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ARTES E LETRAS NA

DIÁSPORA AÇORIANA

ARTS AND LETTERS IN THE AZOREAN DIASPORA

PRIMEIRA EDIÇÃO

FEVEREIRO 2023

FICHA técnica

Director: Diniz Borges

Editorial Board: Linda carvalho-Cooley; Eugénia Fernandes, Emiliana Silva and Micahel DeMattos

Advisory Board: Onésimo Almeida, Duarte Silva, Teresa Martins Marques, Renato Alvim, Debbie Ávla, Manuel Costa Fontes, Vamberto Freitas, Irene M. F. Balyer and Lélia Pereira Nunes

Designer: Humberto Ventura - www.illustratetheweb.com

Contents 3 em poucas palavras 4 in a few words 5 uma ilha que é um mundo 9 lembrança 11 a propósito do prémio natália correia 16 preface to the caligraphy of the birds 17 quarantine highway 18 ‘oh eye of prodigy‘ 2

EM poucas palavras...

Diniz Borges

Em 1990, na pequena cidade de Tulare, começou-se um simpósio literáriodramático, que teria impacto na comunidade a nível local e estadual. O Filamentos da Herança Atlântica existiu durante 12 anos e trouxe a Tulare, geminada com a cidade de Angra do Heroísmo desde 1966, um número significativo de escritores, poetas, académicos, artistas plásticos, atores e músicos. Vinte anos mais tarde, a Bruma Publications do Portuguese Beyond Borders Institute-PBBI da universidade estadual da Califórnia em Fresno, lança esta publicação bilingue de artes e letras dando-lhe o nome do simpósio de Tulare, como era conhecido. Acreditamos que todos estamos aqui sobre os ombros de alguém.

Aqui teremos uma amalgama de trabalhos nas duas línguas da nossa diáspora nos Estados Unidos. Filamentos, terá como objetivo principal, ser um espaço de diálogo literário e artístico entre a nossa diáspora nos EUA e no Canadá e da mesma com os Açores, com a Madeira, Portugal continental e o mundo lusófono. Queremos ainda dialogar com outras culturas e outras identidades que compõem o multiculturalismo dos dois principais países da nossa imigração

para o continente norte americano.

Com ensaios, com textos criativos e analíticos, com poesia, com notícias do mundo das artes e letras, com entrevistas, tentaremos estabelecer um espaço na diáspora que crie ainda mais pontes entre o mundo lusófono, dando destaque especial aos Açores e a sua diáspora.

Agradecemos a todos que colaboraram nesta primeira edição.

Abraços

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Diniz Foto de diniz borges pela universidade dos açores

In a few words...

Diniz Borges

In 1990, in the small town of Tulare, a literary-dramatic symposium was started, which would impact the community at the local and state level. Filaments of the Atlantic Heritage existed for 12 years and brought to Tulare, a sister city with the city of Angra do Heroísmo in the Azores since 1966, a significant number of writers, poets, academics, visual artists, actors, and musicians. Twenty years later, Bruma Publications of the Portuguese Beyond Borders InstitutePBBI of California State University at Fresno launched this bilingual publication of arts and letters, naming it after the Tulare symposium, as it was popularly known. We believe that we are all here on someone’s shoulders.

Here we will have an amalgamation of works in the two languages of our diaspora in the United States. Filamentos will have as its primary goal to be a space for literary and artistic dialogue between our Diaspora in the US and Canada with the Azores, with Madeira, mainland Portugal, and the Portuguese-speaking world. We also want to dialogue with other cultures and identities that make up the multiculturalism of the two leading countries of our immigration to the North American continent.

With essays, creative and analytical texts, poetry, news from the world of arts and letters, with interviews, we will try to establish a space in the Diaspora that creates even more bridges between the Lusophone world, giving particular emphasis to the Azores and its Diaspora.

We thank all who contributed to this first edition.

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Abraços Diniz Foto: California State University, Fresno

UMA ILHA QUE É UM MUNDO

Onésimo Teotónio Almeida

A ilha das Flores está há muito, e por bem legítimo direito, colada às letras açorianas. Roberto de Mesquita, Alfred Lewis e Pedro da Silveira são um trio de respeitável peso, embora qualquer um deles de per si justificasse uma profunda vénia à terra que chamaram sua. Não foram, aliás, esses os únicos autores ali nados; são, porém, sem dúvida os seus inquestionáveis expoentes.

Mesquita e Silveira foram poetas; Lewis foi prosador e da sua ilha apenas num livro nos deixou narrativa – Home Is An Island. Quer dizer que da mais ocidental ilha açoriana não dispomos de muita prosa, ao contrário do que acontece por exemplo com as ilhas maiores – S. Miguel, Terceira e Pico.

Entretanto, há anos para cá uma voz vem sistematicamente contando num blogue –Pico da Vigia - estórias dos anos cinquenta e sessenta, os da infância e adolescência do seu autor, Carlos Joaquim Fagundes. É com gosto que passo a apresentá-lo, revelando a minha cumplicidade no surgimento do presente livro.

ambos entrámos para o Seminário Menor de Ponta Delgada, acabadinhos de completar a 4ª classe, ao tempo o último ano de escolaridade obrigatória. Desde cedo me impressionou a riqueza de vocabulário do Fagundes (sempre o tratámos pelo sobrenome). Ouvi desde bem cedo dizer que nas Flores havia o hábito de ao serão as pessoas se juntarem a ouvir alguém ler livros, sobretudo romances, e esse facto explicaria a riqueza do linguajar florentino, bem como o particularmente elevado nível educacional médio da população da ilha. Um índice aferidor desse caso especial era, nesse tempo, um dado curioso: no Seminário de Angra havia cinco professores florentinos, quase tantos como os de S. Miguel, onde a população era trinta e tantas vezes maior.

Referir este pormenor poderá parecer uma indiscrição leviana, contudo não sou o primeiro a fazê-lo. Num livro autobiográfico, o Cónego Francisco Caetano Tomás revelou uma conversa extremamente explícita nesse sentido, que com ele teve o seu colega e patrício das Flores, o Dr. Américo Caetano Vieira, ambos membros do corpo docente do Seminário de Angra.

Mas voltemos ao Carlos Fagundes.

Conheço o autor desde 1958, quando

Lembro-me de nos nossos anos de estudantes em Angra ele me ter mostrado sonetos seus a imitar admiravelmente os poetas clássicos que conhecíamos quase só das selectas literárias usadas nas aulas de Português. Além disso, variadas vezes lhe ouvi contar dramáticas histórias da sua experiência pessoal, de familiares bem próximos e da gente da sua Fajã Grande. Narrava-as com a emoção de testemunha.

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ao lado: capa do livro “entre o mar e a rocha. estórias“ de carlos fagundes.

Em baixo: panorama da ilha das flores fotografado pelo mesmo autor.

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ocular, pois sentira na pele muitas daquelas situações de sofrimento humano que também a mim impressionaram fortemente

Décadas mais tarde reencontrámo-nos, e lembro-me de ter insistido com ele para que lançasse ao papel as experiências dos seus tempos de menino e de adolescente. Seria uma rica partilha, pois no resto do arquipélago conhece-se pouco da vida do passado na sua ilha natal. Dispomos, é certo, de poemas de Pedro da Silveira que constituem autênticas pinturas, com traços de pincel a oferecerem-nos eloquentes quadros dos ambiente da ilha. Mas faltam narrativas e daí a minha insistência.

Alguns anos mais tarde, de passagem por Angra, cruzei-me por meríssimo acaso com o Carlos Fagundes na rua da Sé. À pergunta Que fazes por aqui? respondeume que concorrera aos Jogos Florais das Festas da Cidade e tivera uma narrativa contemplada. Tinha ido receber o prémio.

Voltei à carga. Ocorreu-me logo que certamente o escritor Álamo Oliveira teria sido membro do júri e esse era um aval pesado. Se lhe premiara um escrito, eu tinha agora um argumento de peso bem maior para insistir em encorajá-lo a publicar um livro.

Entretanto soube – não pelo autor – que o Carlos Fagundes tinha um blogue muito lido, onde publicava regularmente textos, sobretudo narrativas, centrados nas suas vivências florentinas. Nos últimos verões temo-nos encontrado em férias no Pico, ilha que ele quase adoptou como terra de berço, pois ali trabalhou vários anos e hoje tem lá casa. Na sua adega sobre a baía de S. Caetano, a saborear acepipes regados com uma

miríade de aguardentes de fruta feitas pela sua mulher, a Alda, tenho repetido inúmeras vezes o refrão: Reúne essas tuas narrativas que havemos de arranjar uma editora.

Após prolongada resistência, o Fagundes finalmente cedeu e, para meu júbilo, o volume aqui está pronto para ser lido pelos apreciadores de boas histórias (intencionalmente escrevo “histórias” e não “estórias” porque há uma marca de veracidade nestas páginas que a designação “estória” escamotearia). São páginas por vezes duras, tal a nudez da sua autenticidade e realismo. Plenas de vigor e garra, não deixam o leitor indiferente. Elas sugam-nos para dentro daquela bela ilha e como que nos fazem enfrentar as águas escuras das fundas lagoas e o espesso arvoredo circundante deixandonos frente a cenários impenetráveis, mas de que felizmente o narrador, levandonos pela mão, consegue mostrar-nos os labirintos e mirar os desfiladeiros da vida local.

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foto de onésimo almeida página seguinte: uma eremida das flores, foto de carlos fagundes

A prosa do Carlos Fagundes é hoje mais enxuta e directa do que em tempos foi, evitando o excesso de vocabulário que se, por um lado, a enriquecia, por outro, se entrepunha distraindo-nos da acção. O leitor embrenhar-se-á nela, apreciandolhe a desenvoltura e admirando a vida e a resiliência de uma gente que sobreviveu (nem sempre!) lutando contra tantas vicissitudes. Se nalguma ilha se sofreu de insularidade, fica óbvio que nas Flores ela fazia particularmente doer.

É tempo de me calar e ceder a voz ao narrador. Só cá vim prometer que o leitor não se arrependerá da viagem.

Prefácio do livro Entre o mar e a RochaHistórias de Carlos Fagundes

Publicado pela Companhia das ilhas

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“Alguns anos mais tarde, de passagem por Angra, cruzei-me por meríssimo acaso com o Carlos Fagundes na rua da Sé...”

Lembrança

Anthony Barcellos

The implantation was without intention. As a farmer, my grandfather had decades of experience deliberately fostering growth and fruition, but the seed he slipped deep into my brain involved not a particle of planning. Yet it is the reason that he remains with me nearly every day, half a century after our last conversation together. If, somehow, I could tell him about this, no doubt Avô would smile and give his head a small shake, racking up one more exhibit in the gallery of his grandson’s quirkiness.

I grew up next door to my grandparents, whose open-door policy made their home an extension of our own. We could drop in without ceremony, certain to receive a cheerful greeting from our grandmother and a tolerant nod from our grandfather. I often popped in late in the morning, after Avô’s trip to the post office. It was an opportunity to page through his English-language publications while he had lunch, Avó hovering over him to ensure her husband’s satisfaction with his meal. I recall the occasion when she tried something new and asked him how he liked it. “It was very good,” said Avô, “but don’t make it again.” His appetite for novelty was apparently entirely sated by the great adventure of uprooting the family from the Azores and bringing them to California nearly forty years earlier.

While I paged through Newsweek (I took Time at home) and the Tulare AdvanceRegister (we received the Porterville Recorder next door), feeding my voracious appetite for reading material, Avô would spoon quietly away at whatever Avó had placed before him. It was often a simple açorda, an authentic Azorean soup of eggs, bread, and greens. (I found it repulsive, and averted my eyes.) But whatever the meal entailed, Avô never left a completely empty plate. Whenever he pushed himself away from the dinner table, my grandfather habitually left a lembrança — a souvenir — on his plate.

Growing up in the Azores, Avô had received most of his education from the military academy on the island of Terceira. I have an ancient sepia photograph of my grandfather in his cadet uniform, posing with a brother and cousin, when he was (perhaps) barely a teenager. It was at the academy where they put a sock over his left hand to force him to learn to write with his right, thereby breaking him of the habit of favoring the hand sinister, well known to be the Devil’s preferred hand. It may also have been at the academy where he learned never to lick a plate clean. As best I could tell, since it was never explicitly explained to me, leaving a plate completely clean was a sign of gluttony, with the implication that one had been served a stingy helping. In other words, it was an implied insult to the server. Avó was fully accustomed to her husband’s quirk, which had been adopted by no one else in the family (which was replete with plate-cleaners).

Since I was too deferential (timid?) to inquire about the details, I was left to spin my own thoughts.

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página seguinte: Foto de anthony barcelos em 1961. foto dos seus avós deolinda e frank em 1967

Every time my grandfather left a dab of egg yolk or a kale leaf on his plate, he was preventing it from becoming a part of him. Instead those items would embark on an entirely different journey, perhaps washed down the drain or scraped into a bin. This is the thought that has never left me, a meme for the ages.

Therefore, whenever a slice of olive from the pizza ends up in the trash, I think of my grandfather. When I cannot finish an entire serving of broccoli, I think of my grandfather. When a pinto bean is left behind, I think of my grandfather. It happens nearly every day. Everything in the world is connected, however tenuously, to everything else, and this notion resonates with my grandfather’s lembranças. When I brush a leaf from the hood of my car and realize it came from a tree in my mother’s front yard, over two hundred miles away, I think how it will contribute to the organics in my own front yard instead of its home of origin — and I oddly recall my avô.

I have a souvenir of my grandfather. It is oddly lodged in my brain, and I expect Avô will remain with me the rest of my life.

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This piece was originally published in American River Review Magazine (2023).
“I have a souvenir of my grandfather. It is oddly lodged in my brain, and I expect Avô will remain with me the rest of my life”

Conversa Com Henrique Levy

Sobre A Literatura Nos Açores: A Propósito Do Prémio Natália Correia, 2022

Vamberto Freitas

Recebeste o Prémio Natália Correia 2022 numa sessão da Câmara Municipal de Ponta Delgada pelo teu romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia no passado dia 16 de Dezembro. Li o teu discurso de agradecimento a todos os que te são significantes num percurso de uma já densa obra, inclusive a influência que a proeminente poeta e escritora açoriana exerceu sobre a tua formação literária. Pode falar mais um pouco do que sentiu no momento em que o prémio foi oficializado?

Foi a poesia de Natália Correia que, ao longo da vida, me lançou num determinado universo literário, gravando no meu espírito um constante incêndio a contribuir para a formação da minha personalidade e expressão poética. Por esta razão, sinto-me honrado pela distinção atribuída ao romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia. O prémio com que a Câmara Municipal de Ponta Delgada me honrou será mais um estí-

mulo para continuar a estudar e a divulgar personalidades e autores açorianos.

Momento antes da Cerimónia formal da entrega do Prémio Natália Correia, informaram-me da impossibilidade do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada, CMPD, estar presente e que a Câmara havia dispensado a comparênciados seus convidados oficiais, da comunicação social e até mesmo do fotografo da Câmara. Esta atitude não me surpreendeu. Anteriormente, havia recebido um correio electrónico da CMPD, no sentido de encontrar uma data e hora para se proceder à Cerimónia de entrega do Prémio, com o seguinte teor: Devido ao facto de haver uma agenda muito preenchida, e termos conseguido esse furo, solicito que nesse dia faça uma pequena excepção, visto a cerimónia em si também ser rápida. Perante a minha indisponibilidade, por razões profissionais, em aceitar a data e a hora sugeridas pela CMPD, para a entrega do Prémio, foi esta a resposta que obtive: Mediante a vossa indisponibilidade em estar presente durante o horário de funcionamento do município na hora indicada, informa-se que não haverá lugar à cerimónia simbólica e pública de entrega do prémio da II edição do Prémio Natália Correia.

Estranhei o facto de a CMPD assumir que a Cerimónia de entrega do Prémio Natália Correia se realizaria num furo e propor que esta fosse rápida. Num posterior correio electrónico, após agendamento da Cerimónia para o dia 16 de dezembro, às 14h , a CMPD pedia-me que enviasse o nome e as respetivas moradas electrónicas dos meus convidados . Acontece que a

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CMPD, sem qualquer explicação, censurou dois nomes da minha lista de convidados. Não tendo a CMPD enviado convites, à Dra. Maria José Lemos Duarte, ex-presidente da CMPD e ao Professor Onésimo Teotónio de Almeida, reconhecida personalidade da cultura açoriana, tendo presidido à Comissão de Honra da Candidatura Azores 2027.

No dia 16 de dezembro, a poucos minutos do início da Cerimónia, fui informado que o Sr. Presidente da CMPD não estaria presente e que o protocolo da CMPD teria desistido dos convidados oficiais e de contactar a comunicação social. Não me intimidei. Percebi que estava nas minhas mãos levar dignidade àquele momento evocativo da açoriana Natália Correia, a maior poetiza da Língua Portuguesa, de todos os tempos.

A inexplicável atitude da CMPD, levoume a pensar na eventualidade da obra premiada Vinte e Sete Cartas de Artemísia haver cumprido a sua missão, por denunciar um certo sistema político e a misoginia que ainda hoje nos é imposta por valores arcaicos da sociedade patriarcal a que me tenho oposto, durante toda a vida, e denunciado em obras literárias e na minha intervenção pública como cidadão. Estou convencido de que só quando houver igualdade de género e total respeito pelo feminino poderemos, todos juntos, ajudar a construir uma sociedade mais harmoniosa, justa e pacífica.

Afinal, a relevância que júri atribuiu a este romance pretende ser uma homenagem a todas as mulheres insulares que, não conformadas com a noite imposta por uma sociedade, patriarcal e misógina, decidiram acender luzes sem atentarem em sombras ou nas linhas das mãos, enfrentando a difícil fisionomia dos

regimes que as vexaram e ostracizaram. Todas essas mulheres tiveram a inteligência e a coragem de impor ternura a um mundo inóspito e cruel, onde ainda hoje é difícil viver no feminino.

Dizes que encontraste nos Açores juntamente com Luís Levy a geografia da vossa felicidade. Andaste muito pelo mundo. Como é que estas ilhas conquistaram dois homens tão, digamos, universalizados?

Vivemos no lugar mais resguardado da ilha de São Miguel. O meu quotidiano é presenciado por um vulcão e pelo luxuriante jardim que um grande amor soube plantar e cuidar. São três as entradas de mar que nos aproximam da coragem das gentes marítimas desta ilha com quem aprendemos a não perder tempo com prólogos, quando a identificação e o respeito por este povo se estruturam no sentimento profundo do poeta e do homem que, seduzido por uma cultura ímpar, pela devoção dos açorianos ao Divino Espírito Santo e por estas ilhas terem sido berço dos maiores escritores de Língua Portuguesa, teve a coragem de concretizar desejos pretéritos, deixando a vida mundana de uma capital europeia, para se fixar, após um périplo por quatro continentes, neste inspirador e acolhedor arquipélago do Atlântico.

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Foto de Henrique Levi e Paulo Mendes, Ponta Delgada

Sigo a tua obra poética, ficcional e ensaística desde estes teus mais recentes anos açorianos. Não vou canibalizar aqui nenhum texto meu. Só te pergunto como é que por entre essa escrita contínua entre nós dedicas muitas páginas de ficção na criação de personagens femininas, assim como na recuperação de nomes supremos de outras mulheres açorianas, que para nós permaneciam no limbo do esquecimento?

Por ser um agente forte de identificação pessoal e social, a divulgação da Cultura contribui para uma sociedade mais justa e igualitária. Acredito que é através da ação de difusão cultural que se permite a integração de segmentos sociais e das diferentes gerações. A identidade cultural de um povo constrói a consciência e a memória desse mesmo povo. Um dos principais objetivos dos governos devia centrar-se na democratização da cultura, aumentando o acesso aos bens culturais e possibilitando aos cidadãos a possibilidade de desenvolver o seu próprio modo de ser e participar na comunidade onde estão inseridos. Em sentido lato, podemos definir Cultura como o estudo das obras das sociedades humanas – uma epistemologia que se propõe analisar o comportamento humano, sendo, para mim, difícil afastála da definição de Antropologia.

Quando desembarquei na vida cultural açoriana, deparei-me com a pouca visibilidade de obras de autoria feminina. Durante dois anos, fiz uma aturada investigação, tentando perceber a razão que levou a serem ocultados importantes vultos femininos que contribuíram e contribuem para engrandecer a vida cultural do arquipélago. Nessa investigação deparei-me com um importante poema épico: A Sibylla - Versos Philosophicos composto por 1250 versos em que a autora,

a jorgense Marianna Belmira de Andrade, responsabiliza a instituição monárquica, a Igreja Católica e a sociedade patriarcal pelo atraso do país. Como não encontrei nenhuma editora interessada em publicar esse magnifico livro, cuja primeira edição data de 1884, propus à Publiçor a criação de uma editora dedicada exclusivamente à poesia. Assim, surgiu a editora N9na Poesia, de que sou coordenador.

A partir dai, os Açores, a sua História e a sua Cultura passaram a ocupar uma proeminente importância na minha vida literária. Com isto, não quero, de forma alguma, por em causa o notável e meritório trabalho desenvolvido por todos os agentes culturais da Região. É de salientar o esforço de autores, editores, livrarias, municípios e dos vários Governos da Região em proveito da difusão da cultura/ literatura dos Açores.

Como vês a nossa “histórica” ausência literária no resto do país, muito particularmente a ausência maioria dos escritores e escritoras que teimam em residir nestas ilhas?

O prémio com que a CMPD me honrou foi mais um estímulo para continuar a

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estudar e a divulgar autores açorianos vítimas do ostracismo imposto pela República temerosa que a grandeza e dignidade da Literatura Açoriana mitiguem e ofusquem o cânone literário imposto pelos interesses económicos dos grandes grupos editoriais e pela censura constante às vozes provenientes destas inspiradoras ilhas atlânticas. Não posso esquecer que muitos poetas, nascidos, ou adotados por estas ilhas, têm permanecido sós, ocultos e incompreendidos. Como que oxidados pela crítica literária de uma república continental que tem ignorado, desprezado e omitido o importante contributo dos Açores para a Literatura nacional e europeia.

Parecendo incapaz de captar, compreender e assimilar a delicada, original e singular voz da Literatura Açoriana, a maioria dos críticos, das academias e da comunicação especializada, do nosso país, tende a encontrar beleza estética em caminhos sem ilusão, ignorando autores e obras do nosso arquipélago. Muitas vezes, são os próprios açorianos que não valorizam as capacidades e a excelência dos seus autores, socorrendo-se de gente de fora que nada de positivo e inovador acrescentam à nossa produção literária e à sua crítica.

O tempo e a História vão encarregar-se de demonstrar que o lugar das rosas é nas bandeiras hasteadas junto ao mar e não na vigência de uma vida breve, onde, decepadas, deixam tombar as pétalas murchas no perigo da terra escura.

Não foi, e não será pelo valor financeiro, deste ou de outros prémios literários, que os autores se submetem ao escrutínio de um júri. Os valores imateriais associados à atribuição do galardão constituem-se, esses sim, como os os elementos que motivam os autores a candidatar-se e não a dimensão material do prémio.

Os prémios literários premeiam obras e os seus autores, mas são essencialmente uma iniciativa que visa a divulgação da entidade que os promove. Ponta Delgada, com o patrocínio da Câmara Municipal, tem vindo a dedicar algum investimento na difusão da literatura.

Devo lembrar que, antes mesmo da criação do Prémio Literário Natália Correia pela anterior Presidente da Câmara, a gestão de José Manuel Bolieiro e Maria José Duarte colocaram o município e, direi mesmo, a Região, no mapa cultural nacional.

Para além da limitada compensação financeira que um prémio literário confere a um escritor, que outro impacto tem ou poderá ter em obras futuras numa região que quase não dá, ou faz que não dá, pelos seus escritores?

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O atual elenco camarário, pelo contrário tem dado bastas provas de estar voltado de costas para a cultura em todas as suas dimensões, não só está a desperdiçar a sua herança, como desbarata oportunidades como a solenidade e mediatismo que a atribuição do Prémio Natália Correia lhes podia conferir. Outros exemplos poderiam ser aduzidos, mas, por não lhes conhecer todos os contornos, fico-me apenas por referir es-ta oportunidade perdida pelo Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada e da sua equipa.

Para finalizar, lembro que as personalidades que atualmente gerem os destinos de Ponta Delgada, cidade e concelho, têm apenas uma importância temporal muito reduzida, pelo contrário, a literatura, por ser o registo da memória de um povo, perpetua-se no tempo, mostrando ao mundo a dignidade do povo açoriano.

Henrique Levy, Vinte e Sete Cartas de Artemísia, Vencedor do Prémio Literário Natália Correia, Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, 2022.

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“O tempo e a História vão encarregar-se de demonstrar que o lugar das rosas é nas bandeiras hasteadas junto ao mar”
foto
de vamberto freitas

different, solidary, sensitive, who has in persistence, in availability, maps without retreat.

Preface to Calligraphy of the Birds

Remarkable for her subtlety, Ângela de Almeida advances in the Portuguese literary world by unveiling herself to better conceal herself through an unequaled aesthetic, ethic, and poetics.

Endowed with unique resources that her intelligence and experience highlight, she creates her own spaces for herself and her work, achieving an uncommon affirmation of writing and imagery.

Her latest book, Calligraphy of the Birds, contains some of the best poems recently appearing among us.

Going through it, we find singular illuminations, as in the Cycle of Hours, where a remarkable poem becomes a cantata of infinite perturbation.

“A woman hugging a window goes by/ and a man with the roof on his shoulders/ a circus without a clown goes by/ as does a wheel/ the last carriage of a / hallucinated train goes by (...)”

Ângela de Almeida is a person who knows how to find paths, to assert herself as

One knows that nobody comes out of nothing. We must remember that poetry is, together with the chronicle, the great pillar of Portuguese literature.

Ângela de Almeida is part of the plethora of its creators who resist, write, and publish.

With an exceptional command of the word, she retains images, ideas, and feelings that she communicates slowly, in suspended complicity.

Concise and contained, her work has made her a reference author within our culture.

Fernando Dacosta (translation by Diniz Borges)

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Quarantine Highway

Millicent Borges Accardi

In Quarantine Highway, Millicent Borges Accardi guides us through the contemplative instances we explore in the loneliest parts of the pandemic with moving imagery and reminders of how to cope and recreate ourselves. In these poems, we reflect on healing, grieve on a lost year, dream of wildfires, and “tooth it out” beyond our anxieties of being undone. We pray to the “temple of our tragedy” and dance alone with small moments of liberation. Like breaking bread and memorizing trees, Accardi’s poems step past comets that blast loneliness and cracks in the sidewalk from our childhood in order to help us rediscover all the connections we’ve missed.

Quarantine Highway by Millicent Borges Accardi is one of those poetry books that one returns to again and again. Our everyday lives, challenges, and hopes are summed into a poetic language that questions and liberates. Our ancestral ties and our daily occurrences are juxtaposed in a perfect symbiosis. Although we “stretched apart like a knitted cloth,” this collection brings us

together through shared experiences and collective expectations.

Diniz Borges

They Belong Perhaps to Other Worlds

from a line by José

Seeing a new range in which to live, we plead, we engage, we bow, we know, we realize, as if wishing were a political cliché.

There is so much to enquire and consume. We order from Good Eats and Door Dash, and wipe off the plastic bags and cardboard,

Seeming like we were advocates for begging how to differ or comment on an opinion. To reflect, my god,

to vanish. We pray and we dream, to dominate, born only to distinguish, our weird worldly support system gone, all, within six feet of social distance and water droplets.

In Quarantine Highway, by Millicent Borges Accardi

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oh eye of prodigy!

IV

I believe in the angels who walk the world,

I believe in the goddess with diamond eyes,

I believe in lunar loves with piano in the background,

I believe in legends, in fairies, in Atlanteans,

I believe in an ingenuity that lacks more fruitfulness Of harmonizing the dissonant parts,

I believe everything is eternal in a second, I believe in a future heaven that existed before,

I believe in the gods of a purer astral,

In the humble flower that leans against the wall, I believe in the flesh that bewitches the beyond,

I believe that love has wings of gold.

Amen

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I believe in the incredible, in amazing things, In the occupation of the world by roses,
Natália Correia, translated by Diniz Borges for an upcoming book. foto de natália correia
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