Cristianismo no Norte da África - David L. Estman

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Rio de Janeiro, RJ

Cristianismo no Norte da África

Traduzido do original em inglês: Early North African Christianity

Copyright © 2021 David L. Eastman

Publicado originalmente por Baker Academic, uma divisão Baker Publishing Group www.bakeracademic.com

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por PRO NOBIS EDITORA, Rua Professor Saldanha 110, Lagoa, Rio de Janeiro-RJ, 22.461-220

1ª edição: 2022

ISBN: 978-65-81489-22-9

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo citações breves, com indicação da fonte.

Gerência e direção editorial

Judiclay Silva Santos

Conselho editorial

Judiclay Santos

David Bledsoe

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Gilson Santos

Leandro Peixoto

Supervisão editorial: Cesare Turazzi

Tradução: João Costa

Preparação de texto: Cinthia Turazzi

Revisão: Gabriel Rocha Carvalho

Capa: Filipe Ribeiro

Diagramação: Marcos Jundurian

Nesta obra, as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo informação em contrário.

As opiniões representadas nesta obra são de inteira responsabilidade do autor e não necessariamente representam as opiniões e os posicionamentos da Pro Nobis Editora ou de sua equipe editorial.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Eastman, David L.

O cristianismo no norte da África : como teólogos africanos moldaram a teologia cristã / David L. Eastman ; [tradução João Costa]. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Pro Nobis Editora, 2022.

Título original: Early North African Christianity

ISBN 978-65-81489-22-9

1. África, Norte - Historia da Igreja 2. Cristianismo primitivo

3. Teologia - História - Igreja primitiva, ca. 30-600 I. Título.

22-123827

Índices para catálogo sistemático:

CDD-276.01

1. Norte da África : Igreja primitiva : Cristianismo 276.01

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

contato@pronobiseditora.com.br www.pronobiseditora.com.br

David Eastman une duas qualidades dificílimas de serem encontradas num autor de teologia histórica: uma excelente formação acadêmica em sua área de escrita (PhD em Yale) e uma facilidade de escrever sobre assuntos acadêmicos como se estivesse falando com iniciantes no estudo. Este livro reúne essas duas qualidades e, por isso, atende tanto os que estão começando nos estudos quanto enriquece aqueles que já têm alguma formação teológica. Eastman cobre a história do cristianismo de uma região (Norte da África) por meio de três grandes movimentos dos primeiros séculos: perseguição, combate a heresias e controvérsias internas. O Norte da África foi a região que produziu gigantes da teologia como Tertuliano e Cipriano de Cartago, além de palco de algumas das maiores controvérsias do período da patrística (contra novacianos, donatistas e pelagianos). Esse é um livro que cobre tudo isso, com bom conhecimento acadêmico, mas escrito com o tom de uma introdução.

Heber Carlos de Campos Jr., professor de teologia histórica do Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper

Prefácio à edição em português

Apresentação à edição em português

1. Uma (re)introdução à África ................................. 27

PARTE 1 | Perpétua e Felicidade

2. A vida e os tempos dos primeiros mártires ........... 37

3. Perpétua e Felicidade: Modelos de devoção cristã.. 51

4. Perpétua: Liderança e controvérsia ....................... 63

PARTE 2 | Tertuliano

5. A vida e os tempos de Tertuliano .......................... 79

6. Tertuliano defendendo a fé: Apologética e hereges 93

7. Tertuliano definindo a fé: A plenitude da Trindade 105

PARTE 3 | Cipriano de Cartago

8. A vida e os tempos de Cipriano ............................ 121

9. Cipriano: Sobre perdão e unidade ......................... 135

10. Cipriano: A controvérsia do rebatismo ................. 149

PARTE 4 | A controvérsia donatista

11. A vida e os tempos dos mártires tardios ............... 165

12. Cecilianistas versus donatistas: Igrejas rivais ........ 179

13. Donatistas versus cecilianistas: Mártires rivais ..... 193

PARTE 5 | Agostinho de Hipona

14. A vida e os tempos de Agostinho .......................... 211

15. Agostinho: Teólogo do Ocidente ............................ 225

16. Agostinho: O debate com Pelágio sobre graça e vontade ...................................................... 239 Conclusão .................................................................... 253

Bibliografia selecionada ............................................... 261

Prefácio à edição em português

A História (com “H” maiúsculo) é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento espiritual da Igreja de Cristo. Em uma geração marcada pelo imediatismo e pela negligência para com o passado, a trilha por rastros históricos leva o cristão de mente mais perspicaz às fontes inesgotáveis de autoconhecimento, de conhecimento da igreja, dos fundamentos de sua fé e das origens das doutrinas em que crê. À medida que desfia o tecido dos acontecimentos e eventos do passado, o investigador atento acessa uma rica, densa e diversa herança espiritual. O cristianismo antigo é como uma floresta que, quando observada de cima, dá de enxergar a unidade, a coesão, a interdependência, a interação, embora com muitas tonalidades de verde, diversos tipos de floração e de frutos e numerosas espécies de plantas. O Senhor da igreja, em sua sabedoria e providência, agiu na antiguidade cristã em um movimento de unidade e diversidade. Na imagem do poeta brasileiro Stênio Marcius, um tapeceiro cuja obra final é um único tapete, mas que “traça voltas, faz mil caminhos sem perder o fio”.

Tendo isso em mente, Cristianismo Norte da África: Como teólogos africanos moldaram a teologia cristã, de David L. Eastman — internacionalmente conhecido por seus estudos no Novo Testamento e no cristianismo antigo, além de ser um

professor que legou ao mundo acadêmico e à comunidade cristã em geral um material que nasceu para a sala de aula, mas se propõe a edificar a igreja toda —, transporta-nos à igreja antiga no norte da África, a uma região e a uma história pouco conhecidas dos brasileiros. A definição geográfica dada pelo professor do que é a África cristã primitiva e a divisão de seu estudo em cinco momentos dentro de um lapso temporal de um pouco mais de dois séculos, desde o martírio de grupos cristãos no início do século III até a vida e teologia de Agostinho de Hipona, nas primeiras décadas do século V, tornam o estudo leve e a leitura fácil (de fato, um mestre lecionando aos seus pupilos). Ademais, a seleção de importantes figuras históricas e de temas teológicos fundamentais tornam o cristianismo africano acessível à igreja atual através de uma didática poucas vezes vista em livros de história. Os capítulos, por sua vez, trazem suas ideias-chave, e a estruturação dos tópicos que serão ali desenvolvidos torna essa obra uma aula à parte de pedagogia. A princípio, ao explorar os motivos que levaram Roma a perseguir e matar os cristãos em Cartago, Eastman destaca a acusação de ateísmo: isto é, aqueles que adoravam o Deus verdadeiro eram acusados de negligenciar o culto e os sacrifícios aos deuses romanos. Os rumores que se divulgavam sobre as reuniões cristãs eram escandalosos e somavam-se a essa acusação inicial, marginalizando as comunidades cristãs naquela sociedade. Os relatos de perseguição e martírio podem ser encontrados nas obras de historiadores romanos, e as citações desses registros historiográficos são completadas ricamente pelo contexto que o autor costura para um entendimento claro do leitor. Por exemplo, a história das jovens Perpétua e Felicidade e seus vínculos com o movimento Nova Profecia (montanismo) é instigante e explora vários temas teológicos, fechando a primeira parte do livro.

Seguindo, a vida de Tertuliano e de Cipriano de Cartago são revisitadas e questões contextuais e teológicas são vistas com uma perspectiva própria do autor. A relação de Tertuliano com as igrejas orientais e com Roma sofre alguns reveses, o que impede que sua grande habilidade teológica seja absorvida plenamente no tecido da igreja antiga. Por meio desse pano de fundo, o professor Eastman instiga o leitor com essas contrariedades, trazendo para o debate algumas pistas históricas — como textos críticos ao bispo romano ou sua participação no montanismo — para tentar decifrar esse ostracismo de Tertuliano. Já mediante a vida de Cipriano somos presenteados com a exposição da crise romana do século III e com a situação das comunidades cristãs no norte da África diante da perseguição que o império infligiu ali. O bispo não só dá respostas teológicas acerca da reação dos vários grupos cristãos à importunação imperial e suas consequências na igreja, como paga com a própria vida por sua posição contra Roma.

Quanto aos desdobramentos da reação da igreja, com sua produção teológica, aos atos de acossamento imperial, estes levaram à controvérsia donatista, a qual o autor descreve como “evento político, eclesiástico e social mais importante na igreja africana primitiva”. Devo dizer que, ao longo dessas páginas, mais uma vez o leitor será surpreendido e presenteado com uma aula sobre as perseguições e os martírios do início do século IV e sobre o donatismo e suas consequências para a igreja.

E, por fim, o professor Eastman conclui sua aula magistralmente com um pouco da vida e obra de Agostinho. O bispo de Hipona foi diretamente influenciado pelos acontecimentos que transcorreram no norte da África. Desde os martírios de Perpétua e Felicidade, passando pela vida e obra de Tertuliano e Cipriano, até a grande controvérsia donatista, o contexto deságua num tempo em que a perseguição cessa. Por isso, os problemas que

Agostinho enfrentou foram ideias heréticas — as quais o professor Eastman apresenta panoramicamente — e, no fim de sua vida, o cerco bárbaro à sua cidade.

Após toda essa leitura, devo reforçar que se trata de uma grande oportunidade para o leitor de língua portuguesa ter acesso a essa diversidade do cristianismo antigo daquela região através da vida e do contexto histórico de mártires e dos Pais da Igreja, assim como ter conhecimento de ricos detalhes sobre importantes controvérsias teológicas da antiguidade. A Pro Nobis Editora acerta ao traduzir este livro, confirmando seu propósito de resgatar a herança histórica cristã, seus personagens mais importantes e seus temas centrais. As contribuições dadas pela igreja antiga do norte da África não só impactaram o mundo cristão primitivo, mas também influenciam a igreja até hoje. Minha oração é que esta obra cumpra sua função: edificar a igreja brasileira, criando homens e mulheres conscientes historicamente de suas origens e de sua riquíssima herança espiritual. Agradeço ao Pr. Judiclay Santos, diretor da editora, pela amizade e pela oportunidade de ler e comentar essa obra.

A serviço do Senhor e de sua igreja, Bruno Calíope Gurgel, empresário e professor de história da igreja.

Apresentação à edição em português

Numa era de proliferação da informação, na qual as redes sociais ditam as regras da nossa perceção da realidade universal, tanto do passado quanto do presente, somos, cada vez mais, desafiados a redobrar os esforços na busca da verdade relacionada com os fatos. Somos instigados a refinar a nossa capacidade de selecionar e de filtrar a grande variedade de dados que nos chegam, avaliando com inteligência e perspicácia a veracidade dos mesmos e, munidos de um espírito aberto, mas crítico, aceitar de bom grado todos aqueles cujas fontes nos pareçam sustentáveis e solidamente verificáveis.

Revisitar os registos históricos e tirar deles as informações fiáveis é um dos empreendimentos relevantes, que exige acurado trabalho de investigação, cujo propósito é o de fornecer alguma clareza sobre realidades distantes, no tempo e no espaço; realidades essas que seriam desconhecidas se esse laborioso trabalho não fosse realizado.

A rica, longa e marcante história do cristianismo, com os seus mais de dois mil anos de existência, de influência e de alcance universal, contém “páginas” significativas e de inegável relevância; “páginas” essas que se destacam pela forma como

moldaram culturas, subverteram costumes, mudaram cosmovisões e promoveram a dignidade humana.

Portanto, é imperativo, urgente e proveitoso que os cristãos conheçam os momentos mais relevantes que “matizaram” a história do cristianismo, nos seus aspectos mais variados e nas diferentes regiões da terra, onde a sua influência foi notória. O seu conhecimento fará com que os cristãos estejam mais familiarizados com os acontecimentos que marcaram e moldaram a história dos últimos vinte séculos.

Antes de mencionar o contributo e os efeitos que a leitura do livro Cristianismo no Norte da África: Como teólogos africanos moldaram a teologia cristã, do autor David L. Eastman, produziu em mim, quero dar um testemunho pessoal, que se relaciona com a necessidade do conhecimento histórico que todos devemos possuir, de modo a avaliar bem, e com certo grau de segurança, as informações e as propostas que nos são apresentadas.

Nasci em África, no seio de uma família cristã, na década de 1960, e num período histórico singular caraterizado pelas profundas mudanças sociopolíticas que tiveram lugar nos vários países da África subsariana. Num período de cerca de dez anos houve intensos conflitos. Vários países africanos exigiram a independência das suas potências coloniais e, por uma conjugação de fatores, esses países tonaram-se independentes e passaram a ser dirigidos por políticos africanos. Em termos gerais, as décadas de 1960 e 1970 foram de muita agitação sociopolítica e religiosa, de inflamados discursos de triunfo e de “valorização do homem negro” que, finalmente, tinha reconquistado a sua dignidade pessoal e cultural. Por motivo da guerra pela libertação que assolou o país (Angola), os meus pais tiveram de emigrar para o país vizinho, o então “Congo Belga” (atual República Democrática do Congo). E por força dessa emigração compulsiva, acabei por partilhar a minha infância entre os dois países, Angola e Congo Belga.

Os meus pais eram crentes no Senhor e ambos pertencentes à denominação batista. Ambos tinham tido a sua formação primária numa escola cristã, dirigida pelos missionários ingleses enviados pela BMS (Baptist Missionary Society), fundada em 1792 por William Carey, e que muito contribuiu para a formação de crianças e jovens angolanos, que mais tarde viriam a ser os primeiros políticos da nação recém-independente. A Missão, sedeada em Kibocolo, era uma das duas mais prestigiadas do país, sobretudo na região norte de Angola. A outra era a Missão de Bembe. A partir dessas duas Missões Batistas, vários jovens angolanos receberam a sua formação cívica e teológica, que os capacitou a pregar o evangelho e a pastorear um considerável número de igrejas locais que foram sendo estabelecidas. Um desses jovens era o meu pai, que mais tarde viria a ser pastor. Entre as razões que me levam a dar o meu testemunho pessoal, destaco duas que me parecem relevantes e que se relacionam com o tema do livro de Eastman. Uma é ideológica e outra, sociorreligiosa.

Em termos ideológicos, a minha infância e adolescência foram marcadas pela influência do comunismo, que influenciou grande parte do pensamento popular e a visão política da primeira geração de políticos que assumiram a liderança das ex-colônias. Obviamente, essa visão ideológica foi considerada como aquela que melhor respondia às necessidades dos povos africanos, agora livres da opressão colonial e do domínio europeu. Como era de esperar, tudo o que estava relacionado com a fé em Deus e, em particular, com o cristianismo tinha de ser banido ou, no mínimo, suprimido. Símbolos cristãos e quaisquer outros sinais ligados à fé eram banidos de ambientes públicos. Questões espirituais tornavam-se cada vez menos relevantes na realidade quotidiana e no destino da nação. O Estado passaria a ser o garante da proteção e do bem-estar do povo. Deus já não era “necessário”.

Em termos religiosos, verificou-se a emergência de várias figuras públicas movidas pelo ardente desejo do popularizado movimento do “regresso à autenticidade”. Um dos protagonistas desse movimento foi, sem dúvida, o carismático presidente da República do Congo Belga, Joseph Désiré Mobutu, que ascendeu ao poder em 1965. Com a eclosão do movimento retour à l’authenticité, tudo o que estava relacionado ao ocidente colonial devia ser banido da vida e da identidade africanas. E durante os nove anos em que vivi no Congo, pude observar a crescente popularidade deste carismático “líder do povo” e a sua determinação em promover a sua teoria “amiga de África”. Com o objetivo de “apagar todos os traços” do colonialismo ocidental, várias vozes se levantaram em oposição ao cristianismo. Embora já tivesse havido no passado alguns sinais de protesto contra o “papel opressor” da fé cristã na colonização de África, agora, as reivindicações sobre a valorização das “crenças africanas” ganhavam uma dimensão sem precedentes. Para muitos, o cristianismo não era mais que uma religião “dos brancos”, estranha à realidade africana e que servia, apenas, como “instrumento eficaz” de manipulação dos africanos pelo poder colonial e dominador. De certa forma, tanto o cristianismo como a Bíblia passariam a ser vistos como “elementos estranhos” à cultura e à realidade africanas, logo, deviam ser rejeitados.

Com o movimento do “regresso à autenticidade” africana, surgiram vários grupos promovendo e revitalizando certas práticas ancestrais de culto há muito abandonadas pela influência do evangelho. Pude ver o surgimento e a expansão de movimentos religiosos, tanto em Angola como no Congo, que mais tarde se transformaram em “Denominações Eclesiásticas” bastante influentes nos seus respectivos países; denominações essas identificadas pelos nomes dos seus fundadores ou daqueles que estiveram na vanguarda do seu início.

Antes de deixar este ponto, convém fazer uma observação que, em certa medida, fará justiça aos fatos, repondo a verdade dos mesmos. Na verdade, a chegada de europeus ao continente africano foi acompanhada de várias atrocidades cometidas por pessoas mal-intencionadas, movidas por interesses egoístas e que, em nome da religião, usaram e abusaram da bondade dos povos autóctones, desumanizando-os e tirando deles tudo o que lhes era importante e precioso, ao ponto de muitos terem sido brutalmente torturados e assassinados. É um fato inegável que, em nome do cristianismo e de Jesus, atos horríveis e abomináveis foram praticados. E isso não pode ser ignorado, menosprezado ou intencionalmente ocultado, visto estar sobejamente documentado.

Tendo em consideração tudo o que foi dito sobre a realidade dos nossos dias e da menção feita aos conturbados anos que caraterizaram as décadas de 1960 e 1970 do século 20, e tendo em conta a visão religiosa distorcida que ainda permanece na mente de muitos africanos, em relação à fé cristã e à singularidade do Senhor Jesus Cristo, importa destacar a extraordinária e bem conseguida obra escrita por David L. Eastman sobre a influência de teólogos africanos que, desde a primeira hora, estiveram na base da construção do pensamento teológico cristão e na defesa da fé, ao ponto de, nalguns casos, lhes ter custado a própria vida.

Circunscrevendo a sua pesquisa num relato histórico de cerca de dois séculos, Eastman resume o conteúdo do seu livro, com magistral capacidade de síntese, em cinco momentos principais; momentos esses que (com sabedoria e intencionalidade seletiva) abrangem um período de cerca de dois séculos (século 2 a século 4). O autor inicia a sua abordagem com a história do martírio de alguns grupos de cristãos, devido à sua fé e ao seu testemunho destemido, representados pelas duas jovens Perpétua

e Felicidade, cuja piedade e a experiência das suas decisões estavam diretamente ligadas ao movimento “nova profecia”. Com rigor cirúrgico, mas sem deixar de mencionar os aspectos mais importantes da sua vida e do seu contributo na defesa da fé genuína e no ataque aos falsos ensinos dos hereges, Eastman apresenta-nos aquele que ficou conhecido como “o pai da teologia latina”: Tertuliano, o grande teólogo que, pela primeira vez, cunhou a expressão “Trindade” (trinitas), na tentativa de explicar a difícil doutrina da existência de Deus em três pessoas.

Depois de Tertuliano, o autor destaca a vida e a coragem de Cipriano na defesa da fé e na sua determinação em estabelecer a paz no seio de uma igreja dividida, e de encontrar as soluções adequadas que contribuiriam para a manutenção de uma igreja santa e pura. Após mencionar várias controvérsias (entre donatistas e cecilianistas), que abalaram a unidade da igreja e a tensão existente entre a liderança africana e a romana, Eastman conclui a sua obra com a vida e o gigantesco contributo daquele que é considerado pela esmagadora maioria de estudiosos da história do cristianismo como “o grande teólogo cristão”, depois de Paulo, Agostinho de Hipona.

Ao ler a primeira edição desta obra de David L. Eastman, e acompanhar com bastante atenção o rigor pedagógico evidenciado pelo autor, tenho de realçar a forma intencional como este prolífico historiador procurou demonstrar o fato de o cristianismo, desde os seus primórdios, ter estado sempre ligado ao continente africano. E, ao destacar o contributo dessas figuras emblemáticas da história da fé cristã, no que diz respeito à sua piedade e à elaboração do seu pensamento teológico, Eastman esclarece e corrige, com base em evidências históricas, pontos de vista equivocados que tendem a dissociar a África pré-colonial da rica história e herança cristãs.

Embora o espaço geográfico africano mencionado pelo autor se circunscreva ao norte de África, esse fato não afeta nem reduz a relevante conexão que o autor estabelece entre o continente africano e os inícios da história e da teologia cristãs.

Tendo como base a relevância das informações que, com rigor acadêmico e competência pedagógica, nos são trazidas por David L. Eastman, recomendo a leitura do livro Cristianismo no Norte da África: Como teólogos africanos moldaram a teologia cristã, com a plena convicção de que essa leitura será de grande utilidade para todos aqueles que procuram aprofundar os seus conhecimentos, em matéria da história e da teologia cristãs que, em grande medida, estiveram na base da construção do pensamento cristão que influenciou povos e culturas.

Foi com entusiasmo e profundo sentimento de gratidão que li a primeira edição deste livro tão estimulante e esclarecedor. E agradeço à Pro Nobis Editora o excelente trabalho de tradução desta obra para a língua portuguesa, esperando que produza resultados positivos e significativos na vida de todos os que tiverem a oportunidade de a ter em mãos.

Agradeço, igualmente, ao Pr. Judiclay Santos, diretor da editora, que gentilmente me ofereceu um exemplar da primeira edição, e que me concedeu o privilégio e a honra de escrever esta apresentação.

A minha sincera oração é que o Senhor, na sua bondade e imensa graça, continue a abençoar o ministério da Pro Nobis Editora, de modo a abençoar profusamente os leitores de língua oficial portuguesa com a publicação de mais obras de excelente qualidade, como esta que temos diante de nós.

Em Cristo e ao serviço do Mestre, Samuel Quimputo, pastor da Igreja Evangélica do Seixal, Portugal.

Lista de imagens

Imagem 1.1: Mapa do norte da África Romana

Imagem 2.1: Pessoa condenada às feras (El Djem)

Imagem 3.1: Mosaico retratando Perpétua (Ravena)

Imagem 4.1: Santa cidade montanista de Pepouza

Imagem 5.1: Restos de uma basílica cristã em Cartago (Damous el Karita)

Imagem 6.1: Anfiteatro romano de Cartago

Imagem 7.1: A metáfora legal de Tertuliano para a Trindade

Imagem 8.1: Imperador romano fazendo uma oferenda aos deuses em homenagem aos três animais sagrados: porco, ovelha e touro

Imagem 9.1: Mosaico retratando Cipriano (Ravena)

Imagem 10.1: Batistério em Tipasa

Imagem 11.1: Pessoa condenada às feras (Trípoli)

Imagem 12.1: Bispos cecilianos e donatistas de Cartago

Imagem 12.2: Batistério donatista em Timgad

Imagem 13.1: Linhas de sucessão de mártires cecilianistas e donatistas

Imagem 13.2: Mosaico de Uppenna vinculando os mártires abitinianos aos apóstolos

Imagem 14.1: Batistério de Santa Tecla (Milão)

Imagem 14.2: Basílica de Agostinho (Hipona)

Imagem 14.3: Batistério de Agostinho (Hipona)

Imagem 15.1: Mosaico retratando Agostinho (Palermo)

Imagem 15.2: Modelo relacional da Trindade, por Agostinho

Imagem 16.1: Cátedra da igreja de Agostinho (Hipona)

Agradecimentos

Antes de tudo, esta obra é dedicada com profundo respeito e gratidão a J. Patout Burns Jr., renomado estudioso do cristianismo primitivo africano, querido amigo e colega de muitos de nós que estão se esforçando para assumir o manto. Vai valer a pena ouvir suas conversas no céu com Agostinho.

Prosseguindo, este livro é baseado em um curso que ministrei no Cairo nos verões de 2014 e 2015: “Readings in Early African Christianity: Carthage and Its Vicinity” (Leituras no cristianismo primitivo africano: Cartago e seus arredores. O curso foi ministrado pelo Center for Early African Christianity [Centro de estudos do cristianismo primitivo africano] (CEAC) sob a direção do Dr. Michael Glerup e organizado pelo Rev. Dr. Jos Strengholt. Os alunos deste curso deram um retorno inestimável, e o CEAC continuou a fornecer apoio generoso durante a produção desta obra. Também gostaria de expressar minha gratidão ao saudoso Thomas C. Oden, que foi o diretor-fundador do CEAC e que tanto fez para aumentar a conscientização sobre a história cristã primitiva da África, particularmente para leitores de fora do âmbito acadêmico.

Kiersten Payne foi minha assistente de pesquisa na Ohio Wesleyan University nos estágios iniciais da transição deste projeto de palestras para texto. Seus comentários também

contribuíram muito para preparar o material para um público leitor mais amplo.

Também me beneficiei de interações com colegas da Universidade de Regensburg, na Alemanha, como parte do grupo de pesquisa colaborativa da German Research Foundation [Fundação de pesquisa alemã] (DFG), “ Beyond Canon: Heterotopias of Religious Authority in Ancient Christianity” (Além do cânone: Heterotopias da autoridade religiosa no cristianismo antigo). Este grupo internacional estuda a recepção das tradições canônicas no cristianismo primitivo. Minhas interações com eles deram o devido estofo às discussões deste livro sobre a interpretação e recepção da vida e das epístolas do apóstolo Paulo.

Finalmente, gostaria de agradecer aos meus queridos amigos e colegas David Wilhite, Chris de Wet, Young Kim e James Papandrea pelas discussões frutíferas de grandes ideias em espaços liminares.

Abreviações

1 Apol. Justino, Primeira apologia

Acta Cypr. Atos de Cipriano

Acta mart. Scillit. Atos dos mártires cilitanos

Adv. Donat. Optato de Milevo, Contra os donatistas

Apol. Tertuliano, Apologia

Civ. Agostinho, A cidade de Deus

Coll. João Cassiano, Conferências

Comm. Jer. Jerônimo, Comentário de Jeremias em seis livros

Conf. Agostinho, Confissões

CPD Agostinho, Aos donatistas após a conferência

Dies nat. Pet. Paul. Agostinho, Sermão por ocasião do aniversário dos apóstolos Pedro e Paulo

Enchir. Agostinho, Enchiridion (Fé, esperança e amor)

Ep. Epístola

Grat. Chr. Agostinho, Sobre a graça de Cristo e o pecado original

Haer. Agostinho, Heresias

Hist. eccl. Eusébio, História Eclesiástica

Inst. João Calvino, Institutas da religião cristã

Jejun. Tertuliano, Sobre o jejum: Contra os crentes carnais

Laps. Cipriano, Os lapsos

Mort. Lactâncio, Sobre a morte dos perseguidores

Nupt. Agostinho, Casamento e concupiscência

Oboed. Agostinho, Obediência

Orat. Gregório de Nazianzo, Discursos

Pass. Dat. Saturn. Atos dos mártires abitinianos

Pass. Perp. A paixão de Perpétua e Felicidade

Praescr. Tertuliano, Prescrição contra os hereges

Prax. Tertuliano, Contra Práxeas

Trin. Agostinho, Trindade

Vir. ill. Jerônimo, Sobre homens ilustres

Vit. Cypr. Pôncio, A vida de Cipriano

Uma (re)introdução à África

Definindo “África”

Este livro se concentra na África cristã primitiva, mas precisamos esclarecer o que queremos dizer com “África”. Se dissermos “África” hoje, muitas pessoas pensam em todo o continente. Isso pode gerar mal-entendidos, porque quando os meios de comunicação se referem aos problemas da “África”, eles mascaram a grande variedade entre as diferentes nações desse enorme e belo continente. O Egito é muito diferente do Quênia, e ambos os lugares são bem diferentes da África do Sul.

Como estamos estudando o mundo antigo, neste livro vamos definir a África por seus antigos limites. Em nosso período de estudo, a costa norte do continente estava sob o controle do Império Romano, e os romanos chamavam essa área específica de “África”. A África para os romanos não incluía o Egito (que eles chamavam de Egito — Aegyptus) ou qualquer lugar ao sul do Saara. Assim, neste livro, a África não se refere a todo o continente, mas a uma parte muito particular da costa norte do continente.

Por uma questão de clareza, muitos estudiosos do cristianismo primitivo se referem a essa região como “norte da

África”. Eles querem ser mais específicos sobre o que está e o que não está incluído.

O mapa da Imagem 1.1 mostra a área da África Romana. Ela se estendia desde a atual Líbia até a costa noroeste do continente no atual Marrocos.

Imagem 1.1: Mapa do norte da África Romana.

Vejamos agora com mais detalhes o mapa desta região. No Império Romano, a África foi realmente dividida em quatro regiões menores com fins administrativos. A África Proconsular cobria grande parte da atual Tunísia e trechos do norte da Líbia. Incluía Cartago, a maior e mais importante cidade de toda essa região (Chamava-se África Proconsular porque era onde residia o procônsul, ou governador regional.)

Por um longo período de tempo antes do domínio romano, Cartago controlava esta parte do mundo, incluindo até a Sicília. Cartago era uma antiga superpotência econômica e militar. Como os romanos e os cartagineses continuaram se enfrentando, uma série de três guerras, chamadas de Guerras Púnicas, finalmente eclodiu entre esses dois impérios. Roma finalmente alcançou a vitória, mas apenas por uma margem estreita. O famoso general cartaginês Aníbal, que marchou com seu exército pelos Alpes no inverno (incluindo seus elefantes de guerra), quase conquistou Roma em certo ponto. Mas Roma por fim venceu e assumiu a região, e Cartago permaneceu uma cidade-chave. Isso era verdade antes de o cristianismo chegar ali, e permaneceu assim após ter se espalhado por todo o Império Romano. Cartago tornou-se uma das cidades mais relevantes do cristianismo primitivo, e a relação entre ela e Roma permaneceu importante, e foi — como veremos neste livro — algumas vezes tensa.

Mais a oeste, incluindo parte da moderna Argélia, estava a Numídia. Essa região também incluiu uma série de cidades importantes. Hippo Regius (“Hipona Real”, a moderna Annaba) é provavelmente a mais famosa. “Hippo” era uma forma latinizada do nome mais antigo da cidade na língua púnica, e “Regius” designa que os antigos reis da Numídia costumavam residir lá. Na história cristã, o nativo mais famoso de Hipona foi um bispo chamado Agostinho (Santo Agostinho) — que será

o foco da parte 5 deste livro. Ele serviu como bispo da cidade de 395 d.C. ou 396 d.C. até sua morte em 430. Ele também nasceu na Numídia em um lugar chamado Tagaste (atual Souk Ahras, Argélia) e estudou em Madauro (distrito moderno de M’Daourouch), um centro de aprendizado que foi a cidade natal do famoso autor romano Apuleio. No geral, a Numídia era menos urbana do que a África Proconsular, e as duas regiões nem sempre concordavam em assuntos eclesiásticos, como veremos. Em seguida vem a região da Mauritânia, originalmente subdividida em duas partes. A Mauritânia Cesariense foi governada a partir de uma cidade chamada Cesareia na costa do Mediterrâneo, e a Mauritânia Tingitana foi governada a partir da cidade de Tingis (atual Tânger) no Estreito de Gibraltar. Diocleciano criou uma terceira divisão em 293 d.C., a Mauritânia Sitifensis (governada a partir da cidade interior de Setifis, que é a moderna Sétif).

As regiões da Mauritânia eram menos densamente povoadas do que outras partes do norte da África, mas ainda abrigavam cidades grandes e impressionantes. As ruínas dessas cidades costumam estar bem preservadas no clima quente e seco da região, mas são muito menos visitadas do que outras partes do antigo Império Romano (viajar de forma particular para a Argélia exige muito planejamento e documentação, mas por experiência própria posso dizer que os sítios lá valem o esforço. Você também terá a maioria dos sítios arqueológicos e museus só para você).

A centralidade da África

Quando falamos da História neste período, devemos ser claros sobre outra coisa: a África estava no centro da ação e não era uma região secundária ou posteriormente considerada. Na época do Império Romano, a população de Roma havia aumentado para cerca de um milhão de pessoas, segundo

A Pro Nobis Editora nasceu da visão de servir à igreja brasileira mediante a literatura cristã de qualidade. O ministério da Pro Nobis tem por alvo especial ajudar os batistas brasileiros na missão de edificar a igreja e anunciar o Evangelho ao mundo. Para tanto, o conhecimento de suas raízes históricas e herança teológica é fundamental. Existem excelentes editoras evangélicas no Brasil, com as quais juntamos forças nesse trabalho de servir ao povo de Deus.

Mas por que Pro Nobis? Trata-se de uma expressão em latim que significa POR NÓS. Na tradição cristã, essa expressão se relaciona com a obra de Jesus Cristo em nosso favor. A cruz é o símbolo maior e mais sublime da fé cristã, o coração do Evangelho. O Deus Trino fez uma aliança de redenção em favor de seu povo eleito, salvo pelo sangue do Cordeiro. Nosso alvo é edificar a igreja para que ela prossiga na missão de proclamar “o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef. 3.8).

Acesse o site e acompanhe nosso ministério: www.pronobiseditora.com.br

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