ou caipiras, que habitavam as áreas rurais do Brasil. Mesmo com o avanço da urbanização, até meados do sécu-

FORA DA CAIXA

lo passado, as cidades mantinham vivas essas tradições festivas, destacando a marcante mistura cultural.

Os santos juninos, especialmente São João e São Pedro, tornaram-se símbolos associados aos heróis míticos da tradição tupi-guarani, como Tupã e Karaí. Prezia diz que é plausível que São João tenha sido relacionado a Karaí-ru-ete ou Karaí, uma entidade que se manifesta no fogo, nos raios e no estalo das chamas, uma figura venerada no panteão guarani. Essa fusão cultural explica a importância das fogueiras e das brasas nas celebrações, oferecendo uma visão fascinante das raízes profundas que sustentam o São João como uma das festas mais emblemáticas do Brasil

As fogueiras guardam representação simbólica antiga de proteção contra os mais espíritos e marcam também o nascimento de São João Batista, primo de Jesus Cristo, para tradição cristã, diz o folclorista João Lemos F o t o :

Detalhe de São João Batista no Mosaico Deesis (século 13), no Templo de Aghia Sophia, em Istambul, Turquia

O folclorista João Lemos destaca a dualidade das fogueiras, que há muito tempo foram consideradas protetoras contra os maus espíritos por alguns povos antigos Sob a influência do catolicismo, ele observa, surgiram outras interpretações, como a tradição cristã, que associa o acendimento de uma grande fogueira ao nascimento de João Batista, primo de Jesus. Segundo Lemos, as fogueiras acesas para Santo Antônio e São Pedro são uma consequência cultural das homenagens a São João, já que, na Idade Média, esses três santos já eram tão populares quanto hoje. “Sempre haverá mais de uma versão sobre alguns costumes onde o catolicismo está presente - se isso, claro, estiver relacionado a uma tradição não católica”, ressalta.

FORA DA CAIXA 41 ESPECIAL CURIOSIDADES
J o ã o L
m o s
R e p r o d u ç ã o F o t o : G e t t y I m a g e s
e
/
“TEM

MUITA INCOERÊNCIA

HOJE EM

NOSSO

SÃO

JOÃO. A

CULPA É DA MODERNIZAÇÃO, MAS NÃO PODEMOS DEIXAR MORRER NOSSA

TRADIÇÃO”

CORDEL, EXPRESSÃO DO SÃO JOÃO

Cicero Manoel fez um cordel intitulado O São João de antigamente e o São João de hoje em dia, expressando a sua preocupação com a perda da autenticidade e da essência das festas juninas. Nele, o autor critica a influência da modernização e da comercialização nas festas juninas, que acabam descaracterizando as tradições culturais Em um dos versos, ele fala:

“Tá muito modificado

Esse nosso São João, Quase ninguém faz fogueira”

Isso nos lembra uma tradição que acabou se perdendo durante o tempo, o batismo da fogueira. Espécie de variação paralela do batismo de água, é uma prática surgida da religiosidade popular, quando pessoas sem parentescos acendiam uma fogueira no dia 24 de junho, sem intermédio de um padre, para unir laços e se tornar padrinho e afilhados Uma prática da religiosidade popular bastante comum para agradar amigos que não eram casados ou amigos que não foram escolhidos para serem padrinhos na igreja. Um “jeitinho brasileiro”. Vem daí, inclusive, o antigo costume de pular a fogueira. O chamado “compadrio de fogueira” funcionava através

um ato de as pessoas saltarem o fogo de mãos dadas, de um lado para outro. Porém, o simples ato de pular sobre as chamas não era suficiente para estabelecer um vínculo especial. Segundo os devotos, uma oração ressoa no ar, clamando aos santos para que abençoem e ratifiquem essa união. A cada verso dessa prece, é como se os laços se estreitassem ainda mais, com o padrinho ou madrinha liderando e o afilhado repetindo, num elo de fé e comprometimento

O ritual em si possui duas formas distintas de realização: na primeira, com a fogueira ainda ardendo, um pedaço de madeira é retirado das chamas e depositado no chão Ali, a dupla une suas mãos direitas sobre as brasas, enquanto as palavras da oração ecoam pelo espaço, como uma promessa selada pelo calor do fogo. Na segunda abordagem, as cinzas já se acumularam, ou as chamas se tornaram brandas, permitindo que os participantes literalmente saltem sobre a fogueira. Nesse momento, a oração é entoada em uníssono, ecoando uma fé compartilhada e compromisso renovado:

FORA DA CAIXA 42
F o t o : C i c e r o M a n o e l / R e p r o d u ç ã o
ESPECIAL CURIOSIDADES
Cicero Manoel busca autenticidade das festas juninas

– São João disse.

E o afilhado responde:

– São João disse.

Na sequência, fala novamente o padrinho:

– São Pedro confirmou

E o afilhado repete a mesma frase:

– São Pedro confirmou.

Então o padrinho dizia:

– Pra você ser meu afilhado.

Nessa hora, o afilhado respondia invertendo o sujeito da frase:

– Pra você ser meu padrinho.

E o padrinho concluía atribuindo a bênção daquele batizado ao santo ou a Jesus Cristo;

– Que São João/Cristo mandou.

Esses atos de religiosidade popular simbolizavam compromissos para toda a vida. Padrinhos de fogueira eram considerados compadres verdadeiros Tanto que em alguns municípios, como em Coração de Jesus, no interior de Minas Gerais, há relatos de que a Igreja Católica não costumava batizar novamente as crianças que ela sabia terem sido batizadas na fogueira. Em vez disso, “apenas ministrava-lhes os elementos do ato do batismo faltantes, como o óleo, considerando, assim, o batismo de fogueira como autêntico”, informa a Secretaria de Cultura e Turismo da cidade. Em Uberaba, também no interior mineiro, estava associado à fé em São João e ao interesse em aumentar a quantidade de padrinhos para além dos padrões estabelecidos pela igreja

43
Fogueiras condicionavam acordos entre líderes e trabalhadores, melhorando a produtividade e fortalecendo os laços
ESPECIAL CURIOSIDADES

o misterio por tras das tradicoes juninas ~

Um dos fenômenos mais típicos desta época do anos, as simpatias são rituais que buscam receber “recompensa” de algum santo, a maioria de viés amoroso

Nos arraiais repletos de cores e sabores, as tradições ancestrais se misturam com a energia pulsante das danças de quadrilha e o aroma tentador das comidas típicas. Mas há algo a mais que paira no ar, algo misterioso e cativante: as simpatias, pequenos rituais carregados de superstição e esperança De amores não correspondidos a colheitas abundantes, os corações e os campos são preenchidos com os mais variados pedidos e crendices, dando um toque especial a cada volta na fogueira e estourar de fogos

A busca pelo conhecimento do futuro sempre foi uma constante na história da humanidade, levando ao desenvolvimento de várias práticas e rituais para prever e até mesmo influenciar os eventos vindouros. No contexto sertanejo, essa tradição se manifesta de forma particular, sobretudo nas festas juninas, nas quais o povo se volta para os santos venerados nesta época do ano em busca de orientação sobre diversos aspectos da vida, como o amor, o trabalho ou mesmo o clima. Um dos santos festejados é o Santo Antônio, o santo casamenteiro, que ganha destaque com os jovens fazendo

simpatias em sua honra durante as festividades, na esperança de encontrar um parceiro. Adentrando o vibrante universo das festas juninas, onde as tradições ancestrais se entrelaçam com a fé e a esperança do povo, Gilva Maria da Silva, de 56 anos, relata uma história que ecoa os tempos antigos, em que as simpatias eram o elo entre o humano e o divino.

Nas cintilantes ruas da sua infância, as jovens nutriam uma profunda devoção por Santo Antônio, compartilhando entre si segredos ancestrais sobre como decifrar o futuro amoroso. Essas tradições eram passadas de geração em geração por suas mães, que aprenderam os ensinamentos das avós e assim por diante Em meio a esse mistério e esperança, Dona Maria sentiu-se atraída a fazer a simpatia que mudaria a sua vida “Pegue uma bacia com água, acenda uma vela e deixe ela pingar na água. Reze uma Ave Maria e uma Salve Rainha e veja a letra que formou com os pingos da vela”, ensina. Um mês se passou e Dona Maria encontrou aquele homem que seria o seu companheiro pelos próximos 35 anos. E o detalhe mais fascinante dessa história? Seu

45 ESPECIAL CURIOSIDADES

nome começa com “L”, exatamente como a inicial que emergiu quando a cera quente da vela se misturou com a água durante a simpatia. Seu nome? Lucas Pereira.

OUTRAS SIMPATIAS E HISTÓRIAS

Nem só de amor vive o ser humano. Nas festas juninas, São Pedro é uma figura tão importante quanto Santo Antônio. Ele é o guardião das chaves do céu e considerado, por isso, o responsável por fazer chover e controlar as águas que caem. Dizem que, quando os trovões ecoam, é a barriga dele roncando ou ele movendo os móveis celestiais. Ele também é alvo de pedidos das pessoas que creem em simpatias. Uma delas: se você quiser proteger sua casa, por exemplo, no dia de São Pedro, coloque den-

ESPECIAL CURIOSIDADES

tro de um copo com água a chave da porta de entrada da sua casa e diga: “São Pedro, proteja minha casa, assim como protege de intrusos o céu; afaste todo e qualqqualquer mal da minha casa e com a ajuda do Anjo Guardião, não deixe entrar nenhum ladrão” Mas as preces vão além da proteção do lar. Também se pode pedir uma casa a ele com a simpatia de colocar uma chave novinha embaixo do travesseiro e envolvê-la em um papel branco com três pedidos detalhando como seria a casa ideal Depois, aconselha-se deitar e visualizar São Pedro e seus anjos em busca da nova casa enquanto dorme e guardar a chave na bolsa, procurando para encontrar e conquistar a casa dos seus sonhos. Mas afinal, quem foi São Pedro? E por que ele é considerado mesmo o porteiro da porta dos céus?

Segundo a Bíblia, ele foi um dos doze discípulos de Jesus Cristo. Seu verdadeiro nome é Simão Pedro. Ele era pescador nas águas do mar da Galileia antes de conhecer seu mestre, Jesus. Junto com seu irmão André, foi um dos primeiros seguidores de Jesus. No capítulo 16 do evangelho de Mateus, Jesus diz a ele: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” Daí vem a crença de que São Pedro é o guardião das portas do céu, já que seu nome, Pedro, significa “rocha”. Ele é o santo que dá continuidade às festas juninas, com seu dia sendo comemorado em 29 de junho. No entanto, limitar São Pedro apenas ao papel de guardião das portas do céu seria simplificar

FORA DA CAIXA 46
o t o : G i l v a M a r i a d a S i l v a / R e p r o d u ç ã o
Gilva Maria da Silva e o seu marido Lucas Pereira se casaram após ela realizar a velha simpatia da vela
F

sua importância, pois é o nome mais citado na Bíblia De acordo com a Igreja Católica, ele é considerado o primeiro papa da história Após a morte de Jesus Cristo, Pedro assumiu a posição de liderar os apóstolos, prosseguindo para levar a palavra de Deus para todos e fundando comunidades cristãs em Israel. O ministério de Pedro foi marcado por sua coragem e devoção, perdurando até por volta do ano 67, quando ele enfrentou o martírio nas mãos do Império Romano Um detalhe intrigante e comovente é que, ao contrário de Jesus Cristo, Pedro teria pedido para ser crucificado de cabeça para baixo, já que, segundo a história, não se sentia digno de morrer igual ao seu amado mestre.

É isso, desde dançar quadrilha, pular fogueira ou fazer uma simpatia, tudo está ligado ao passado, mesmo que o tempo tenha modificado as tradições e os detalhes dessas histórias não sejam claros para as pessoas. Os passos da quadrilha nos lembram dos nossos antepassados dançando nas noites de junho, celebrando a colheita. Pular fogueira nos aproxima daqueles que vieram antes de nós, compartilhando o mesmo calor que os aqueceu por gerações. E as simpatias? Elas trazem as crenças populares passadas de geração em geração, com histórias de amor ligadas à fé São gestos simples como esses, carregados de significados profundos, que nos conectam a nossas raízes. (MC)

FORA DA CAIXA 47
F o t o : G e t t y I m a g e s
ESPECIAL CURIOSIDADES
Estátua do Vaticano de São Pedro segurando a chave do Reino dos Céus, objeto que identifica o santo na arte cristã

AS espigaS de milhões!

De onde vem o milho que a gente come e como ele chegou até aqui? Alerta spoiler: não foi só pelo corredor de enlatados do supermercado

Muita gente pensa no milho apenas durante as festividades juninas Quando pensam, costuma haver sempre uma associação desse tipo de cultura aos cenários rurais - bem distante do imaginário das cidades - e com grandes áreas tomadas pelas plantações, formando monoculturas. Na capital alagoana, em meados de junho, é possível comprar o milho em diversos pontos da cidade, vendido em calçadas por “mão”, termo popularmente conhecido para medir a quantidade de 50 espigas, e não por quilo, como em muitos supermercados Ao longo do ano, também dá para encontrar minúsculas plantações dentro da cidade, em localidades bem próximas a grandes centros comerciais. Mas como o milho foi parar ali?

E, antes de tudo, como ele foi inserido no contexto nordestino? Afinal, a festa junina que se conhece, com canjica, bolo de milho, pamonha e mungunzá, não apareceu do nada, não é? Eita, quanta pergunta…

O milho, de nome científico Zea mays, teve origem na América Central do que hoje é conhecido como teosinto, sendo cultivado, segundo estudos científicos mais recentes, há mais de 9 mil anos por povos nativos locais, nos arredores mais próximos da bacia hidrográfica do Rio Balsas, no México. Outros trabalhos apontam que 7,5 mil anos atrás já havia um protomilho - uma variedade mais antiga entre as que já consideramos milho - sendo cultivado na Colômbia. Acredita-se, através de dados que envolvem estudos genéticos e arqueológicos publicados na revista Science de dezembro de 2018, que o milho só foi domesticado na região da grande Amazônia. Mas, peraí… Como assim “domesticado”?!

Domesticação é o processo pelo qual as plantas passam de adaptação ao meio de cultivo, interferindo ativamente no ciclo das plantas de forma que ela se adapte às condições que nós selecionamos, e não às condições normais do bioma de origem.

FORA DA CAIXA
~ 48

Imagina aí a seguinte fanfic: você foi fazer trilha em uma floresta e se perdeu

Morrendo de fome, você inventa de comer o fruto de uma planta que nunca viu na vida. Comeu, achou uma delícia e finalmente chegou o helicóptero do Corpo de Bombeiros para te resgatar Aí você, que não é boba nem nada, leva um montão do fruto a fim de procurar onde comprar na sua cidade. Chegando à feirinha, você pergunta onde vende e ninguém sabe. Então, você decide ir à Universidade Federal de Alagoas, a UFAL, e procurar alguma professora de botânica no Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS) que possa identificar a planta e ela diz “Opa… Essa ainda não é catalogada!”. Você, bastante surpresa, percebe que descobriu uma espécie silvestre, mas não quer esperar que o mercado encontre, decida cultivar e vender, pois isso pode demorar horrores e custar caríssimo. Aí, você pergunta para ela como pode plantar para que o fruto nasça e você coma Ela te orienta a pegar um montão de sementes, plantar o máximo possível e ir tomando todos os cuidados que as plantas merecem, tipo regar, adubar o solo e por aí vai. Assim, os frutos que forem nascendo sadios e grandes podem ser separados para que você coma, reinicie o processo de cultivo e vá adaptando a planta ao local de plantio. Entendeu agora?

Grandes civilizações mesoamericanas, como os astecas, maias e incas, utilizaram seus conhecimentos para aprimorar as técnicas de cultivo do legume, selecionando variedades que eram mais específicas às necessidades de cada local e comunidade, resultando também na origem de outras diversas variedades do milho que conhecemos hoje Comunidades indígenas e africanas introduziram o vegetal não só na alimentação como também em seus rituais, religiões, mitologias e cosmologias. A ciência consegue comprovar como as diferentes variedades de espécies ancestrais do milho refletem as distribuições linguísticas de comunidades da América do Sul: povos que compartilham semelhantes características nas linguagens costumavam habitar os mesmos locais onde essas plantas possuem similaridades genéticas!

Atualmente, existem cinco tipos principais deste cultivo: dentado, pipoca, duro, farináceo e doce, amplamente domesticados em muitos países dos continentes afora. Na economia do século 21, o milho tem diversas finalidades: como vegetal mais cultivado do mundo, sua maior destinação atual, inclusive no Brasil, é para a criação de animais, como aves e porcos, que, por sua vez, são criados para o consumo humano O cereal também é destinado para a alimentação, usado de forma natural, processada ou ultra processada, além de ser amplamente utilizado como biocombustível e produção industrial de plásticos

ECONOMIA E AGRICULTURA

49

O milho assado, como outras versões de consumo do alimento, entrou na nossa cozinha pelos indígenas e africanos

NA NOSSA CULTURA

Os meses próximos aos de maior quantidade de chuva são os mais escolhidos pelos agricultores para o plantio de milho, já que a planta, para a germinação e crescimento, é bastante exigente com água. Dessa forma, grande parte das colheitas ocorre entre junho e agosto. Esse período batia certinho com as comemorações de solstício de verão no hemisfério norte europeu, festejadas junto às colheitas de trigo dos portugueses Essas celebrações foram herdadas de povos celtas, germânicos e escandinavos, que homenageavam os deuses da natureza e fertilidade, e adivinha só: as fogueiras são mais uma tradição herdada dessas mesmas festividades! Com a

colonização, eles trouxeram para cá essa intenção de comemorar suas tradições, só que, como não tinha trigo no Brasil e a cultura mais popular era a do milho, uma coisa casou com a outra e deu certo

Junto ao milho, herdamos também as receitas de nossos antepassados africanos, nativos e portugueses, assim como todas as outras influências das festas juninas que conhecemos, como as danças típicas, a utilização de fogos de artifício e até mesmo as influências nas músicas. Com o passar do tempo, as festas juninas passaram a ser tão importantes e influentes no nosso contexto cultural que nem mesmo a conversão ao cristianismo conseguiria diminuir isso

FORA DA CAIXA 50 ECONOMIA E AGRICULTURA

A produção de milho em Alagoas movimenta a economia e gera empregos

Dessa forma, a igreja incorporou feriados de santos no nosso calendário, colocando até um santo que, de certa forma, contribui para a colheita do milho: São Pedro, o santo das águas Na Bíblia, no livro do apóstolo Mateus, no capítulo 16, entre os versículos 19 a 25, está escrito: “E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”

Assim, os seguidores da religião, ao interpretarem a passagem e o contexto no qual o feriado se insere, passam a relacionar São Pedro às chuvas, constantemente presentes no mês de junho, livrando-se da identidade pagã das festividades

DE GRÃO EM GRÃO, A ECONOMIA ENCHE… …O “BOLSO”!

Segundo relatório do Banco do Nordeste de 2022, o cultivo de milho na região nordestina tem previsão de crescimento, mesmo em escala considerada menor que a nacional. Surpreende que sendo o segundo estado com menor área cultivada entre os anos de 2021 e 2022, o estado de Alagoas possui a quinta maior produtividade no Nordeste, obtendo cerca de três toneladas do grão por hectare. Isso ocorre porque o estado alagoano apresenta uma grande área agricultável, com o plantio altamente favorável em decorrência do clima e do relevo, além de alta inovação tecnológica na

FORA DA CAIXA 51 ECONOMIA E AGRICULTURA

O que mais dificulta a economia do milho são os altos índices de taxas e impostos, além de dificuldades com as logísticas de transporte e de armazenamento

[Quem cuida das estradas alagoanas, hein?

Dá um Google aí, rapidão!]

Nos últimos anos, a produção de milho, só no sertão, saltou de 2 para 20 toneladas por ano, o que é um número estratosférico, visto que a produção anual total do estado é de 80 toneladas Como dissemos, o solo de Alagoas é um solo bastante fértil - vide a influência da agricultura em nosso estado, que perpetuou por décadas a cultura açucareira - e essa produtividade toda tem atraído produtores e investidores de outros estados, além de aparato técnico.

Andando pela parte alta de Maceió, em regiões como Village Campestre II e Benedito Bentes, ambos próximos a grandes centros comerciais, como o Shopping Pátio Maceió, dá para encontrar algumas pequenas plantações de milho. Essa localização, inclusive, deve favorecer bastante a ampla distribuição de milho em momentos próximos à comemoração das festividades juninas No Centro de Abastecimento (Ceasa), no bairro de Santos Dumont, no município de Satuba, no Mercado da Produção, no bairro da Levada, em Maceió, e na Feirinha do Tabuleiro, no Tabuleiro dos Martins, perto da UFAL, também na capital, dá para encontrar milho quase o ano todo Apesar de uma produção urbana pouco significativa, a tendência é aumentar, já que cidades estão buscando ocupar mais áreas para a produção de alimentos. O milho, protagonista da mesa nordestina, não ficaria de fora

Com a produção nordestina ultrapassando a produção total da França - país que por si só já lidera esse setor na União Europeiadiversos setores saem ganhando, inclusive a economia. O cultivo de milho gera mais emprego, renda, acesso à saúde e educação, além de movimentar o cenário financeiro, afetado enormemente pelas consequências da pandemia da covid-19 Com a economia girando e renda aumentando no setor rural, a concentração populacional na zona rural aumenta, promovendo o esvaziamento demográfico nas cidades, fazendo com que empregos sejam melhor distribuídos

Embora muito dessa discussão pareça positiva, é dever ressaltar a necessidade de políticas públicas que incentivem a produção da agricultura voltada à população brasileira. Em 2011, a Presidente da República na época, Dilma Rousseff (PT), chegou a implantar o plano Brasil Sem Miséria, que buscava retirar o máximo de pessoas situadas em extrema pobreza, conseguindo tirar o país do Mapa da Fome das Nações Unidas 3 anos mais tarde Em seu terceiro governo, o atual presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), implanta o Plano Brasil Sem Fome, para combater o retrocesso dos últimos anos, e atingir até 2030 o patamar de 2014 Parece confuso, mas voltamos às estatísticas anteriores à implantação do Brasil Sem Miséria Na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 19 de setembro de 2023, Lula relembra que a fome atingia mais de 735 milhões de pessoas, sendo 4,5% pertencentes ao Brasil.

[Sim, 33 milhões de pessoas estavam vivendo na extrema pobreza há poucos meses...]

ECONOMIA E AGRICULTURA

FORA DA CAIXA 52

PROGRAMAS DE CONCESSÃO DE CRÉDITO DEVEM PRIVILEGIAR OS PEQUENOS PRODUTORES, A BASE DA AGRICULTURA FAMILIAR

Com tanta gente nessa situação, podemos pensar que o setor da agricultura no Brasil deveria estar priorizando as políticas de combate à fome para a garantia a permanência delas e assegurar efetivamente a segurança alimentar e nutricional dos brasileiros, pois barriga cheia não necessariamente quer dizer boa nutrição

Também em 2023, Lula retomou, como parte das políticas do Brasil Sem Fome, os estoques reguladores de alimentos, construídos através de compras públicas realizadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) como forma de garantia de preços mínimos, prevendo a formação de estoque de 500 milhões de toneladas do milho. Dessa forma, mesmo em contextos anormais, o Programa de Ga-

rantia de Preços Mínimos (PGPM) não só contribui na diminuição de oscilações de renda aos produtores rurais, como também garante o abastecimento nacional, incentivando, quando há baixa produção, e desincentiva quando a produção em excesso pode ser prejudicial, as produções.

É preciso, ainda, pontuar que tais políticas devem ser aliadas a programas de concessão de crédito aos pequenos produtores, pois são estes que constroem a base da agricultura familiar e alimentam grande parte da população brasileira, em contraposição aos grandes produtores, que focam essencialmente na produção voltada à exportação, tanto na forma de grãos, quanto na forma de ração para carne vendida para fora.

Agroecologia aliada a programas de participação social pode ser uma das soluções para desemprego e pobreza

FORA DA CAIXA 53 ECONOMIA E AGRICULTURA
F o t o : J o r g e S a n t o s / R e p r o d u ç ã o

BOLO, PAMONHA, CANJICA E MUITO MAIS

organicos vs transgenicos vs agrotoxicos

Pega a pipoca que esse debate é polêmico daqui até o congresso. Atualmente, a indústria da agriculagricultura, principalmente de cultivo de grãos, encontra-se em um debate acirrado sobre a ação de modificações genéticas das plantas e a utilização de agrotóxicos. Para explicar melhor, é preciso entender o que é cada termo antes de entrar na discussão. Ricardo Ramalho, do Instituto Terra Viva, explica para a gente que “orgânico” é o termo atribuído à toda produção cultivada sem sementes com modificações genéticas e sem agrotóxicos. Dessa forma, todo o processo de plantio e colheita é feito da forma mais próxima ao natural possível.

Já o termo “transgênico” é utilizado quando alguém se refere ao produto de uma planta que passou por uma modificação em seu DNA (o material genético das células), fazendo com que características específicas sejam otimizadas ou criadas para que, em teoria, haja maior rendimento na colheita. O termo é comumente conhecido como OGM, ou organismo geneticamente modificado Por último, “agrotóxico” nada mais é que um produto químico sintético utilizado no controle de certas pragas que podem invadir plantações e arruinar parcial ou totalmente a colheita.

Até agora parece tudo bem, só que nem tudo é o que parece: quais são as grandes questões que o debate insere na pauta da agricultura e por que esse debate ainda dura tanto? Como forma de enfrentamento aos problemas sociais e ambientais, que incluem fatores, como desmatamento, poluição de recursos hídricos por uso de agrotóxicos, morte massiva de seres polinizadores e inúmeros impactos na saúde dos trabalhadores rurais, o instituto propõe a inclusão de políticas de promoção à agricultura orgânica dentro e nos arredores das cidades, não só como forma de introduzir mudanças mais sadias no modo atual de vida em ambientes com alta densidade demográfica, como também reaproximar com a produção alimentar.

Inserindo a agricultura em ambiente urbano e periurbano, Ricardo argumenta como é importante para a reaproximação da produção agrícola com as pessoas tornar áreas abandonadas ou pouco utilizadas mais produtivas, construindo uma relação saudável dentro da cidade e gerando ainda mais emprego para quem precisa, além de contribuir com a segurança alimentar da população. Seria a solução mais viável, em vez de depender exclusivamente de cultivos vindos de longe - o que acaba dando proble-

ECONOMIA E AGRICULTURA

^ ^ 55

mas, não só por questões logísticas, assim como por questões ambientais, devido às emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. No fim das contas, todos que estão na cidade poderão se beneficiar de algo produzido bem pertinho Fora que os fatores nutricionais são melhores quando o alimento está naturalmente fresco

E não para por aí: todo mundo sabe que planta precisa de uma terra com nutrientes, o que pode ser resolvido, já que cidades grandes produzem altas quantidades de resíduos sólidos orgânicos, podendo ser decompostos e utilizados no plantio, reduzindo a massa de lixo em aterros sanitários e a possibilidade de possíveis transmissões de doenças Tem mais: você es-

tá ciente dos riscos de contaminação de lençois freáticos que um aterro com muito material orgânico oferece, né? Ih… Mas onde entra o agrotóxico nisso tudo? Bom, há inúmeros problemas acerca da utilização desse tipo de material.

[Se você não tá lembrando dessa questão, sugiro que volte três casas, quero dizer, três parágrafos para se inteirar melhor]

Se a galera consegue perceber os problemas gerados pelos agrotóxicos - ou defensivos agrícolas, como alguns preferem chamarem ambientes rurais, imagine usando dentro de uma cidade! Por isso, para que essas políticas de inserção da agricultura funcionem, é necessário também uma regu-

FORA DA CAIXA 56 ECONOMIA E AGRICULTURA
F o t o : E d i l s o n O m e n a / R e p r o d u ç ã o
O milho proveniente da agricultura familiar também gera renda e empregos

gulamentação melhor construída de como esse processo deve acontecer As chances para que acidentes ocorram em ambientes urbanos e periurbanos são ainda maiores se a densidade populacional for considerada. Afinal, mais pessoas juntas nos mesmos espaços sempre aumentam as chances de novas doenças e contaminações.

[Saca os espaços de transição entre áreas predominantemente rurais e áreas urbanas?

Existe uma preocupação acerca da utilização desses produtos que ronda muita gente, pois grande parte deles, proibidos em diversos países, continuam sendo autorizados aqui. Mesmo com evidência científica da baixa eficácia desse material, tanto produtivamente quanto ecologicamente falando, há um tremendo esforço para que os órgãos públicos continuem aceitando e autorizando sua utilização. Segundo o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o principal argumento que convence o instituto é uma suposta queda de até 30% na produtividade.

as pessoas a utilizarem os espaços vazios na cidade, criando não apenas o senso comunitário como também formas saudáveis de atividade física, beneficiando até na saúde mental das pessoas que vão se ocupar com um hobby 100% saudável. Eliane também relembra a beleza e eficiência da natureza, já que, após a colheita, pode-se utilizar a palha do milho, o sabugo e as partes soltas da planta para servir de adubo.

Pois, são estes os tais de “periurbanos”...] [Lembra que falamos sobre compostagem e como a utilização desses resíduos pode beneficiar a cidade? Pois é…]

É claro que dá para pensar em cultivo urbano sem a utilização de agrotóxicos. Eliane Silva, coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), conta que é, sim, possível. Só na ocupação Tereza de Benguela, localizada no bairro Cidade Universitária, em Maceió, a proposta é unicamente essa: o plantio completamente orgânico. Isso sem contar o fato de que a horta é compartilhada entre todos da comunidade. Essa produção, segundo ela, traz o cultivo de orgânicos como mais ricos em vitaminas e incentiva as

É preciso inserir também outros questionamentos aqui, mesmo que de forma mais sucinta: onde estão as políticas públicas de incentivo e apoio aos pequenos agricultores, sejam eles rurais ou urbanos? Onde estão os espaços compartilhados de cultivo? O que a atual estratégia de produção de alimentos - sobretudo do milho, que tem altos índices de consumo na Região do Nordeste - propõe e quais suas consequências? Por mais que pareça sempre ter maior avanço tecnológico do que há um, cinco, dez anos atrás, parece que menos se vê o que é realmente natural nas prateleiras dos supermercados que visitamos.

Questionada sobre a razão por que não há tanto plantio orgânico e compartilhado dentro das cidades, Eliane diz ser mais fácil vencer as pessoas com fome que de barriga cheia porque povo bem alimentado tem tempo para pensar em outras coisas “Povo com estômago vazio só pensa em poder se alimentar” A organização e a luta pelos direitos fica inviável se a maior preocupação de um indivíduo é apenas… sobreviver! Vamos pensar fora da caixa? (JF)

ECONOMIA

FORA DA CAIXA 57
E AGRICULTURA

nada sagrado, mas tudo profano

O que se fala na mesa do bar não pode ser discutido na igreja

Oar foi tomado por uma fumaça densa e, se não fosse mês de junho, diriam que era um incêndio dos grandes que estava acontecendo! Mas eles já tinham se acostumado, pois, há muitos anos, naquela mesma data, reuniamse para saber como vai a vida e o que tem de novo Como sempre, chegaram no horário marcado, às 19h.

Três santos entram em um bar

29 de junho, final de mês Significava que eles já tinham trabalhado bastante durante esses dias. Dois dos três amigos resolveram relaxar Só Pedro que continuava mais atento, afinal, a noite só tinha começado. Ou melhor, o seu expediente

Santo Antônio Que fumaça desgraçada é essa? É uma fogueira?

Não era o local mais sofisticado, tanto a mesa quanto as cadeiras eram simples e tinha uma boa música, aquelas que adoram no Nordeste. Ainda mais nessa época do ano

tocava o dia todo nos festejos: o forró

São Pedro Desculpa, Toninho! Acho que é uma das minhas. Sabe como é, eles pensam que o fogo vai espantar todos os males, coisas assim

São João Pelo menos não estão pulando a fogueira. Lembra quando faziam isso?

O som do forró continuava ecoando no bar, entrando em conflito com a música que tocava na esquina Vozes entraram em uníssono, repetindo as mesmas palavras. “Anarriê!

São Pedro A gente poderia assistir a apresentação da quadrilha, pelo menos essa tradição continuou por aqui.

Definitivamente os santos não estavam em um bar de Maceió. Por aqui, só sobe no palco das festas juninas quem toca música techno e faz show de luzes de laser!

Santo Antônio Já quer fugir do trabalho,

FORA DA CAIXA 58 CRÔNICA

Pedro? Foca no teu horário! Inclusive, bem que você poderia mandar uma chuvinha, essa fumaça toda não deve ter um efeito muito bom no aquecimento global.

São João Para de falar besteira, Toninho São só algumas fogueiras! Não faz mal nenhum. Você fica chateado porque no seu dia ninguém lembra de acender uma.

Santo Antônio Na verdade, ficou difícil até lembrarem de mim. Vocês ouviram falar do Tinder?

Não deve ser fácil para o casamenteiro ter seu emprego roubado Tinha ficado cada vez mais difícil unir casais que se amam verdadeiramente Em algumas situações, tem milagre que nem santo opera!

São Pedro É um novo tipo de oração? Se não for, não conheço.

São João ― Mas e aí, o que a gente vai beber? Nesse calor uma brahma cairia bem.

Santo Antônio Você insistindo em ser pagão! Essa não pode, é de outra religião

Esse tal de Brahma é um deus da religião hindu, na verdade o criador do universo na trindade hindu (Brahma, Vishnu e Shivacriador, conservador e transformador, nesta ordem, feito Pai, Filho e Espírito Santo à trindade cristã). Mas, estamos proibidos de falar sobre ele E também a revista não vai fazer merchan gratuito para uma marca de cerveja!

São João Que tal um vinho então? A gente pode pedir a Cristo, meu primo é gente boa, vocês sabem.

Santo Antônio ― Cara, achei que ele estava no Rio de Janeiro.

São Pedro Vocês dois estão errados, ele ficou em Pilar A casa dele está sendo construída ainda, vai ter vista e tudo, mas um amigo lá da cidade está hospedando ele por um tempo.

São João Já sei! Vamos pedir um quentão, assim a gente entra mais no clima da festa

O quentão é sempre um sucesso nas festas juninas, leva vinho e outras especiarias para deixar o sabor ainda mais marcante.

Santo Antônio ― Isso não é muito forte, não? Passei os últimos dias com uma dor de cabeça

Eu soube da história! Uma prima minha me contou que uma amiga da mãe dela estava

FORA DA CAIXA 59
CRÔNICA

desesperada por um marido, o coitado do Toninho acabou sofrendo por isso Ela deixou o santo de ponta cabeça por um mês, talvez seria mais rápido se ela baixasse o Tinder.

São Pedro Nossa, mas você vive reclamando da labuta, Toninho! Tem o mesmo emprego há anos, já deveria ter se acostumado. Não vai me dizer que quer mudar agora, a gente não pode ter outro João no grupo

Santo Antônio Ué, você mudou de emprego de novo, João? Achei que tinha ficado no islamismo.

São Pedro chei que ainda trabalhava com o druidismo ou era a fé bahá'í?

Santo Antônio A gente nem falou do petisco, um peixinho frito ia bem agora, né Pedro?

São Pedro ― Não é porque sou padroeiro dos pescadores que faço peixe surgir ou se multiplicar, isso é trabalho do Cristo

São João Ele fez falta hoje, da próxima vez a gente convida. Mas pior que com esse calor, não sei se comeria algo frito, só fica bom quando está bem quente, né?

Santo Antônio Nem me fale! Essas festas são bem melhores no Canadá. Vocês não querem se encontrar lá no ano que vem? A La fête de la Saint-Jean-Baptiste é no dia 24 de junho, a gente comemora seu aniversário lá, João É mais fresco

São Pedro Não sei, gosto daqui A gente já faz isso há tanto tempo, por que mudar?

São João Sim, fiquei um tempo nesses, mas decidi explorar outros lugares Foi melhor ficar no catolicismo mesmo, essa religião paga bem! Aliás, a próxima rodada é por minha conta Vamos de quentão, hein? Seu Zé, vem aqui!

O quentão foi servido pelo dono do bar. Já conhecia os fregueses há um tempo e achava curioso os três amigos se reunirem uma vez por ano, no mesmo dia e horário. Os santos continuaram conversando

São João Concordo com o Pedro, mas podemos considerar passar por lá. Não sendo aquela droga hippie que fazem na Lituânia de bater palmas no pôr do sol, está ótimo. É lá que fazem isso em 24 de junho também, não é? Minha cabeça está meio fora do lugar, posso estar me confundindo.

FORA DA CAIXA 60
CRÔNICA
ÁGUA QUE SANTO NÃO BEBE

Um barulho despertou a atenção dos santos, veio de Pedro O padroeiro dos pescadores tirou um objeto do bolso e colocou na mesa.

Santo Antônio ― Um celular? Por que você comprou isso? Achei que fosse contra todas as coisas modernas

São Pedro Tive que arranjar um para receber as preces dos fiéis, não consegui dar conta de tudo. Desse jeito é mais organizado Estou cheio de e-mail não respondido, as simpatias estão bombando!

São João ― Só com você, o coitado do Toninho quase não recebe nada esses dias.

Santo Antônio Primeiro que meu dia já passou, 13 de junho foi há duas semanas Segundo, não que seja da sua conta, mas nem todo mundo quer se casar Rapazes, vou ser sincero: vocês sabem que sou feminista, embora pareça estranho um sujeito feminista homem Odeio opressão e desigualdade de gênero, amo as mulheres e tudo mais, mas o que está acontecendo? Quase não recebo nenhum pedido, a não ser daquela pobrezinha que me deixou em um cativeiro por um mês

São João Não é uma surpresa, as coisas mudam com o tempo, Toninho Lembra do casamento matuto que aconteceu naquele dia? Que situação triste! Um pai obrigar a filha a se casar contra a sua vontade.

São Pedro Não era o rapaz que queria fugir do casamento? Eu vi essa história de perto Uma lástima!

Santo Antônio Bom, essa não é a questão Afinal, hoje em dia, as mulheres não precisam se casar apenas com os homens

Um silêncio tomou conta da mesa. Naquele momento, os santos pareciam tensos. Toninho refletiu se havia falado alguma besteira

São João Gente, atualiza! Ano passado o papa Francisco disse que não tem problema, o Vaticano até liberou.

Todos suspiraram de alívio e seguiram a noite regada a quentão (não brahma nem Brahma ou qualquer outra coisa hindu!), milho, canjica, bolo de fubá e um arroz doce

FORA DA CAIXA
CRÔNICA 61

São Pedro Então, na próxima convidamos Cristo?

Santo Antônio Eu gosto da ideia, faz tempo que não vejo Cristo, desde que ele era um pivete e vivia nos meus braços.

vidado para este encontro no bar. Pelo menos que a gente saiba Então, se não é notícia, não o achamos importante o suficiente para ser homenageado por esta revista. Não falaremos dele hoje.

Quem sabe, ano que vem, ele dê o ar da sua graça se a reunião for lá mesmo no Québec no La fête de la Saint-Jean-Baptiste Se o grande poder dele é o de converter, vai que ele transforma esta ideia em realidade e torna o sagrado encontro dos 3 em divino perfeito dos 4 que esse número representa! Se brincar, Cristo é capaz até de aparecer mesmo.

São João Vou mandar mensagem agora mesmo e ele já confirma. Há tantos anos é só nós três. Poderia ter mais um aqui com a gente, né?

Na verdade, tem mais um santo: São Paulo (não o estado do Sudeste brasileiro!). Ele compartilha o dia com Pedro, 29 de junho, além de ter outra data dele, o 25 de janeiro, esta última para marcar sua conversão ao catolicismo e aquela primeira lembrando do seu martírio. No meio sagrado da Igreja Católica, Paulo e Pedro, assim como João, são os apóstolos mais celebrados e com mais solenidade e liturgia. Mas estamos aqui falando do profano, né! E para o lado profano deste período junino, pouco importa que Paulo tenha sido condenado à morte e decapitado. Então, em tempo de festas, nada de sofrimento ou morte, só prazer e alegria! Por isso, Paulo não foi con-

CRÔNICA 62

CELEBRANDO A DIVERSIDADE NAS FESTAS JUNINAS

Desafios e soluções para inclusão de pessoas com deficiência

As festas juninas são uma verdadeira celebração da cultura e tradições do país, marcadas por uma explosão de cores, sabores e ritmos que encantam pessoas de todas as idades. Entre todas as manifestações culturais que compõem essas festividades, as quadrilhas se destacam como uma das principais atrações, trazendo consigo uma mistura de dança, música e alegria contagiante. No entanto, por trás dessa festividade tão querida, há uma questão importante que merece nossa atenção: a acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência.

Laura Bizerra, coordenadora de Ações

Estratégicas e Intersetoriais da Pessoa com Deficiência da Secretaria Municipal da Mu-

lher, Pessoas com Deficiência, Idosos e Cidadania (Semuc) da Prefeitura de Maceió, compartilha algumas das principais iniciativas da pasta para garantir que as festas juninas da cidade sejam mais inclusivas para pessoas com deficiência. “Estamos sempre batalhando por acessibilidade, inclusão e conscientização da população diante das necessidades da pessoa com deficiência, realizando posts nas nossas redes sociais, campanhas educativas e workshops de sensibilização, além de garantir acessibilidade nos eventos, por exemplo com a colocação de rampas de acesso nas áreas de shows e a presença de intérpretes de Libras [Língua Brasileira de Sinais] durante as apresentações”, pontua a gestora da Semuc.

63 FORA DA CAIXA
Por Matheus Bomfim
INCLUSÃO E DIVERSIDADE

Segundo ela, a secretaria está sempre empenhada em promover a conscientização sobre as necessidades e os desafios enfrentados por pessoas com deficiência nas festas juninas. Ela reconhece os desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência, como as barreiras invisíveis do preconceito e da exclusão social, e destaca a importância de promover uma cultura de respeito e empatia. O seu compromisso à frente da pasta da PcD em tornar as festas juninas mais acessíveis e acolhedoras para todos reflete o seu papel como representante da área na atual gestão municipal e seu comprometimento pessoal com a inclusão e igualdade de direitos para todos.

O fato de conviver com outras mulheres que abdicam de parte de suas vidas para cuidar de crianças PcD fez Laura Bizerra, da Semuc, ver a questão de outra forma

“O PRECONCEITO E A EXCLUSÃO SÃO DESAFIOS ENFRENTADOS PELAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA”

LAURA BIZERRA, COORDENADORA DE AÇÕES DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DA SEMUC

O comprometimento pessoal com a causa a que Laura se refere, tem a ver com a identificação dela como mãe. Embora não tenha filhos com deficiência, o fato de conviver com outras mulheres que abdicam de parte de suas vidas para cuidar de crianças PcD lhe fez enxergar a pauta de outra forma “De tanto ver mães atípicas (que têm filhos com deficiência) que lutam diariamente, por eu ser mãe não atípica, sei como é essa vida E, no caso destas mulheres que precisam abdicar da sua vida para exclusivamente batalhar por seus filhos e passar seus dias em clínicas de terapias para que eles tenham qualidade de vida, acabei me engajando com a causa As histórias são comoventes e merecem respeito”, justifica.

Como parte de seu trabalho, Laura colabora ativamente com outras instituições e organizações para promover a participação plena de pessoas com deficiência nas festas juninas “Realizamos ações de conscientização, mostrando a importância da participação dessas pessoas nos eventos Também fazemos reuniões estratégicas para firmar a necessidade das parcerias e divulgação entre essas populações da importância da inclusão”, explica.

Em meio à delícia das comidas típicas e ao calor das fogueiras, é fundamental lembrar

FORA DA CAIXA 64
INCLUSÃO E DIVERSIDADE
F o t o : L a u r a B i z e r r a / A r q u i v o p e s s o a l

que nem todos têm igual acesso a essas celebrações Muitos eventos juninos, sejam públicos ou privados, enfrentam desafios significativos para garantir que todos os cidadãos, independentemente de suas capacidades físicas ou cognitivas, possam participar plenamente dessas festividades

Nos últimos anos, tem havido um aumento na conscientização sobre a necessidade de tornar os eventos públicos mais acessíveis. Rampas de acesso, banheiros adaptados e espaços reservados são algumas das iniciativas que têm sido adotadas para garantir que pessoas com mobilidade reduzida possam desfrutar dos eventos sem dificuldades físicas.

A inclusão de pessoas com deficiência nas quadrilhas de São João é um tema cada vez mais relevante e presente nas discussões sobre acessibilidade e diversidade cultural. As quadrilhas, como uma das principais expressões das festas juninas, representam uma oportunidade única para promover a inclusão e participação de todos os cidadãos

independentemente de suas habilidades físicas ou sensoriais Quando falamos especificamente das quadrilhas, é preciso considerar ainda mais aspectos para garantir a inclusão de todos. A dança é uma forma de expressão universal, mas, para algumas pessoas com deficiência visual, pode ser necessário fornecer descrições detalhadas dos movimentos e coreografias, além de contar com a ajuda de guias para se deslocar pelo ambiente de forma segura.

Da mesma forma, para pessoas surdas ou com deficiência auditiva, é essencial disponibilizar intérpretes de Libras durante as apresentações das quadrilhas, garantindo que todos possam compreender e se envolver na magia dessa tradição junina. É importante levar em conta ainda a acessibilidade emocional e social. Muitas vezes, as pessoas com deficiência enfrentam barreiras invisíveis, como o preconceito e a exclusão social. Portanto, é essencial promover uma cultura de respeito, empatia e inclusão, em que todos se sintam bemvindos e valorizados

F o t o : J o n a t h a n L i n s / S e c o m
“NA

QUADRILHA, NÃO HÁ PRECONCEITO, DISTINÇÃO

ÉTNICA, DE

SEXUALIDADE OU DE RAÇA. TODOS DANÇAM PORQUE

AMAM O MOVIMENTO JUNINO. É UMA FORMA DE SER FELIZ”

No cenário festivo das quadrilhas, Daniel Soares, experiente quadrilheiro, bailarino de dança popular e PcD, compartilha uma perspectiva única. “Costumo dizer que dançar quadrilha é uma forma de ser feliz Na quadrilha, não existe preconceito, distinção étnica, de sexualidade e/ou raça Todos, vindos de vários lugares, de diferentes classes sociais dançam porque amam o movimento junino, assim como, por uma questão de atividade física”. Daniel, que dança quadrilha há 11 anos, destaca o aspecto inclusivo da dança. “Sou uma pessoa com deficiência há 20 anos Passei por uma amputação do membro inferior esquerdo, decorrente de uma queda de-

O aspecto inclusivo da dança é uma das razões para Daniel Soares para brincar o São João nas quadrilhas

bicicleta, que originou um câncer ósseo”, conta o quadrilheiro, que já passou pelos grupos Zabumba, Dona Matuta, Tradição e Raio de Sol, todos da Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco, dançando como matuto, noivo e Lampião.

Ao avaliar o progresso da inclusão nas festas juninas, é importante observar a presença de medidas de acessibilidade e o impacto positivo que essas iniciativas têm na vida das pessoas com deficiência e suas famílias Afinal, uma festa verdadeiramente inclusiva é aquela em que todos podem participar, se divertir e celebrar juntos, sem barreiras ou limitações. Embora muito já tenha sido conquistado, ainda há desafios a serem superados para uma inclusão plena nas festas juninas e outros eventos. Aumentar a conscientização, promover a formação de profissionais capacitados em acessibilidade e garantir a disponibilidade de recursos adequados são passos essenciais.

O caminho rumo à inclusão plena nas festas juninas requer um esforço conjunto e contínuo de todos entes e esferas governamentais envolvidas. Somente com diálogo, conscientização e ação coordenada será possível garantir que todos os cidadãos tenham a oportunidade de celebrar as tradições culturais de forma plena

FORA DA CAIXA 66 INCLUSÃO E DIVERSIDADE
F o t o : D a n i e l S o a r e s / D i v u l g a ç ã o

Por Marcelo Robalinho

a arte nao tem genero ^ ~

Coreógrafo Anderson Coutinho, 31, narra a luta como integrante LGBTQIAPN+ no movimento quadrilheiro em Alagoas no contexto da modernização dos grupos

Sempre fui atraído pela dança desde muito pequeno. Quando tinha alguma apresentação de dança na es-

cola ou nos grupos de comunidade, eu estava lá Comecei a fazer balé clássico e jazz lá pelos meus 15, 16 anos de idade. Fiz dois anos de jazz e cinco anos de balé. Estudei no Centro de Belas Artes de Alagoas e no Balé Maria Emília Clark, ambos em Maceió. Sou formado no curso técnico de Dança pela Escola Técnica de Arte (ETA) da Universidade Federal de Alagoas, e atualmente estudo Licenciatura em Dança, também da UFAL. Sempre tive o apoio da família nas coisas que fiz, mas não o incentivo no sentido de dizer: “Vai lá participar”. Eu mesmo metia a cara para fazer as coisas que queria.

Profissionalmente, a minha história com as quadrilhas juninas começou no ano de 2011, quando eu me tornei coreógrafo Foi a dança que me levou para o São João. Na rua onde eu morava, no Prado (bairro da região central de Maceió), tinha um palhoção no período junino, o Arraiá São João do Carneirinho, que era bem conhecido pelos quadrilheiros da capital maceioense. Como eu assistia a muitas quadrilhas, então a dança ficou ainda mais atrativa para mim

68
F o t o : A n d e r s o n C o u t i n h o / A r q u i v o p e s s o a l

A minha identificação com o universo LGBTQIAPN+ veio naturalmente Aos 10 anos de idade, lembro que tinha uma quadrilha na qual eu dançava, a Bate Coração, no Prado, onde tinham os ensaios da quadrilha mirim e depois da adulta. Às vezes, no intervalo, eu pegava aquelas saias mais longas das quadrilhas estilizadas e começava a girar, sabe! Eu me encantava por esse movimento junino, de tradição, de dançar quadrilha. Era e ainda é incrível.

Minha personagem Hannah Vasconcelos surgiu oito anos depois, em 2010, a partir da iniciativa de dois amigos, o Júnior Toledo e o Fábio Godoy. Hannah é uma drag queen que se montava para as apresentações da cena LGBTQIAPN+ de Maceió. No fundo, ela é uma aventureira que gosta de se entregar em coisas novas e em novos caminhos de forma positiva Mesmo não tendo a certeza aonde vai chegar, ela sabe que o que está fazendo vai encorajar alguém, de alguma forma, a se aceitar

Naquela época, eu já tinha o feeling de que a Hannah poderia se encaixar no movimento quadrilheiro, tendo como referência as quadrilhas de Pernambuco, onde homens vestidos de drag queen já dançavam Era apenas um desejo meu que ainda passava longe pelas restrições no meio quadrilheiro

Alagoas foi o último estado do Nordeste a aceitar homens dançando como damas nas quadrilhas. Sempre que surgiam concursos ou apresentações abrindo para que pessoas LGBTQIAPN+ pudessem participar, eu trazia a fala de que Alagoas estava sendo retrógrada em proibir. Diziam que a quadrilha ia perder a originalidade se os homens começassem a dançar de damas G

#VOCÊMEACEITANASUAJUNINA?

Em 2020, quando surgiu a Quadrilha Êta São João, eu fui ser coreógrafo nela. Comecei uma campanha, através da hastag #vocemeaceitanasuajunina?. Muitos grupos no Nordeste foram abraçando a causa e houve uma repercussão tão grande que a própria Liga de Quadrilhas de Alagoas acabou sendo pressionada pelo Grupo Gay

(homem gay que se monta para se apresentar no grupo como dama), enquanto Pernambuco foi precursor nisso. Lá, já estava começando a haver uma defasagem muito grande de damas mulheres cis dentro das quadrilhas e daí eles começaram a colocar os artistas gays para poderem dançar de damas. Foi uma ideia massa que deu muito certo Só que, para alguns estados, isso era totalmente impensável. E Alagoas era um desses estados que dizia que era inaceitável Até a palavra “feio” usavam! Infelizmente, a Liga de Quadrilhas de Alagoas era composta por homens de pensamento meio machista que, apesar de terem um convívio muito tranquilo com os homossexuais, ainda guardava uma estrutura arcaica. Foi dentro desse contexto que a luta começou Sempre me colocava que a gente precisava fazer essa mudança Só que eu perdia total as minhas forças a partir do momento em que fazia parte de um grupo na época, a Luar do Sertão, em que o presidente deixava muito claro que dentro quadrilha dele nunca ia deixar homens dançando de mulher Era como se eu estivesse lutando por algo, só que numa quadrilha que não iria permitir o meu livre expressar Acabei saindo da Luar do Sertão em 2019. PRIMEIRA

FORA DA CAIXA 69
PESSOA

de Alagoas e o Núcleo LGBT da OAB de Alagoas [Ordem dos Advogados do Brasil].

Na época, teve uma reunião em que a OAB defendeu o grupo LGBT e deixou bem claro que, se a Liga continuasse com essa proibição, não poderia mais participar de editais de apoio financeiro às quadrilhas

Até porque nesses editais tinham cláusulas que defendiam a presença das minorias, como povos indígenas, negros e comunidade LGBTQIAPN+. Então, a Liga estaria indo de encontro a algo já permitido, ao excluir parte dessas minorias.

Sempre tentei separar um pouco as coisas na minha família com relação a essa luta.

Mas o pessoal sempre ficava sabendo pelas redes sociais. Essa base de apoio foi importantíssima para mim Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha 7 anos, então minha criação foi mais com ela e a minha avó, apesar de meu pai ter estado

ter estado presente Ele já me viu montado na minha personagem e, graças a deus, teve uma ótima aceitação Talvez pela maneira como eu tento levar as coisas da forma mais natural possível. Sou muito feliz e realizado com a minha família nesse meu mundo.

Com os meus amigos gays e as amigas trans mais próximas, eu vejo que alguns têm apoio total e as mães vão aos ensaios e apresentações, diferentemente dos pais, que são um pouco mais distantes. Mas sabemos que nem sempre a aceitação ocorre de maneira fácil. Muitos têm um princípio muito tumultuado e que, aos poucos, vai normalizando. Eu sempre tive esse cuidado para que não fosse revolucionário demais dentro de casa, mas que, ao mesmo tempo, eu conseguisse mostrar para a minha família esse entendimento de que a Hannah é um personagem que eu trago comigo como uma arte e que isso não vai mudar o meu caráter nem qualquer outra coisa

70 PRIMEIRA PESSOA
Anderson Coutinho foi rei da Quadrilha Luar do Sertão de 2014 a 2019, época em que atuava na ala masculina

1ª MARCADORA G DE ALAGOAS

Através dessa campanha, a gente conseguiu, em 2020, que os meninos gays pudessem se expressar da forma que quisessem, afinal a arte não tem gênero, né! Daí, eu tive a oportunidade de dançar na Êta São João como dama G. Em 2022, passei a atuar como marcadora G da quadrilha, sendo a primeira do gênero em Alagoas Foi muito representativo e isso aconteceu meio que por acaso Eu ia dançar de dama G, só que, como o marcador da quadrilha não pôde participar por questões profissionais e eu já estava tendo uma visão mapeada do grupo, entendendo os espaços todos, as pausas e as falas, por estar fazendo parte da construção na narrativa do espetáculo, então olharam para mim e disseram: “Vai ter de ser você!”.

Foi muito desafiador para mim como artista O marcador, a marcadora, às vezes chamada também de marcatriz, é a primeira pessoa que está em cena, trazendo toda a didática a ser apresentada. Por mais que a gente tenha certeza daquilo que a gente está fazendo, é preciso conquistar o público quadrilheiro, os jurados e quem está assistindo Sou bailarino e dançarino de origem. Sempre a dança foi muito mais certa para mim. Quando o meu corpo está em cena, eu tenho certeza de tudo o que estou fazendo. Já quando se é marcadora, tem de ser a primeira pessoa da quadrilha a entrar no espaço da apresentação.

Por mais que tenhamos um corpo formado e saibamos como se portar dentro de um espetáculo, você entende que existe uma fala e essa fala não pode ser recuada. Ela tem de ser uma fala acentuada para todos entenderem que você está ali comandando o grupo Eu tinha certeza do que estava fazendo, mas, ao mesmo tempo, sabia que era um espaço novo no qual nenhuma drag queen tinha assumido aquele papel ali Atualmente, nas quadrilhas, cada marcador assume um papel, um personagem No meu caso, como a Hannah, eu estava assumindo o personagem de contadora da história. Mas tem outros marcadores que assumem outros personagens, como o coronel da cidade Em 2022, como falávamos sobre o compositor Luiz Gonzaga, trazíamos muitos

“QUE O FUTURO DAS QUADRILHAS SEJA DE MAIS PESSOAS
LGBTQIAPN+ OU NÃO VINDO PARA SOMAR E ENTENDER SEUS ESPAÇOS NO MOVIMENTO QUADRILHEIRO”
ANDERSON
FORA DA CAIXA 71 PRIMEIRA PESSOA
F o t o : A n d e r s o n C o u t i n h o / A r q u i v o p e s s o a l

versos em forma de cordel. Então, tinha de ser tudo muito bem estudado para que não houvesse falhas nas apresentações por mim.

Dos quatro concursos em que participei em diferentes cidades alagoanas, três deles eu ganhei como melhor marcadora do São João. No final de 2022, eu fui para a Quadriha Santa Fé dançar como dama G Eu me sentia nessa obrigação de defender essa causa e vivenciar isso porque eu tinha lutado tanto para que os meninos gays pudessem dançar, então seria algo que iria ter uma representatividade muito grande Desde então, eu venho dançando como Hannah Vasconcelos, a mesma que começou como uma artista transformista drag queen e no movimento junino se sentia presa por não poder se expressar da forma que queria e, por isso, lutou até unir forças e conseguir essa liberação para dançar

O FUTURO DAS QUADRILHAS

O futuro das quadrilhas eu espero que seja de mais pessoas, LGBTQIAPN+ ou não, vindo para somar de forma positiva e entender seu espaço da arte no movimento cultural e quadrilheiro Hoje em dia, eu digo que o movimento quadrilheiro está se afastando do movimento cultural porque a gente entende que a cultura é a vitrine de um povo e as quadrilhas estão se afastando disso e acaba que o público LGBTQIAPN+ e o público cis hoje está procurando a quadrilha justamente pelo espetáculo, a Broadway junina (Broadway se refere à famosa região dos teatros de Nova Iorque, nos Estados Unidos), com as fumaças, os shows pirotécnicos, e não pela essência da festa, de brincar o São João.

É preciso que todos os integrantes –LGBTQIAPN+ e cis – entendam seu real significado, que estão ali como agentes de cultura, promovendo a cultura junina e fomentando outros públicos, como as crianças, principalmente, que se afastando do movimento quadrilheiro pelo fim paulatino das quadrilhas mirins. Acho que as quadrilhas só vão aprender realmente quando virmos que os grupos de Alagoas reduziram de forma drástica.

A quadrilha veio nesse processo de evolução Era tradicional (também chamada de matuta, com as representações e os estereótipos da vida rural e dos personagens caipiras). Depois, passou a ser estilizada (com as mudanças do figurino e a incorporação de novos ritmos e elementos nordestinos) e agora ela é recriada (mais voltada para o espetáculo) Então, a questão dos personagens hoje é muito relativa, depende da narrativa contada. Algumas quadrilhas costumam colocar vários personagens para contar a história. Outras reduzem a quantidade Tem quadrilhas que vão ter noivo, noiva e rainha. A gente poderia dizer que a rainha do milho era a parte estilizada da quadrilha, simbolicamente assumida pela garota que vendia mais rifas para a realização das festas. Atualmente, com a quadrilha recriada, existe a rainha da quadrilha, na qual ela não só assume o papel de rainha do milho, como também pode ser a rainha do que for, rainha do amor, do sol, das estrelas

O atual regulamento da Liga das Quadrilhas fala sobre personagens originais e obrigatórios: o noivo, a noiva, a rainha e o marcador Outra diferença da quadrilha es-

FORA DA CAIXA 72
PRIMEIRA PESSOA

estilizada para a recriada é que a estilizada obrigatoriamente tinha de trazer xote, xaxado, baião e arrasta-pé para fazer o complemento A quadrilha recriada foi abrangendo outros estilos de dança dentro do espetáculo. Então, você tem jazz, afro, sapateado e tudo o que você imaginar Com o tempo, a gente começou a ver um público de corpos mais diversificados e interessados nesses novos movimentos. No regulamento da Liga das Quadrilhas, a gente ainda consegue prender um pouco da tradição e da originalidade com os passos obrigatórios, como a grande roda, a rose marie, a marie rose e o grande túnel. Mesmo com balé, jazz, isso e aquilo, você tem de trazer esses passos tradicionais.

O que está se perdendo não é a forma de dançar, mas de construir o espetáculo Nos ensaios, as falas são de pessoas buscando quadrilha para concurso A gente ouve bem mais “Eu quero ganhar este concurso!”, “A gente vai arrasar!” e “A gente vai arrastar tudo!” do que “A gente vai se divertir nesse São João!”. Entende o peso disso?

PROTAGONISMO LGBTQIAPN+

Nas quadrilhas, integrantes LGBTQIAPN+ vêm assumindo um protagonismo, diferente de antes, quando eram colocados de forma muito caricata nos casamentos matutos, como um gay que aparecia para destruir o casamento, dizer que ficava com o noivo ou

FORA DA CAIXA 73
F o t o : W e s l e y M e n e g a r i
Nos anos de 2012, 2015 e 2017, Anderson Coutinho encarnou o personagem Lampião na Quadrilha Luar do Sertão
PRIMEIRA PESSOA

fazer alguma parte engraçada, mas sempre de forma pejorativa Hoje em dia, não

Entendemos que podemos fazer a dama G mais bonita da quadrilha ou assumir o papel de noiva. Já tiveram mulheres trans também como noivas e rainhas, e não apenas colocadas como coadjuvantes ou caricatas na cena do casamento. A possibilidade de você ter um corpo que lhe representa é maravilhosa. Antes, eu assistia às quadrilhas com vontade de dançar de menina, mas nunca via meninos gays dançando de meninas. Hoje, abrimos essa possibilidade de representatividade real de os meninos gays saberem que podem fazer o mesmo. Terem o direito de serem livres e se expressarem da forma como desejarem. Essa é a maior contribuição!

Infelizmente, o lado dos meninos trans e das meninas lésbicas ainda não aflorou para poderem se apropriar desse lugar em que eles e elas também têm essa oportunidade de assumir o papel de cavalheiros nas quadrilhas juninas... Tem meninas lésbicas que dançam, mas como damas Foi uma boa provocação a sua para pensarmos nisso para os próximos anos.

Entendo o movimento quadrilheiro como plural e antes a gente não era plural, havia essas limitações todas. Hoje, a gente consegue trazer essa pluralidade sem descaracterizar a nossa origem Por isso, tive de ressignificar o São João porque eu mesmo estava começando a ir pelo caminho de ver o espetáculo, de dançar pelo concurso e querer ganhar. Até que eu me lembrei que não comecei assim. Iniciei dançando quadrilha nos palhoções, que promoviam festas e a gente fazia questão de PRIMEIRA PESSOA

dançar todos os dias do São João. Era divertido, sabe? E isso foi se perdendo e precisa mudar! As pessoas precisam entender que cada um tem seu espaço no movimento junino. As damas Gs e as damas trans não vão tirar o lugar das mulheres héteros cis Pelo contrário! Vão acrescentar ainda mais. Os grupos puderam ter uma tranquilidade maior em termos de formação de casais porque muitas meninas cis, pelo gasto maior que as damas têm (atualmente é algo em torno de R$ 2 mil a R$ 2,5 mil com indumentária, sapato e maquiagem), elas acabavam saindo ou só dançavam se fossem ajudadas pelos cavalheiros. A questão da dança não mudou nada. As damas G estão se apropriando de algo que eram proibidas há muito tempo. A entrega é maior, tanto dançando quanto nessa produção. Se o menino gay que se transforma não estiver da melhor forma, ele não estará bem visualmente e esteticamente

Cada pessoa tem seu espaço no movimento junino e as damas Gs e trans vieram para contribuir na formação de casais junto com as damas cis nas atuais quadrilhas

FORA DA CAIXA 74
F o t o : D a l l F r a g o s o

falando. Precisa estar sempre impecável para poder ser o mais fiel possível ao personagem feminino assumido.

É importante ressaltar que, no meio quadrilheiro, a grande maioria é gay. Os homens heterossexuais que procuram as quadrilhas para dançar geralmente têm a sua namorada dançando também. No grupo em que eu participo, de 80% a 90% são gays, entre dançarinos e o pessoal de apoio. Nos outros grupos, o percentual é parecido Inclusive, uma das argumentações que a gente utilizava na época da campanha #vocemeaceitanasuajunina? era: será que o público e os corpos gays só servem para fazer o espetáculo acontecer? Será que eles não podem ser vistos também? A gente trazia toda a mão de obra, mas, na hora de se apropriar, a gente era proibido. De lá para cá, pouca coisa mudou porque ainda não há políticas e projetos que valorizem a

participação LGBTQIAPN+. A direção da Liga só aceitou a mudança porque interferia na questão financeira. Quando se mexe no bolso, as pessoas começam a mudar Se não tivesse essa imposição, tenho certeza de que ainda estaríamos lutando muito.

ABRAÇAR E DITAR NOVOS RUMOS

Qualquer pessoa, independentemente de orientação sexual e gênero, que se comprometa a estar no movimento junino já é para ser abraçada de alguma forma O movimento quadrilheiro está se defasando e perdendo vitalidade, importância e significado. As coisas estão indo por um caminho que o verdadeiro sentido do São João, que é a festa e a diversão, está se perdendo. É isso que nos faz lembrar do período junino! O movimento quadrilheiro foi por um caminho que apostou mais no espetáculo em si As quadrilhas se preparam

75 FORA DA CAIXA PRIMEIRA PESSOA
F o t o : D a l l F r a g o s o
No universo do cangaço e do cancioneiro de Luiz Gonzaga, Anderson Coutinho encarnou, em 2022, como marcadora G da Quadrilha Êta São João a personagem Paraíba Masculina, numa alusão à famosa canção do compositor

para os concursos, e não para se divertirem no São João durante as apresentações

A coisa começou a ficar mais profissional

As cobranças aumentaram; o excesso de ensaios e de investimentos, também. Então, isso acaba tendo uma cobrança a mais nas pessoas que procuram as quadrilhas. Vira quase uma companhia de dança, uma companhia cultural dançando, também por uma exigência do próprio público, que sempre vai querer mais Porém, as pessoas que estão nessa construção, como diretores, projetistas e coreógrafos, precisam saber até onde se pode ir, impondo certos limites, para garantir a nossa essência, não perder componentes nem público, que faz realmente a festa acontecer.

É preciso haver um choque de realidade. Muitos grupos já acabaram e muitas pessoas que dançavam há anos o São João começaram a se desgastar e preferem não estar mais no meio junino, principalmente após a pandemia da covid-19, que impediu as apresentações, pelo distanciamento social. Por outro lado, vai chegando muita gente nova encantada por esse espetáculo todo que acaba alimentando essa nova era junina. Por isso, quem chega hoje para somar deve ser acolhido e, ao mesmo tempo, ter consciência de que há uma origem e uma essência para além do espetáculo e das competições e que a diversão no movimento quadrilheiro pode refletir positivamente nos festivais para que possamos dar continuidade a essa expressão tão viva do nosso Nordeste, do nosso país.

Anderson Coutinho em depoimento a Marcelo Robalinho

PRIMEIRA PESSOA
F o t o : A n d e r s o n C o u t i n h o / A r q u i v o p e s s o a l

EDIÇÃO 11 EDIÇÃO 11 - ANO 2 - JUNHO/2024 - ANO 2 - JUNHO/2024

ICHCA - COS

JORNALISMO

LLABORATÓRIODE ABORATÓRIODE MÍDIAIMPRESSA MÍDIAIMPRESSA

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.