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UMA ILHA QUE É UM MUNDO
Onésimo Teotónio Almeida
A ilha das Flores está há muito, e por bem legítimo direito, colada às letras açorianas. Roberto de Mesquita, Alfred Lewis e Pedro da Silveira são um trio de respeitável peso, embora qualquer um deles de per si justificasse uma profunda vénia à terra que chamaram sua. Não foram, aliás, esses os únicos autores ali nados; são, porém, sem dúvida os seus inquestionáveis expoentes.
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Mesquita e Silveira foram poetas; Lewis foi prosador e da sua ilha apenas num livro nos deixou narrativa – Home Is An Island. Quer dizer que da mais ocidental ilha açoriana não dispomos de muita prosa, ao contrário do que acontece por exemplo com as ilhas maiores – S. Miguel, Terceira e Pico.
Entretanto, há anos para cá uma voz vem sistematicamente contando num blogue –Pico da Vigia - estórias dos anos cinquenta e sessenta, os da infância e adolescência do seu autor, Carlos Joaquim Fagundes. É com gosto que passo a apresentá-lo, revelando a minha cumplicidade no surgimento do presente livro.
ambos entrámos para o Seminário Menor de Ponta Delgada, acabadinhos de completar a 4ª classe, ao tempo o último ano de escolaridade obrigatória. Desde cedo me impressionou a riqueza de vocabulário do Fagundes (sempre o tratámos pelo sobrenome). Ouvi desde bem cedo dizer que nas Flores havia o hábito de ao serão as pessoas se juntarem a ouvir alguém ler livros, sobretudo romances, e esse facto explicaria a riqueza do linguajar florentino, bem como o particularmente elevado nível educacional médio da população da ilha. Um índice aferidor desse caso especial era, nesse tempo, um dado curioso: no Seminário de Angra havia cinco professores florentinos, quase tantos como os de S. Miguel, onde a população era trinta e tantas vezes maior.
Referir este pormenor poderá parecer uma indiscrição leviana, contudo não sou o primeiro a fazê-lo. Num livro autobiográfico, o Cónego Francisco Caetano Tomás revelou uma conversa extremamente explícita nesse sentido, que com ele teve o seu colega e patrício das Flores, o Dr. Américo Caetano Vieira, ambos membros do corpo docente do Seminário de Angra.
Mas voltemos ao Carlos Fagundes.
Conheço o autor desde 1958, quando ao lado: capa do livro “entre o mar e a rocha. estórias“ de carlos fagundes. ocular, pois sentira na pele muitas daquelas situações de sofrimento humano que também a mim impressionaram fortemente
Lembro-me de nos nossos anos de estudantes em Angra ele me ter mostrado sonetos seus a imitar admiravelmente os poetas clássicos que conhecíamos quase só das selectas literárias usadas nas aulas de Português. Além disso, variadas vezes lhe ouvi contar dramáticas histórias da sua experiência pessoal, de familiares bem próximos e da gente da sua Fajã Grande. Narrava-as com a emoção de testemunha.
Em baixo: panorama da ilha das flores fotografado pelo mesmo autor.
Décadas mais tarde reencontrámo-nos, e lembro-me de ter insistido com ele para que lançasse ao papel as experiências dos seus tempos de menino e de adolescente. Seria uma rica partilha, pois no resto do arquipélago conhece-se pouco da vida do passado na sua ilha natal. Dispomos, é certo, de poemas de Pedro da Silveira que constituem autênticas pinturas, com traços de pincel a oferecerem-nos eloquentes quadros dos ambiente da ilha. Mas faltam narrativas e daí a minha insistência.
Alguns anos mais tarde, de passagem por Angra, cruzei-me por meríssimo acaso com o Carlos Fagundes na rua da Sé. À pergunta Que fazes por aqui? respondeume que concorrera aos Jogos Florais das Festas da Cidade e tivera uma narrativa contemplada. Tinha ido receber o prémio.
Voltei à carga. Ocorreu-me logo que certamente o escritor Álamo Oliveira teria sido membro do júri e esse era um aval pesado. Se lhe premiara um escrito, eu tinha agora um argumento de peso bem maior para insistir em encorajá-lo a publicar um livro.
Entretanto soube – não pelo autor – que o Carlos Fagundes tinha um blogue muito lido, onde publicava regularmente textos, sobretudo narrativas, centrados nas suas vivências florentinas. Nos últimos verões temo-nos encontrado em férias no Pico, ilha que ele quase adoptou como terra de berço, pois ali trabalhou vários anos e hoje tem lá casa. Na sua adega sobre a baía de S. Caetano, a saborear acepipes regados com uma miríade de aguardentes de fruta feitas pela sua mulher, a Alda, tenho repetido inúmeras vezes o refrão: Reúne essas tuas narrativas que havemos de arranjar uma editora.

Após prolongada resistência, o Fagundes finalmente cedeu e, para meu júbilo, o volume aqui está pronto para ser lido pelos apreciadores de boas histórias (intencionalmente escrevo “histórias” e não “estórias” porque há uma marca de veracidade nestas páginas que a designação “estória” escamotearia). São páginas por vezes duras, tal a nudez da sua autenticidade e realismo. Plenas de vigor e garra, não deixam o leitor indiferente. Elas sugam-nos para dentro daquela bela ilha e como que nos fazem enfrentar as águas escuras das fundas lagoas e o espesso arvoredo circundante deixandonos frente a cenários impenetráveis, mas de que felizmente o narrador, levandonos pela mão, consegue mostrar-nos os labirintos e mirar os desfiladeiros da vida local.
A prosa do Carlos Fagundes é hoje mais enxuta e directa do que em tempos foi, evitando o excesso de vocabulário que se, por um lado, a enriquecia, por outro, se entrepunha distraindo-nos da acção. O leitor embrenhar-se-á nela, apreciandolhe a desenvoltura e admirando a vida e a resiliência de uma gente que sobreviveu (nem sempre!) lutando contra tantas vicissitudes. Se nalguma ilha se sofreu de insularidade, fica óbvio que nas Flores ela fazia particularmente doer.
É tempo de me calar e ceder a voz ao narrador. Só cá vim prometer que o leitor não se arrependerá da viagem.
Prefácio do livro Entre o mar e a RochaHistórias de Carlos Fagundes
Publicado pela Companhia das ilhas