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QUERIDOS AMIGOS NO SENHOR
O Caminho do Coração é o itinerário espiritual proposto pela Rede Mundial de Oração do Papa. É o fundamento da nossa missão, uma missão de compaixão pelo mundo. Inscreve-se no processo iniciado pelo Papa Francisco com a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, «A Alegria do Evangelho»
Constitui o resultado de um longo processo impulsionado pelo P Adolfo Nicolás, então Superior Geral da Companhia de Jesus No início elaborou-se um esquema, designado então de marco referencial, com uma equipa internacional liderada pelo P Claudio Barriga SJ Este itinerário foi apresentado ao Papa Francisco num documento intitulado Um caminho com Jesus em disponibilidade apostólica (agosto de 2014) Apresentava-se uma nova forma de compreender a missão do Apostolado da Oração, numa dinâmica de disponibilidade apostólica
O Santo Padre aprovou-o em dezembro de 2014
O Caminho do Coração é essencial para a recriação desta Obra Pontifícia como Rede Mundial de Oração do Papa Constitui um aprofundamento, para os nossos dias, da tradição espiritual do Apostolado da Oração, e articula, de uma forma original, elementos essenciais deste tesouro espiritual com a dinâmica do Coração de Jesus É a chave de interpretação da nossa missão Por isso apresentamos em 2017 um comentário a este itinerário espiritual, designado agora «Dinâmica interna do passo», para ajudar as equipas nacionais da Rede Mundial de Oração do Papa a entrar na dinâmica interior do Caminho do Coração e a aprofundá-lo
Com o desejo de desenvolver o processo de recriação, sentimos a necessidade de ampliar os conteúdos escritos. Assim, iniciamos em 2017 um trabalho de elaboração e organização dos materiais que constituem hoje os 11 livros de O Caminho do Coração. Este trabalho realizou-se com uma equipa internacional liderada por Bettina Raed, diretora regional da Rede Mundial de Oração do Papa na Argentina e Uruguai. Assim, a partir da pátria do Papa Francisco, e com o apoio de diversos companheiros, quer jesuítas quer leigos, foi articulado este trabalho. Agradeço de modo particular a Bettina por toda a sua disponibilidade e pelo seu trabalho de elaboração e coordenação.
Agradeço também a TeleVid, das Congregações Marianas da Colômbia, pelo seu apoio na conversão deste material num suporte acessível ao nível digital e visual. www.caminodelcorazon.church (em castelhano).
Espero que estes conteúdos ajudem a propor a missão de compaixão pelo mundo com criatividade (em retiros espirituais, sessões de formação, os encontros das Primeiras Sextas-feiras, etc.).
É o fundamento da nossa missão, o nosso modo específico de entrar na dinâmica do Coração de Jesus.
P. Frederic Fornos SJ
Diretor internacional da Rede Mundial de Oração do Papa
– inclui o Movimento Eucarístico Juvenil Cidade do Vaticano, 3 de dezembro de 2019, Dia de São Francisco Xavier e dos 175 anos do Apostolado da Oração
Esquema para orientar o passo
Palavra-chave: VIVER
Objetivo: Estar com Jesus
Atitudes-chave: Docilidade à vida do Espírito Ver – Escutar
O que se pretende alcançar – Fruto: Intimidade e familiaridade com o Coração de Jesus Dinâmica interna do passo: Entrar na vida do Espírito que nos abre para a vida em abundância
Marco referencial
No excesso do seu amor por nós, Deus deseja habitar nos nossos corações. É a surpreendente promessa que Cristo fez aos seus amigos, antes de morrer Deus quer estabelecer a sua morada em cada um de nós São Paulo dá testemunho disso quando diz que já não é ele que vive, mas Cristo que vive nele É o horizonte definitivo para o qual o Espírito deseja levar o cristão É a identificação total com Cristo É o que nós desejamos e pedimos em cada dia, com coração de pobre, sabendo que alcançá-lo jamais será fruto dos nossos esforços Cremos que esta identificação com Cristo nos é dada, de modo privilegiado, na Eucaristia Ele mesmo vem a nós no seu Corpo e no seu Sangue e nos molda interiormente segundo o seu Coração, a fim de passarmos a ser e a agir como Ele
Dinâmica interna do passo
Como discípulo de Jesus, aquilo que me compete é permanecer n’Ele, o mais perto possível do seu Coração
Oração e Palavra de Deus
Isto só é possível permanecendo na Palavra de Jesus: «Se alguém me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos morada» (Jo 14, 23) Diz também: «Permanecei em mim, permanecei no meu amor».
Para estar o mais perto possível do Coração de Jesus, é necessário meditar a sua palavra, vê-lo e escutá-lo nos Evangelhos, morar em profunda comunhão com Ele, como o sarmento e a cepa, e deixarmo-nos transformar por Ele.
Sim, convém morar na sua Palavra, para o conhecer com todo o coração, para entrar no seu amor e reconhecer a sua voz no meio de tantos ruídos que nos invadem. Quanto tempo dedico cada dia à oração, para estar com Ele e meditar a sua palavra?
Quem come a sua palavra, quem medita sobre as Escrituras, a Bíblia, penetra plenamente na altura, largura e profundidade do seu amor
Nascer para a vida no Espírito
Para morar em Cristo e para que Ele permaneça em mim – até ao ponto de eu poder dizer com São Paulo: «Já não sou que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20) –devo entrar na vida do Espírito
Lembram-se daquele homem que pergunta a Jesus como «alcançar a vida eterna» (Mc 10, 17-21)? Fitando com amor aquele homem que tem respeitado todos os mandamentos desde a sua juventude, Jesus responde-lhe: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me». Jesus convida este homem, que observa com fidelidade a lei de Deus, a Torá, a passar da obediência da lei para a vida no Espírito Ser fiel à lei de Deus é uma coisa boa, mas é necessário ir mais longe A lei, os mandamentos podem tornar-se rígidos. Eu posso pensar que basta observar a lei à letra para entrar na vida e corro o risco de querer dominar a minha vida, de julgar que o posso alcançar com as minhas próprias forças. Jesus convida a ir mais longe. Convida a segui-lo.
Para onde? Não o diz Devemos segui-lo «O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai» (Jo 3, 8) Seguir Jesus é entrar na vida do Espírito É deixar o porto para navegar nas águas profundas, trocar a segurança pelo desconhecido, a estabilidade pelo movimento; ora, a vida é movimento
«Segue-me!» «Para onde?» «O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20) É necessário pôr-se a caminho, sem saber para onde vamos Devemos ser dóceis ao Espírito Santo, sem pretender conduzir a nossa vida Posso fazê-lo com confiança, porque descobri na minha vida que Ele é fiel Ser discípulo de Jesus Cristo significa deixarmo-nos levar pelo Espírito, para discernir constantemente, em diversos contextos, como ser fiel ao Evangelho.
Com efeito, como diz Jesus a Nicodemos (Jo 3, 1-21), trata-se de «nascer de novo», «nascer do Alto». Nicodemos é um homem da Torá. Ele conhece a lei, mas apesar de ter muita sabedoria, vive na noite. Com efeito, aceder ao «reino de Deus», a um novo mundo, não é uma questão de observâncias ou de conhecimentos, mas de nascimento Para aceder plenamente à vida espiritual, não basta praticar esta ou aquela virtude ou obedecer à lei e aos mandamentos; é necessário familiarizarmo-nos com a nossa vida interior e, pouco a pouco, aprender a decifrá-la, para vivermos em docilidade ao Espírito Santo
Isto exige permanecer à escuta. Muitas vezes vivemos apenas exteriormente, dedicados a fazer coisas, numa agitação constante, sempre em conversa interior, mas sem escutarmos aquilo que se está a passar no nosso interior Sabemos que o Espírito Santo nos fala através da ressonância afetiva dos acontecimentos e dos encontros da nossa vida Tudo o que vivemos produz algo em nós: paz, alegria, tristeza, encerramento Como o homem rico que «se retirou desgostoso» ao ouvir o convite de Jesus É assim que o Espírito do Senhor tenta falar-nos e que nos convém discernir
Aquele que entra na vida do Espírito aprende a acolher esses movimentos interiores, cresce em familiaridade com a sua vida interior e, pouco a pouco, vai conseguindo decifrar, discernir e reconhecer a voz do Outro que lhe tenta falar
Diz-se que Santo Inácio «seguia o Espírito, não ia à frente, não sabia para onde ia… seguia-o com prudência ignorante, o seu coração oferecido a Deus com simplicidade».
O Espírito Santo conduz-nos para o mais perto possível do Coração de Jesus.
Perto do Coração de Jesus
O Espírito Santo ajuda-nos a discernir o que é realmente o amor: o amor aos inimigos e o perdão das ofensas Conduz-nos ao mais profundo do Coração de Jesus É o seu intérprete Esta desmesura do amor encontra a sua expressão mais elevada na Cruz de Jesus «Diante da Cruz, devemos deixar-nos transformar pela força do amor que se exprime nesta morte oferecida e no perdão concedido aos verdugos É nesta loucura de amor que devemos ir buscar forças para seguir com fidelidade a solicitude do Espírito nas nossas vidas» (Michel Rondet, S J , Laissez-vous guider par l’Esprit, Ed Bayard)
«Não é sem razão que o Coração de Jesus, trespassado para nossa salvação, é o símbolo do amor. Após a sua fulgurante conversão, São Paulo gritou: "O Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo por mim" (Gl 2, 20)» (Dany Disdeberg, Le Coeur de Jésus, source de vie). O «coração» é o símbolo do «amor» por excelência.
«Ninguém pode conhecer Jesus Cristo inteiramente se não entrar no seu Coração, quer dizer, na mais profunda intimidade da sua Pessoa divina e humana» (São João Paulo II, 20 de junho de 2004)
«Só é possível ser cristão olhando para a Cruz do nosso Redentor, para Aquele que trespassaram» (Bento XVI, 15 de maio de 2006)
«O coração do Bom Pastor não é apenas o coração que tem misericórdia de nós, mas a própria misericórdia Aí resplandece o amor do Pai; aí me sinto seguro de ser acolhido e compreendido como sou; aí, com todas as minhas limitações e os meus pecados, saboreio a certeza de ter sido escolhido e amado Ao olhar esse coração, renovo o primeiro amor: a recordação de quando o Senhor tocou a minha alma e me chamou a segui-lo, a alegria de ter lançado as redes da vida, confiando na sua Palavra (cf Lc 5, 5)» (Francisco, 3 de junho de 2016)
O discípulo a quem Jesus mais amava, o que melhor conhecia o Coração de Jesus, reclinado sobre ele (Jo 13, 23), também foi o primeiro a reconhecer Jesus Ressuscitado nas margens do lago da Galileia (Jo 21, 7) Quanto mais perto se está do Coração de Jesus, mais se percebe as suas alegrias e os seus sofrimentos pelos homens, mulheres e crianças deste mundo e se reconhece a sua presença, hoje como ontem, atuante no mundo.
«Onde está Deus? Onde está Deus, se no mundo existe o mal, se há gente que passa fome e sede, que não tem lar, que tem de fugir ou de procurar refúgio? Onde está Deus, quando as pessoas inocentes morrem devido à violência, ao terrorismo e às guerras? Onde está Deus, quando doenças terríveis quebram os laços da vida e o afeto? Ou quando as crianças são exploradas, humilhadas e também sofrem graves patologias? ( ) E a resposta de Jesus é esta: "Deus está neles", Jesus está neles, sofre com eles, profundamente identificado com cada um Ele está tão unido a eles que forma como que " um só corpo " » (Papa Francisco, 29 de julho de 2016)
Quanto mais próximos formos do Coração de Jesus, menos indiferentes seremos àquilo que nos rodeia, desejando comprometer-nos com Jesus neste mundo, ao serviço da sua missão
Entrada segundo a perspetiva bíblica
Entre amigos, certamente já teremos experimentado que os vínculos se cultivam com tempo: tempo de estar, tempo de partilhar, tempo reservado para estar com o amigo Esse tempo permite-nos, sobretudo, conhecermo-nos, ir aprendendo quem somos, do que gostamos, o que esperamos, o que é que nos apaixona, o que é que faz bater com força o nosso coração. Então, à medida que mais partilhamos, vamos entrando no conhecimento profundo da existência do outro e aprendendo a querer-lhe tal como é e não como o imaginamos. As amizades amadurecem com o tempo em termos de conhecimento e de aceitação do outro. O amor, na amizade, cresce estando com o amigo, partilhando a existência com ele. Nesta partilha, uma das experiências mais profundas que podemos fazer é darmo-nos conta de que no coração do amigo bate com força aquilo em que acreditamos, o que desejamos profundamente, aquilo que nos faz vibrar Ao reconhecer que os nossos sentimentos mais profundos batem vigorosamente no coração do amigo, a amizade torna-se mais profunda
De igual modo, só poderemos amadurecer na experiência de amizade com Jesus, na medida em que passarmos tempo com Ele, conhecendo-o, gastando o tempo necessário a olhar e contemplar o modo como Ele viveu, aquilo que fez, as suas decisões e as suas opções Conhecemos Jesus através do que nos contam as comunidades que escreveram sobre a sua vida nos Evangelhos
Ao longo dos Evangelhos, vamos entrando nessa vida de familiaridade e intimidade que Jesus e os seus discípulos construíram. «Aproximando-se de Jesus, os discípulos disseram-lhe: "Porque lhes falas em parábolas?" Respondendo, disse-lhes: "A vós é dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não lhes é dado"» (Mt 13, 10-11) «Jesus retirou-se com os seus discípulos para o mar» (Mc 3, 7) «Jesus subiu depois a um monte, chamou os que Ele queria e foram ter com Ele. Estabeleceu doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 13-14)
Jesus não somente escolheu os seus discípulos, mas formou-os, acompanhou-os, foi desdobrando com eles o estilo e o modo segundo os quais se deve levar por diante o projeto do reino de seu Pai «Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos» (Mc 6, 7) E nesta relação de amizade, aqueles que seguiam Jesus regressavam para junto d’Ele em busca do seu conselho e do seu acolhimento, para lhe abrir o seu coração, procurando uma mão amiga que os aquietasse e lhes desse repouso no caminho «Tendo os Apóstolos voltado a Jesus, contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado» (Mc 6, 30). «Depois disto, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua
frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir» (Lc 10, 1). «Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo: "Senhor, até os demónios se sujeitaram a nós, em teu nome!"» (Lc 10, 17) «Sucedeu que Jesus estava algures a orar. Quando acabou, disse-lhe um dos seus discípulos: "Senhor, ensina-nos a orar, como João também ensinou os seus discípulos"» (Lc 11, 1) E Jesus ensinou os seus discípulos a orar, como Ele orava a seu Pai Pai, santificado seja o teu nome
Em numerosos relatos dos Evangelhos vemos que Jesus, depois de um dia de intensa atividade, se afastava com os discípulos, seus amigos íntimos, e com eles vivia momentos de solidão e de amizade profunda, «estando e partilhando com eles» Eram momentos que certamente terão marcado para sempre as suas vidas Assim, depois de dar alguns pães e peixes a comer à multidão faminta, relata-nos São Marcos que Jesus «despediu-os e, entrando logo na barca com os discípulos, passou ao território de Dalmanuta» (Mc 8, 10). «Jesus tomou à parte os Doze e disse-lhes…» (Lc 18, 31).
Este estar e viver em intimidade com Jesus foi configurando a vida e o estilo dos seus discípulos Podemos imaginar as conversas amigas, as refeições prolongadas, os risos, os trabalhos e as caminhadas com o Mestre Tais experiências foram-nos impregnando do estilo de Jesus, até chegarem a sentir como o seu Mestre, a gostar do que Ele gostava, a agir e fazer escolhas como Ele Esta identificação com Cristo levou o Apóstolo Paulo a exclamar, na sua Carta aos Gálatas: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20) «E nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem» (2 Cor 3, 18)
Na sua despedida, Jesus pedirá aos seus amigos que não se afastem do seu amor, que permaneçam fiéis ao amor que partilharam «Permanecei em mim e Eu permanecerei em vós… Permanecei no meu amor» (Jo 15, 4 9)
Assim, como Jesus fez com os seus discípulos, também nos convida a nós a estar com Ele, a partilhar a sua vida, o seu estilo, a sua maneira de proceder. Jesus deseja estar connosco mais do que nós desejamos estar com Ele, deseja contar connosco, quer acompanhar-nos no caminho, que adotemos o seu estilo, que o ajudemos na construção do reino de seu Pai, que nos configuremos com Ele num novo nascimento que vem do Alto, como convidou Nicodemos a fazer Gasta tempo com os Evangelhos, detém-te a imaginar os relatos da vida de Jesus, deixa que o teu coração se impregne dessas imagens Caminha e conversa com Ele, conversa, interpela-o, entra nos diversos momentos da vida de Jesus É palavra viva e eficaz, sempre atual Por outras palavras, são momentos da história de Jesus na terra que hoje encerram
uma mensagem renovada para a tua vida e através das quais Cristo te fala ao coração Deixa-te enamorar e tudo mudará de figura
● «Naquele dia, conhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e Eu em vós» (Jo 14:20)
● «…Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14:23)
● «Permanecei em mim e Eu permanecerei em vós… Permanecei no meu amor» (Jo 15:4 9)
● «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2:20)
● «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?» (1 Cor 3:16-17)
● «Se em vós permanecer o que ouvistes desde o princípio, também permanecereis no Filho e no Pai» (1 Jo 2:24)
● «Que Cristo habite, pela fé, em vossos corações…»(Ef 3:17)
● «Nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem…» (2 Cor 3:18)
Entrada segundo a perspetiva da fé
Em Cristo, com Cristo, em missão
«É n'Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos» (At 17, 28)
O que está na origem da nossa existência? Que impulso de vida nos dá o ser e nos faz mover? Porventura sou uma construção minha ou sou receção permanente de uma força de vida que me habita? Ou serei as duas coisas?
Poderíamos dividir a nossa vida em duas partes, a parte ativa e a parte passiva De um modo geral, segundo a nossa perspetiva, a parte ativa ocupa o primeiro lugar, porque costuma parecer-nos mais agradável e percetível Na realidade, porém, a segunda é infinitamente mais extensa e profunda
É tão natural para nós o facto de crescermos, que habitualmente não nos ocorre distinguir a nossa ação das forças que a alimentam nem das circunstâncias que favorecem o seu êxito. E, no entanto, para sermos sinceros, o que possuímos que antes não tenhamos recebido? O Homem, diz a Escritura, não pode acrescentar uma única polegada à sua estatura. E ainda menos poderá somar uma única unidade ao ritmo fundamental que regula a maturação do seu espírito e do seu coração. Em suma, a vida fundamental, a vida nascente, escapa completamente ao nosso entendimento
Contudo, perante a angústia, na vertigem ou no temor que possamos sentir, decorrentes deste «não controlo» da vida que flui e se nos escapa, ressoam fortemente as palavras do Senhor: «Sou Eu, não temas» É Ele que está na origem desse impulso, Ele vivifica a minha existência com a sua omnipresença Na vida que brota dentro de nós, no universo que nos sustenta, encontramos algo ainda melhor do que os dons do Senhor, encontramos o próprio Senhor, aquele que nos faz participar do seu ser e que, ao mesmo tempo, nos molda com as suas mãos O que há de mais divino em Deus é o facto de não sermos absolutamente nada fora d’Ele Deus revelou-se em Jesus Cristo para que sejamos habitados em plenitude por Ele. O Filho revela-nos a nós mesmos, filhos à maneira do Filho. Habitados por Cristo, habitar em Cristo. Habitados por Cristo, a fim de nascermos para nós mesmos.
A partir da parte ativa das nossas vidas, vemos que Deus, fiel à sua promessa, realmente nos espera em todas as coisas, se porventura não tiver saído antes, pressuroso, ao nosso encontro São Paulo expressa claramente que qualquer coisa que façamos, se for feita em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, é santificável
A Igreja declara santificável a vida humana inteira, em todos os seus matizes, desde os matizes completamente espirituais até aos completamente humanos: «Quer comais, quer bebais », diz São Paulo Em virtude da Encarnação do Verbo, a nossa alma está completamente entregue a Cristo, centrada n’Ele
Deus, nosso Pai, é acessível, inesgotavelmente acessível na totalidade da nossa ação Naquilo que Ele tem de mais vivo e encarnado, não está longe de nós, fora da esfera do tangível, mas espera-nos a cada instante na ação, na obra do momento Poderíamos dizer, sem nos equivocarmos, que se encontra na ponta da minha lapiseira, da minha pá ou picareta, do meu pincel, da minha agulha, do meu coração e do meu pensamento Levando até ao seu último termo natural o traço, o golpe, o ponto que me ocupa, apreenderei o fim último para que tende a minha vontade profunda.
O habitar em Cristo e o sermos habitados por Cristo implica, além disso, um «estar com Ele»: uma relação íntima que conduz a um conhecimento interior da sua Pessoa. Ora, esta intimidade, esta relação pessoal e profunda não nos deve fazer cair no engano de julgarmos que é apenas intimidade passiva; pelo contrário, trata-se de uma revelação em vista da missão: «para ser manifestada aos homens», ou seja, para que não fique encerrada num intimismo, mas que seja o meio pelo qual os homens sejam enriquecidos com as graças do encontro com Cristo
Estar com Ele implica um conhecimento interior, um grau de identificação tal que cheguemos a ter os mesmos sentimentos que teve Cristo, que não reivindicou o direito de ser igual a Deus, mas se esvaziou a si mesmo, tomando a condição de servo; que nos convida a servi-lo nos outros, desejoso do encontro connosco nos outros
A graça de um conhecimento interior ou vital de Cristo, que por nós se fez homem, pela qual podemos chegar a ter os mesmos sentimentos que Ele, é um conhecimento dado pelo Espírito, que nos penetra profundamente; não se trata, portanto, de um conhecimento meramente intelectual nem de qualquer sentimentalismo; este conhecimento interior é amor, que se manifesta mais nas obras do que nas palavras
Jesus é percebido mais plena e indivisivelmente em cada momento da sua vida se eu o olhar na perspetiva da Cruz e da Ressurreição Tudo o que Ele faz e diz em qualquer episódio dá-nos a medida total do seu interior, da sua infinita coerência divino-humana, da sua pessoa plenamente entregue à missão recebida do Pai, daquilo que sente ou experimenta para lá das palavras É a esse mundo interior de
Cristo que somos convidados a chegar, a fim de o manifestar.
Deus não cria nada completo, deixa que cada coisa se vá realizando pouco a pouco Ao longo de todos os seus dias terrenos, a alma do homem vai caminhando para a plenitude; ao mesmo tempo, o homem vai colaborando noutra obra que transborda de modo infinito, ao mesmo tempo que domina intimamente as possibilidades de êxito individual: o culminar da criação
Mediante a nossa colaboração, que Ele próprio suscita em nós, Cristo consuma-se, alcança a sua plenitude a partir de toda a criatura É São Paulo que no-lo diz Talvez imaginemos que a criação se concluiu há muito tempo: é um erro, porque ela continua a aperfeiçoar-se E nós somos chamados a colaborar nessa obra, inclusivamente mediante o trabalho mais humilde das nossas mãos.
No nosso atuar somos instrumentos da criação do mundo e da manifestação da plenitude de Cristo Jesus. A nossa paixão por esta atuação diante de Deus é obra da nossa fidelidade. Na consciência deste vínculo íntimo com Cristo, que habita em mim, tudo o que fazemos, fazemo-lo com Ele, e encontramo-nos com Ele naquilo que fazemos
Entrada segundo a perspetiva espiritual
A vida no Espírito
O discípulo de Jesus Cristo é chamado a entrar na vida do Espírito, é chamado a discernir como deverá seguir Jesus no mundo de hoje Como discernir a voz do Senhor entre as muitas vozes que hoje nos atordoam e se confundem com a d’Ele?
Diz-nos São João numa das suas cartas: «Caríssimos, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, pois muitos falsos profetas apareceram no mundo. Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus; e todo o espírito que não faz esta confissão de fé acerca de Jesus não é de Deus» (1 Jo 4, 1-3)
Por isso, entrar na vida do Espírito é estar à escuta da Palavra e discernir o seu eco em nós, distinguindo-a de «outras vozes» O discernimento pede que se «contemple» a Palavra de Jesus feita carne, feita vida na terra D'Ele provém todo o discernimento da vontade do Pai em nós Olhando a Jesus e escutando a sua Palavra, posso reconhecer o verdadeiro rosto de Deus Ele chegou até ao extremo do amor, até ao fim – pagando o preço da sua própria vida –, até onde não se pode amar mais, para nos libertar das imagens perversas de Deus Em Jesus Cristo, «Deus sai do recinto sagrado onde foi encerrado (do templo) Ele liberta-nos do peso da religião e do sagrado com todos os terrores que lhes são atribuídos e toda a escravidão consequente» (J. Moingt), para «adorar o Pai em espírito e verdade». Ele é um Deus que se nos revela em Jesus, que ama a vida e deseja a felicidade da humanidade. Um Pai que quer que sejamos como o seu Filho, homens e mulheres profundamente livres, guiados pela «liberdade dos filhos de Deus».
Quem é este Deus que se nos revela em Jesus? A que Deus nos dirigimos? A um Deus que teria traçado, desde toda a eternidade, o caminho para o qual nos envia? Um Deus que teria decidido o meu lugar e o que me convém na vida e na Igreja? Não, não é assim o Deus que se revela em Jesus O Deus que chama, cuja voz somos chamados a escutar e a distinguir dentre outras vozes, é o Deus que devolve sempre ao homem o seu próprio desejo: «Do que estás à procura?», «quem quiser vir após mim», «se queres entrar na vida», «quem quiser ser meu discípulo», etc É procurar e encontrar A sua vontade é que procuremos no fundo de nós mesmos, nas profundezas do nosso desejo A vontade de Deus não é alheia à nossa vida, não se trata de nos procurarmos a nós mesmos ao longe, para lá dos mares onde não o possamos alcançar; Ele une-se a nós no fundo do nosso desejo, no nosso coração, para que o insiramos na realidade, o concretizemos. Não descubro a sua vontade como quem encontra alguma coisa numa «caça ao tesouro». A sua vontade é que
cada homem seja completamente feliz e completamente vivo. Deus não faz nada em vez de nós, não nos substitui Por isso, fará parte do projeto de Deus e do Evangelho qualquer decisão que me torne mais vivo, que me faça crescer em liberdade e me ponha em comunhão com os outros
Jesus pergunta, então: «o que queres que Eu faça por ti?», para que a pessoa possa exercer a sua liberdade, possa expressar o seu desejo «Pedi e ser-vos-á dado; procurai e encontrareis; batei e hão de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão de abrir» (Mt 7, 7-8) Exprimir o que desejamos permite-nos reconhecer o nosso próprio desejo e é Deus mesmo que se vem unir a ele Reconhecer este desejo é como encontrar o tesouro de que fala o Evangelho Não descobrimos este desejo escondido à força de introspeção, é um desejo trabalhado na realidade da existência, na ação e no serviço aos outros.
Decidir-se por Cristo
Aqueles que desejam seguir a Cristo para melhor o amar e servir são chamados a decidir-se por Ele. Pergunta-nos Jesus: «Quem dizes tu que Eu sou? Quem sou Eu para ti?» Assim, decidir-se em relação a Cristo é decidir-se a viver o Evangelho, com as suas consequências: «Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me» (Lc 9, 23) Por isso, converter-nos verdadeiramente em discípulos de Jesus e vivermos à luz do Evangelho conduz-nos à luta espiritual Inclusivamente, esta luta espiritual é um critério de fidelidade a Jesus, porque «o servo não é maior do que o seu senhor» (Jo 13, 16) Todos nós temos feito esta experiência Há em nós conivência com o mal, com a mentira, com tudo o que significa rejeição da vida, mas Cristo não nos deixa em paz Ele enviou o Espírito Santo, o Espírito de Verdade, que procede do Pai, que desmascara o adversário e nos dá a opção da vida Para ser discípulos de Cristo, devemos ser dóceis ao Espírito, discernindo constantemente os «enganos do inimigo» e como ser fiéis ao Evangelho nos diversos contextos.
Ser dócil ao Espírito
Para entrar nesta docilidade ao Espírito, a revisão ou releitura do dia é de grande ajuda e benefício. Esta releitura, como vimos nos casos anteriores, ensina-me a reconhecer entre os eventos do dia – os trabalhos, os encontros –, aquilo que me abre à vida, à alegria e à paz E assim, reconhecendo-o, é possível dar graças ao Senhor Segundo a Escritura, aquilo que me orienta para a vida, orienta-me para Deus Com efeito, Jesus diz: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10) Esta é a bússola do discernimento
Num segundo momento, poderei identificar como uma simples informação, sem julgamento da minha parte, os momentos em que me senti encerrado, dividido ou entrei em desolação Se pequei, pedirei perdão ao Senhor
Finalmente, num terceiro momento, oferecerei ao Senhor o próximo dia, pedindo-lhe ajuda para escolher a vida e afastar os obstáculos que me impedem de ser fiel ao Evangelho Entrar nos caminhos do Espírito do Senhor supõe considerar a vida espiritual prestando atenção aos ecos emocionais que os acontecimentos e encontros do dia deixam em nós Na vida espiritual, trata-se de «sentir», «reconhecer» e «tomar posição» «Sentir» quer dizer deixar-se afetar: sentir o gosto, paz, a doçura, etc Sentir, porém, não é suficiente: devemos ser capazes de «reconhecer» – ou seja, de distinguir, nomear e interpretar – o que é próprio do discernimento. Finalmente, conduz-me a «tomar uma posição» porque descubro em mim «pensamentos», «movimentos internos» que me abrem à vida, e outros, mortíferos, que a ela me fecham. Assim poderei discernir os enganos do inimigo e escolher a vida.
Amor traduzido em obras
Por último, dizemos que «entrar na vida do Espírito» nos conduz à disponibilidade para que o Senhor encontre lugar na nossa realidade, mediante a nossa decisão A decisão de Deus de encarnar na nossa humanidade, na nossa existência concreta de cada dia, espera a nossa própria decisão Nenhuma vida cresce sem o risco de uma decisão, grande ou pequena A passagem do desejo para a realidade constitui um risco Pode haver muito amor e generosidade, mas, se não encaixarem numa decisão, ficam vazios Todavia, se esse amor e essa generosidade se adaptam a uma decisão, por pequena que seja, esta poderá abalar o mundo inteiro É o movimento da Encarnação O sim de Maria trouxe-nos a salvação Gradualmente, as pequenas decisões vão moldando o estilo da nossa existência, o mesmo estilo de Jesus, o ritmo do Evangelho. Para Inácio de Loiola, «a decisão evangélica, quer dizer, a decisão que se abre à vida, que humaniza, segundo o Espírito de Cristo, é o lugar, inclusivamente, da união com Deus».
A nossa sensibilidade define
Dissemos até aqui que entrar na vida do Espírito significa pormo-nos à escuta da voz do Senhor, para a acolher em nós e tomar posição em favor daquilo que ela inspira no nosso coração Contudo, devemos ser lúcidos e não ingénuos Eu posso julgar que me abro ao Senhor e, no entanto, estar a inventar uma história que não é a voz do Senhor, mas o cumprimento das minhas expetativas Por conseguinte, para não me enganar a mim mesmo, é tão importante ir aprendendo a aceder à realidade como o faz o Senhor De facto, se eu puder deixar entrar em mim as coisas tal como Ele as vê,
as escuta, as saboreia, as cheira e as toca, poderei estabelecer ligação com as pessoas e com os acontecimentos de uma maneira mais parecida com a de Jesus e o meu seguimento será mais real Porque poderei julgar, pensar, elaborar o que entra pelos meus sentidos, tal como o faz Jesus E, finalmente, tomar e fazer escolhas como o faria o Senhor no meu lugar
Alcançar o modo de viver do Senhor, porém, não constitui o resultado de um esforço de vontade, mas uma graça que o próprio Senhor nos concede Um caminho em que nos iremos deixando transformar por Ele Por isso, da minha parte resta-me dispor-me a receber a graça na oração, contemplando a vida do Senhor e aprendendo com o seu estilo, que Ele me comunica
Para irmos entrando mais a fundo neste caminho de assimilação do estilo do Senhor – os seus modos, as suas ideias, os seus juízos, a sua sensibilidade –, poderá ajudar-nos um modo de rezar que Santo Inácio de Loiola nos apresenta no seu livro dos Exercícios Espirituais, a aplicação dos cinco sentidos. Esta maneira de orar pretende ajudar a educar a nossa sensibilidade para que se vá parecendo cada vez mais com a de Jesus
A sensibilidade é o que define o seguimento do Senhor, pois os nossos sentidos são a porta de entrada na realidade que vivemos Eu tenho a minha maneira de olhar, um modo de escutar, sinto gosto ou aversão por determinadas coisas, acolho ou rejeito situações e pessoas, segundo o significado que lhes tiver dado quando elas entram através dos meus sentidos Por conseguinte, que eu siga Jesus e que esse seguimento seja real – ou seja, que eu faça as minhas escolhas segundo as de Jesus, que olhe como Ele, que me comova com as mesmas coisas que Ele, etc –dependerá, em suma, de que a minha sensibilidade se pareça com a d'Ele
A sensibilidade não se transforma mediante ideias ou sentimentos, mas mediante realidades concretas, que entram pelos nossos sentidos. Por aquilo que toco, olho, cheiro, escuto, saboreio. Preciso de transformar a minha sensibilidade à maneira de Jesus. Para isso nos é proposta «a aplicação dos cinco sentidos», quer dizer, que eu disponha os meus sentidos para que, através da minha imaginação, entre em contacto com as realidades que Jesus viveu nos relatos do Evangelho E que nesse olhar, saborear, tocar, cheirar, escutar com e como Jesus, a minha sensibilidade se vá transformando Então poderei aproximar-me e tocar na mão da sogra de Pedro quando Jesus, «aproximando-se, tomou-a pela mão e levantou-a» (Mc 1, 31) Tentarei imaginar Jesus quando, «compadecido, estendeu a mão e tocou» o leproso que se ajoelhara à sua frente, suplicando-lhe que o curasse: recorrendo à imaginação, tentarei fazer o exercício de tocar o leproso (Mc 1,41) E em cada relato
que tome para orar, imagino e situo-me na cena, tocando, olhando, cheirando, escutando, saboreando ou sentindo, como faria o Senhor
Poderei interrogar-me sobre como posso tocar, olhar, cheirar, escutar, saborear com a imaginação Como se faz isso? Apenas pela experiência E o importante não é tanto fazer eu, mas deixar que o Senhor me conduza na cena É uma oração na qual procuro estar presente e perceber, com os sentidos da imaginação, o que está a suceder ali Não sabemos muito bem como sucede, pois não depende dos nossos esforços Contudo, enquanto nos dispomos a entrar e nos imaginamos presentes no próprio relato da vida de Jesus, devemos suplicar a graça de que o Senhor nos conceda sentir com os nossos sentidos, ao seu modo A transformação da nossa sensibilidade numa mais parecida com a d’Ele definirá tudo, mudará tudo, e o nosso seguimento será mais real, com um modo de proceder mais parecido com o d’Ele.
E para que possas fazer esta experiência e aprofundar neste modo de orar, deixamos-te uma oração do padre Pedro Arrupe, sj, para que, a seu tempo e detidamente, possas rezar, saborear e entrar neste processo de aplicação dos teus cinco sentidos à oração, a fim de que o Senhor transforme a tua sensibilidade
Para aprofundar. Recursos. Anexo um: «Oração de Arrupe: Senhor, ensina-me». Para aprofundar. Recursos. Anexo dois. «A nossa maneira de ser».
Entrada segundo as palavras do Papa
«Em todos os batizados, desde o primeiro ao último, atua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível "in credendo", ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé O Espírito guia-o na verdade e condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão
Em virtude do Batismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf Mt 28, 19) Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas recetor das suas ações A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados Esta convicção transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe deem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos "discípulos" e "missionários", mas sempre que somos "discípulos missionários". Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: "Encontrámos o Messias" (Jo 1, 41) A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária e muitos samaritanos acreditaram em Jesus "devido às palavras da mulher" (Jo 4, 39) Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, " começou imediatamente a proclamar ( ) que Jesus era o Filho de Deus" (At 9, 20) Por que esperamos nós?
Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos
chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força e dá sentido à nossa vida O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer O testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: "Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente" (Fl 3, 12-13)»
(Papa Francisco, Evangelii gaudium, 119-121)
Entrada segundo a perspetiva da oração
Permanecer no amor
Não existe nada de que uma pessoa enamorada sinta mais falta do que de estar com a pessoa amada Quem ama deseja estar com a pessoa amada, isto é, deseja estar na sua presença, partilhar a sua vida com ela, escutar a sua palavra, os seus sonhos e projetos.
Dizer a uma pessoa «amo-te» não é apenas uma expressão teórica, mas o anúncio de como quero viver com ela: permanecendo na sua presença. Amar é uma ação e uma decisão. É uma ação que nos arranca de nós mesmos para irmos ao encontro do outro e uma decisão, porque é a expressão máxima de liberdade decidir a quem oferecer tudo aquilo que sou Amar é uma ação que inclui o cultivo de gestos, palavras e atitudes Ninguém pode dizer a outra pessoa que a ama verdadeiramente se descuida essas expressões que manifestam o amor que lhe tem É verdade que podemos encerrar a palavra «amor» em formalidades e esvaziar de conteúdo o meu «gosto de ti», como diz uma canção, e, por isso, devemos ter consciência de que o amor requer uma decisão quotidiana
A grande tentação que enfrentamos na Igreja é a de «assegurarmos» a salvação através das fórmulas e práticas religiosas que realizamos, mas sem muito sentido As práticas religiosas estão intimamente ligadas aos gestos de amor a Deus Se esvaziamos de amor as nossas práticas espirituais, teremos corrompido parte da nossa fé. Permanecer no seu amor não significa ficar preso atrás do formalismo religioso, mas alimentarmo-nos do Evangelho.
Como é possível permanecer no amor junto a Jesus? Uma coisa que nunca devemos esquecer é que foi Jesus quem saiu ao nosso encontro. Foi Ele que nos encontrou e nos convidou a segui-lo Assim o expressa, quando diz: «Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi» (Jo 15, 16) O seu amor escolheu-nos Não foram os nossos méritos que nos aproximaram de Jesus, mas o amor gratuito do Pai «Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) É por isso que as nossas práticas religiosas não se devem converter numa busca egocêntrica do reconhecimento de Deus, mas em expressão do nosso desejo de permanecer no seu amor e na sua presença A oração com a Palavra de Deus é uma maneira de permanecer no seu amor
Reservar um tempo para estar em oração é uma decisão concreta de cumprir o desejo de estar com Jesus e de permanecer no seu amor Poucas vezes «oferecemos» a nós mesmos tempo para calibrar o nosso coração, limpar a alma e purificar o espírito, através da meditação com a Palavra de Deus. Talvez a falta de tempo para estar connosco mesmos e entrar a fundo na própria vida, meditando
sobre o princípio e o fundamento da própria existência, seja uma das maiores pobrezas que afeta a humanidade Como posso pretender que outra pessoa goste de estar comigo se eu próprio não posso estar um tempo a sós com quem amo? Quando não podemos reservar tempo para mergulhar na oração e entrar no nosso mundo interior e, como recomenda Jesus, entrar no quarto e fechar a porta, não poderemos escutar a voz do Pai Assim não aprenderemos a conhecer e a distinguir os pensamentos e sentimentos que se abrigam no nosso interior, o que é tão importante para nos tornarmos destros no discernimento espiritual A assertividade das nossas decisões depende muito do conhecimento da diversidade de moções espirituais suscitadas no nosso interior
Outro aspeto do desejo de permanecer no amor de Jesus é crescer no discernimento espiritual. Uma forma de gerir a nossa vida para a vivermos plenamente é aprender a discernir, dentre as vozes que ressoam no nosso interior, quais são as do bom espírito e quais as do mau espírito, discernir para onde me conduzem e discernir quais são as vozes que irrompem da nossa própria liberdade. Em certas ocasiões encontramos pessoas que estão incomunicáveis consigo mesmas. São incapazes de compreender o que se passa no seu interior A reflexão pessoal, a meditação ou a oração são uma maneira de comunicar connosco mesmos em Deus, de mergulhar na nossa própria existência e na nossa relação filial com o Senhor Ajuda-nos a valorizar os êxitos e a celebrá-los, a desfrutar do trabalho cumprido e também nos dá uma grande capacidade para reconhecer os nossos erros e emendá-los Quando não conseguimos reconhecer a voz de Deus, que a meditação ou a oração nos proporciona, convertemo-nos em desconhecidos para nós mesmos O nosso coração converte-se em casa ocupada, habitada e usurpada por inquilinos intrusos e indesejáveis Quando estabeleces comunicação com Jesus no interior do teu coração, entras em contacto com a fonte de Sabedoria que habita todo o ser humano A reflexão, meditação ou oração ajudam-nos a encontrar pontos de vista ou perspetivas novas que nos enriquecem enquanto pessoas. Sem comunicação interior, caminhamos às cegas na vida.
A oração e o discernimento espiritual situam-nos muito perto do Coração de Jesus, ajudam-nos a reclinar a nossa cabeça, como o discípulo amado, sobre o peito do Mestre Disse o psiquiatra austríaco Viktor Frankl que «Há muita sabedoria nesta afirmação de Nietzsche: "Aquele que tem uma razão para viver consegue suportar praticamente tudo"» A proximidade do Coração de Jesus enche a nossa vida de sentido Para muitas pessoas, a sua vida acaba quando alcançam as suas metas ou quando satisfazem os seus propósitos imediatos Quando não tens um motivo que transcende o tempo e o espaço, ou a disponibilidade de coração para «sentir e saborear» a vida com outros, a tua vida torna-se insípida e pesada Quando as nossas
razões para viver estão encadeadas no propósito de Deus e sintonizadas com o Coração de Jesus, acontece uma coisa diferente A fé dá uma perspetiva mais ampla da vida do que as metas imediatas, permitindo-nos visualizar a realidade de forma criativa Para criar é preciso crer No Coração de Jesus escutamos os desejos, os sonhos, as súplicas, o grito de socorro e de liberdade que uma humanidade necessitada de amor e compaixão eleva ao céu A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, tão presente na nossa fé, não é um convite à oração sedentária ou intimista, mas um impulso para a missão Ao escutar o Coração de Jesus, não podemos ficar indiferentes àquilo que há no seu coração Permanecer no amor significa escutar a sua Palavra, discernir a sua voz e pormo-nos em movimento para colaborar com Ele na sua missão de compaixão pelo mundo
Para aprofundar. Recursos. Anexo três: «Adoração»
Propostas de Exercícios
Exercício
Convidamos-te a que realizes o seguinte exercício Gasta o tempo necessário para voltares aos momentos «Habitados por Cristo» deste Passo seis, para descobrires aquelas palavras, frases ou cenas que fazem eco no teu coração Procura aquilo que ficou a ressoar
«Faz de conta que estás diante do próprio Cristo, que te chamou Interroga-te, então, diante do Coração de Jesus: para onde se orienta o meu coração? Onde se fixa o meu coração, para onde aponta? Qual é o tesouro que procura? Porque – diz Jesus –«onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração» (Mt 6, 21)» (Francisco, 3 de junho de 2016)
Prática do exame temático: perto do Coração de Jesus
Propomos-te uma experiência «de coração a Coração», para aprenderes a permanecer perto do Coração de Jesus É uma prática para entrares no silêncio do coração e ficares à escuta da voz do Senhor Não se consegue de um momento para o outro, mas com a sua graça e a tua disposição pessoal, poderás dar alguns passos
Aprender a permanecer com Ele é habituarmo-nos a estar presentes junto d’Ele, por amor Damos-te algumas pistas para cultivares «o silêncio do coração» que ajuda ao encontro Pratica e relê, sempre de novo, para veres como te correram as coisas ao aplicares estes conselhos
Permanecer na Palavra de Deus
Discípulo é aquele que caminha no encalço, aquele que segue o Mestre, mas também aquele que permanece fiel à Palavra do Mestre O discípulo saboreia essa Palavra, mastiga-a dia e noite, até se deixar transformar por ela e se tornar como Jesus Gasta o tempo necessário para saboreares esta Palavra, senti-la, sem a tentares compreender a todo o custo, deixando-a, pura e simplesmente, ressoar dentro de ti Talvez não aconteça nada, nada que ilumine o teu coração ou que tu possas sentir, mas mantém-te ao lado d'Ele, por amor
A chave da vida espiritual consiste em «predispormo-nos»
Se tenho pressa quando medito um texto do Evangelho, falo com o Senhor ou oro, corro o risco de desembocar num monólogo interior, a sós comigo mesmo: eu/o texto/eu. A primeira coisa é «predispormo-nos», preparar o corpo e o coração para um encontro. Se não gasto tempo para me fazer presente diante de mim próprio, corro o risco de não estar presente para o Outro. Primeiro, devo prestar atenção à posição do meu corpo, à minha posição corporal, à minha presença corporal, respirando lenta e profundamente, e assim, pouco a pouco, ir despertando para a outra Presença
Passar da cabeça para o coração
Com efeito, o problema é que estamos tão cheios de nós mesmos, da nossa tagarelice interior, dos nossos pensamentos, desejando com tal fervor fazer tudo bem, que chegamos ao ponto de querer dominar a oração em si, levantando-lhe mais obstáculos ainda Quanto ao resto, felizmente, nada detém o Espírito Santo nem o amor! No entanto, poderá ser útil «predispormo-nos»
Trata-se de descer da cabeça ao coração, para que os pensamentos se dissipem, dando lugar ao silêncio. O «coração» é o centro do ser humano. Não consiste apenas em emoções e afetos, é o centro da vida, de onde provém e para onde converge toda a vida espiritual. Em suma, o «coração» é o homem profundo.
Para «passar da cabeça ao coração», devemos prestar atenção à nossa posição corporal Com efeito, preciso de encontrar uma posição corporal que me ajude e me permita encontrar aquilo que procuro e desejo O objetivo não é encontrar uma posição confortável ou uma posição que me permita esquecer o corpo para poder meditar, mas encontrar uma posição corporal que me permita fazer-me presente diante d’Aquele que é a fonte da vida, o Senhor
Entrar no silêncio
Permanecer em silêncio permite-me escutar aquilo que habitualmente não ouço: tudo o que me passou despercebido até então, tudo o que me rodeia, todas aquelas pequenas coisas que parecem insignificantes, mas através das quais o Outro me vem falar Porque, na tradição espiritual cristã, silêncio e escuta caminham de mãos dadas Com efeito, trata-se de permitir que o silêncio se aprofunde em nós até que, do nosso interior, brote a Palavra de Outro O silêncio é sempre promessa de um encontro
Os Padres do deserto não insistem unicamente no silêncio exterior, no silêncio de palavras, mas também no silêncio interior, no silêncio do coração O silêncio torna-nos presentes no presente. E, pouco a pouco, desperta-nos num silêncio mais profundo, um silêncio que nos é concedido por Ele, que está ali e que deseja encontrar-se connosco. Todavia, muitas vezes basta guardarmos silêncio para que inúmeros pensamentos se agitem dentro de nós.
Então, que devemos fazer? Para nos ajudar a entrar no silêncio interior, os mestres espirituais insistem na perceção Com efeito, precisamos de escutar, ver, tocar, sentir e saborear «Aquele que é» para entrarmos na sua presença Sabemos que orar não é pensar em Deus, é fazer-nos presentes diante d'Aquele que nos procura e deseja comunicar connosco
No deserto desaparece o acessório, revelando-se o essencial A perceção, e não o pensamento discursivo, é o caminho ao encontro d’Aquele que constitui a fonte da vida
Convido-te a fazer de novo este exercício Dá um passeio, prestando atenção à tua respiração, ao teu corpo, aos teus sentidos, mantendo-te aí, pura e simplesmente, na perceção. Se te apercebes de alguns pensamentos, não há problema, regressa à perceção. Escuta o silêncio! Mesmo no meio do ruído, podes escutá-lo. Descobrir o silêncio do coração significa descobrir a chave do encontro.
Recursos
Anexo 1
Oração de Arrupe1: Senhor, ensina-me
Senhor: meditando sobre o nosso modo de proceder, descobri que o ideal do nosso modo de proceder é o teu modo de proceder Por isso, fixo os meus olhos em ti (Hb 12, 2), os olhos da fé, para contemplar a tua figura iluminada, tal como aparece no Evangelho Eu sou um daqueles de quem diz São Pedro: «Sem o terdes visto, vós o amais; sem o ver ainda, credes nele e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante» (1 Pe 1, 8). Senhor, Tu mesmo nos disseste: «Dei-vos o exemplo para que, como Eu vos fiz, assim façais vós também» (Jo 13, 15). Quero imitar-te até ao ponto de poder dizer aos outros: «Sede meus imitadores, como também eu o sou de Cristo» (1 Cor 11, 1). Visto que não o posso dizer fisicamente, como São João, pelo menos gostaria de poder proclamar, com ardor e sabedoria, que me concedas «o que ouvi, o que vi com os meus olhos, o que toquei com as minhas mãos acerca da Palavra de Vida; pois a Vida manifestou-se e eu vi e dou testemunho dela» (cf 1 Jo 1, 3; cf Jo 20, 25 27; 1, 14; Lc 24, 39; Jo 15, 27)
Dá-me, sobretudo, o sensus Christi (1 Cor 2, 16) que Paulo possuía: que eu possa sentir com os teus sentimentos, os sentimentos do teu Coração com que amavas o Pai (Jo l4, 31) e os homens (Jo 13, 1) Jamais alguém teve maior caridade do que Tu, que deste a vida pelos teus amigos (Jo 15, 13), culminando com a tua morte na cruz o total abaixamento (Fl 2, 7), kenosis, da tua Encarnação Quero imitar-te nessa disposição interior e suprema e também na tua vida de cada dia, agindo, na medida do possível, como Tu procedeste.
Ensina-me o teu modo de lidar com os discípulos, com os pecadores, com as crianças (Lc 7, 16), com os fariseus, ou com Pilatos e Herodes; e também com João Batista, ainda antes de nascer (Lc 1, 41-45) e mais tarde, no Jordão (Mt 3, 17). O modo como lidaste com os teus discípulos, sobretudo com os mais íntimos: com Pedro (Mt 10, 2), com João (Mc 3, 16; Jo 19, 26-27) e também com Judas, o traidor (Jo 13, 26; Lc 22, 48) Comunica-me a delicadeza com que os trataste no lago de Tiberíades, preparando-lhes de comer (Jo 21, 9), ou quando lhes lavaste os pés (Jo 13, 1-20)
1 Pedro Arrupe SJ, «El modo nuestro de proceder» (18 de janeiro de 1979), em La identidad del jesuita en nuestros tiempos (Santander: Sal Terrae, 1981), 80-82.
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Que eu aprenda de ti, como o fez Santo Inácio, o teu modo de comer e beber (Mc 2, 16; 3, 20; Jo 4, 8 31-33); como tomavas parte nos banquetes (Jo 2, 1;12, 2); como te comportavas quando tinhas fome e sede (Mt 4, 2); quando sentias cansaço após as caminhadas apostólicas (Jo 4, 6), quando precisavas de repousar e dar tempo ao sono (Mc 4, 38)
Ensina-me a ser compassivo com os que sofrem; com os pobres, com os leprosos, com os cegos, com os paralíticos (Mt 9, 36; 14, 14; 15, 32; 20, 34; Lc 7, 13); mostra-me como manifestavas as tuas emoções profundíssimas até ao derramamento de lágrimas (Lc 19, 41; Jo 11, 33 35 38); ou como quando sentiste aquela angústia mortal que Te fez suar sangue, tornando necessário que um anjo te consolasse (Mt 26, 37-39) E, sobretudo, quero aprender o modo como manifestaste aquela dor máxima na cruz, sentindo-te abandonado pelo Pai (Mt 27, 46).
Essa é a tua imagem que contemplo no Evangelho: um ser nobre, sublime, amável, exemplar, em harmonia perfeita entre a vida e a doutrina, que fizeste exclamar aos teus inimigos: «és sincero, ensinas o caminho de Deus com franqueza, não te importa o que pensam os outros, não fazes aceção de pessoas» (Mt 22, 16); aquela maneira varonil, dura para contigo mesmo, com privações e trabalhos (Mt 8, 20), mas, para com os outros, cheio de bondade, amor e desejo de os servir (Mt 20, 28; Fl 2, 7)
Eras duro, é certo, com os que tinham más intenções, mas também é verdade que, com a tua amabilidade, atraías as multidões até ao ponto de estas se esquecerem de comer; que os doentes estavam cientes da tua piedade para com eles; que o teu conhecimento da vida humana te permitia falar em parábolas acessíveis aos humildes e aos simples; que ias semeando amizade com todos (Jo 15, 15), especialmente com os teus amigos prediletos, como João (Jo 13, 23; 19, 26), ou aquela família de Lázaro, Marta e Maria (Jo 11, 36); que sabias encher qualquer festa familiar de uma alegria serena, como em Caná (Jo 2, 1).
O teu contacto constante com o Pai mediante a oração, antes da aurora ou enquanto os outros dormiam (Mt 26, 36-41), era consolação e alento para anunciares o Reino.
Ensina-me o teu modo de olhar, como olhaste Pedro para o chamares (Mt 16, 18) ou para o levantares (Lc 22, 61); ou como olhaste o Jovem Rico que não se decidiu a seguir-te (Mc 10, 21); ou como olhaste, com bondade, as multidões aglomeradas à tua volta (Mc 10, 23; 3, 34; 5, 31-32); ou com ira, quando os teus olhos se fixavam nos que não eram sinceros (Mc 3, 5)
Gostaria de te conhecer como és: a tua imagem sobre mim bastaria para me mudar. O Batista ficou subjugado no seu primeiro encontro contigo (Mt 3, 14); o Centurião de Cafarnaum sente-se deslumbrado pela tua bondade (Mt 8, 8) e um sentimento de assombro e fascínio invade os que testemunham a grandeza dos teus prodígios (Mt 8, 27; 9, 33) O mesmo assombro se apodera dos teus discípulos (Mc 5, 15; 7, 37; Lc 4, 36; 5, 26; Mc 1, 27; Mt 13, 54); e os esbirros do Horto caem atemorizados (Jo 18, 6), Pilatos sente-se inseguro (Jo 19, 8) e a sua mulher assusta-se (Mt 27, 19) O Centurião que te vê morrer descobre, na tua própria morte, a tua divindade
Desejaria ver-te como Pedro quando, impressionado e assombrado com a pesca milagrosa, toma consciência, diante de ti, da sua condição de pecador (Lc 5, 8-9) Gostaria de ouvir a tua voz na sinagoga de Cafarnaum (Jo 6, 35-39) ou no Monte (Mt 5, 2), ou quando te dirigias à multidão «ensinando com autoridade» (Mt 1, 22; 7, 29), uma autoridade que só te podia vir do Pai (Lc 4, 22.32).
Faz com que nós aprendamos de ti, nas coisas grandes e pequenas, seguindo o teu exemplo de total entrega no amor ao Pai e aos homens, nossos irmãos, sentindo-nos muito próximos de ti – pois Tu desceste até nós –, e ao mesmo tempo tão afastados de ti, Deus infinito
Dá-nos essa graça, dá-nos o sensus Christi que vivifique a nossa vida toda e nos ensine – inclusive nas coisas exteriores – a proceder em conformidade com o teu espírito
Ensina-nos o teu modo, para que seja o nosso modo, no dia de hoje, e possamos realizar o ideal de Inácio: ser teus companheiros, alter Christus, teus colaboradores na obra da redenção
Peço a Maria, tua Mãe Santíssima, de quem nasceste, com quem conviveste trinta e três anos e que tanto contribuiu para moldar e formar a tua maneira de ser e de proceder, que forme em mim e em todos os filhos da Companhia outros tantos Jesus, como Tu.
(Pedro Arrupe, sj, 18 de janeiro de 1979)
Anexo dois
A nossa maneira de ser «Jesus viu Natanael, que vinha ao seu encontro, e disse dele: "Aí vem um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento". Disse-lhe Natanael: "Donde me conheces?"
Respondeu-lhe Jesus: «Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 47-49)
Ser autênticos
Ouvimos dizer de uma pessoa que é autêntica ou falsa quando «aquilo que diz corresponde (ou não) àquilo que faz». No entanto, esta é uma apreciação muito incompleta. Por exemplo, uma pessoa poderia dizer que está de acordo com a droga e que se droga Desta maneira, faz aquilo que diz, mas de forma desregrada A autenticidade de que falamos não é uma coerência nitidamente exterior, mas um processo interior de sermos aquilo que somos aos olhos de Deus – seus filhos –, e de vivermos em conformidade com essa identidade
Numa sociedade onde as falsas expetativas dos outros recaem sobre nós como um bloco de cimento, pretender ser «autêntico» ou ser «eu mesmo» pode ser uma tarefa difícil Contudo, estamos chamados a sê-lo Não fomos criados em série, somos originais No entanto, somos «cópia fiel», imagem de Deus e destinados a ser semelhantes a Ele Uma pessoa autêntica é aquela que tem um «carisma» próprio e que vive sem fingimento Neste sentido, para ser autêntico existe uma condição fundamental: conhecer-se e aceitar-se a si mesmo.
Por isso, a autenticidade faz parte de um processo espiritual ao longo do qual aprendemos a «sentir e a conhecer as várias moções que se causam na alma» (EE 313). Para viver de modo autêntico, devemos adquirir, mediante o discernimento espiritual, a capacidade de descobrir a ação do Espírito de Deus em nós e de segui-la Trata-se de um processo dinâmico que se vai adquirindo mediante o exame das nossas «moções interiores», quer dizer, através do conhecimento dos nossos movimentos afetivos interiores, compostos por pensamentos e sentimentos
Por que razão é importante entender a autenticidade deste modo? Porque mesmo tendo a intenção de ajudar as pessoas a ser «elas mesmas» e a encontrar a «sua missão» na vida, habitualmente não se tem em conta que se pode cair no erro de julgar que a autenticidade significa expressar os próprios pensamentos e sentimentos sem mais e dizer tudo o que «passa pela mente e pelo coração», sem o devido discernimento Caímos na tirania da livre expressão e da individualidade exacerbada acima do bem comum, esquecendo-nos que uma pessoa autêntica é aquela que pode, inclusivamente, distanciar-se dos seus próprios pensamentos e sentimentos,
libertar-se dos seus próprios pareceres, para procurar e encontrar a vontade de Deus que, como Pai de todos, nos converte em irmãos
Ser bondosos
É verdade que vivemos um tempo em que a bondade é universalmente apreciada; contudo, o poder parece estar acima dela Quem ostenta a sua autoridade e o faz com poder é tido por uma pessoa forte, capaz de liderar, ao passo que, muitas vezes, as pessoas bondosas e mansas são consideradas débeis, frágeis e até falhas de caráter
Não é fácil ser bondoso num mundo que parece apreciar a «lei do mais forte» ou que consagra a violência como um modo de expressão e de reivindicação
Independentemente desta realidade, podemos optar por reforçar, com a nossa atitude, a dureza da sociedade, usando uma linguagem dura e ofensiva, ou podemos esforçar-nos por transformá-la mediante a expressão da bondade que vive em nós.
A bondade não é uma realidade etérea, está intimamente relacionada com uma capacidade inata que temos e que se desenvolve começando por praticá-la connosco mesmos Como? Há pessoas que se tratam com dureza, se zangam com muita facilidade, vivem em constante «batalha campal» consigo mesmas e se castigam duramente por não conseguirem alcançar o seu «ideal do eu»
Esse ideal, construído com base nas expetativas que os outros depositaram em nós, faz com que nos comportemos de maneira agressiva quando não o conseguimos alcançar Para desenvolver a bondade inerente à nossa natureza, porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus, devemos começar por acreditar na bondade que há em nós, apesar dos nossos erros, equívocos e falhas Quando aprendemos a ser bons connosco mesmos, imitamos a bondade de Deus que não julga, mas que abre caminhos à reconciliação e à conversão.
Esta bondade que podemos praticar connosco é a que depois nos permite manifestá-la aos outros. É preciso acreditar que ela habita nos outros, apesar das suas faltas, erros e equívocos. É certamente difícil vê-la nos atos e nas palavras dos que se comportam de modo ofensivo ou agressivo, mas se tivermos em conta que também nós, por vezes, agimos assim, poderemos tocar a bondade dos outros, para lá das aparências
Quando falamos ao coração bondoso que existe em cada ser humano – por vezes oculto sob uma casca de indolência e apatia –, a pessoa abordada toma consciência da sua bondade interior e começa a aplicá-la Apontando-lhe os erros, criticando as
suas falhas, condenando os seus equívocos, só conseguiremos aumentar a nossa dureza de coração e o outro sentirá que se justifica continuar a agir com violência
Ser empáticos
Uma das experiências mais belas nas relações humanas é falar com uma pessoa que te escuta, te entende e, inclusivamente, parece pôr-se no teu lugar Pelo contrário, uma das experiências mais frustrantes é não nos entendermos com alguém, mesmo que falemos a mesma língua
Através da empatia, situamo-nos muito mais além do que quem pretende, simplesmente, compreender aquilo que uma pessoa tenta dizer Situo-me no limiar do mistério, na porta da sua alma, para que seja o meu ser íntimo a escutar o seu ser enquanto este se expressa. Quando te colocas diante dos outros simplesmente «sendo», sem intenção de representar ou desempenhar algum papel, o ser do outro encontra uma porta aberta para exprimir o seu mistério com nitidez e beleza. A empatia anima a alma e liberta-a do temor do julgamento, envolvendo-a nas palavras adequadas ao seu mistério, que, por ser íntimo e pessoal, encerra sempre uma centelha de timidez
Para ter empatia com os outros, devemos estar plenamente presentes É esta a primeira condição Livres do nosso ego Poderei eu ser uma pessoa mais empática com os outros? Poderei aprender a sê-lo?
Há pessoas que são empáticas por natureza; no entanto, trata-se de uma atitude que também se pode aprender Em primeiro lugar, devemos renunciar a julgar os outros, a registar todos os seus erros e equívocos Em segundo lugar, devemos resgatar a bondade presente no coração dos outros e acreditar que, ajudando a criar as condições adequadas, a capacidade do outro desenvolver-se-á Em terceiro lugar, devemos apreender o estado de espírito do outro e perceber quando será melhor ajudá-lo e quando será melhor deixar que ele aprenda a partir das suas próprias experiências. Não pretender ser indispensáveis para os outros nem procurar fazer parte do «centro de apoio ao cliente». Em quarto lugar, ajudar os outros, sem procurar validação ou aprovação, mas com a convicção interior que brota do discernimento espiritual Devemos evitar pressioná-los com a nossa «ajuda» e livrar-nos da ânsia de resolver os problemas alheios, «bem cientes de que não somos Deus»
Anexo três
Adoração
«Reparai nos lírios, como crescem! Não trabalham nem fiam; pois Eu digo-vos: nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. Se Deus veste assim a erva, que hoje está no campo e amanhã é lançada no fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé! Não vos inquieteis com o que haveis de comer ou beber, nem andeis ansiosos, pois as pessoas do mundo é que andam à procura de todas estas coisas; mas o vosso Pai sabe que tendes necessidade delas. Procurai, antes, o seu Reino, e o resto vos será dado por acréscimo» (Lc 12:27-31)
Adorar é santificar o tempo
A nossa cultura, tão fortemente marcada pelos horários, as agendas e os compromissos, desligou-se da adoração como atitude interior de abertura à transcendência Esse facto tornou altamente pragmáticas as nossas tarefas quotidianas, os nossos vínculos e tudo aquilo que fazemos Tornou-nos insensíveis à beleza. A superficialidade, como resultado do pragmatismo que vivemos, tirou-nos profundidade.
Podemos interrogar-nos, sem vergonha alguma: como pode a adoração ser uma atitude que nos permita viver uma vida boa e mais plena?
A adoração é um convite e, ao mesmo tempo, a oportunidade para «ser» Ela abre a possibilidade a que o Senhor habite a nossa existência e encha a nossa vida de sentido, com um significado renovado Permite-nos aceder a uma compreensão distinta das vivências de cada momento
A adoração significa que permito que algo seja grande Hoje, pelo contrário, temos tendência para tornar tudo pequeno, a fim de nós próprios nos sentirmos maiores Não queremos aceitar nada que seja maior do que nós
Perante a forte tendência para viver na superficialidade que o pragmatismo conseguiu instaurar na vida atual, a atitude de adoração ensina a santificar o tempo. Oferece a possibilidade de descobrir a beleza que existe nas coisas, nas pessoas e nos acontecimentos. Cada momento fica carregado de significado. Há um chamamento particular. E é a partir de uma sensibilização interior especial que tomamos consciência dessa voz que ressoa naquilo que existe, permitindo que o nosso olhar sobre o mesmo atravesse a casca da realidade até uma profundidade sempre crescente e entre em comunicação com Aquele que é o criador de todas as coisas e o oleiro da humanidade
Quando a nossa vida é atravessada pela atitude de adoração, deixa de ser uma tela na qual garatujamos as nossas conclusões sobre a própria vida e a história, dando lugar à luz do Senhor, para que esta nos ajude a compreender a trama dos fios com que se tece a história Quando reconhecemos que as nossas perceções têm um limite temporal, damos espaço à adoração e à contemplação, a fim de nos vincularmos com Aquele que nos transcende
Adoração significa estar livre de mim
A adoração exige humildade, abaixamento, prostração É uma atitude primordial à qual resistimos muitas vezes, porque gostamos de caminhar na vida julgando que somos os donos e a origem de tudo Queremos decidir acerca de tudo Devemos ter o cuidado de não julgar que a adoração é uma espécie de artefacto para pedir ou obter alguma coisa do Criador. A Ele, não o controlamos. A adoração não tem esse propósito, nem se pretende, com ela, fazer braço de ferro com a vontade de Deus. Na adoração prostramo-nos diante de Deus, porque Deus é o Senhor. Também não precisamos de procurar nada de «especial» através da adoração, nem belos sentimentos, nem serenidade, nem calma Na adoração não falo de mim mesmo nem sobre os meus problemas Prostro-me, simplesmente, diante d’Aquele que me cria, porque Ele é o meu Senhor, Ele é o meu Criador Durante a adoração, deixo de dar voltas em torno de mim próprio e dos meus problemas e tento olhar apenas para o Senhor, meu Deus Esqueço-me de mim mesmo, porque Ele me absorveu por completo, porque só Ele é importante para mim
O maravilhoso da atitude de adoração é que, esquecendo-me de mim mesmo, me coloco perante Deus, plenamente presente, totalmente autêntico, totalmente eu mesmo Não me ocupo de nenhum problema nem de nenhuma pessoa Deixo que Deus me encha plenamente, me inunde e me habite Na adoração esconde-se também um anseio profundo: libertar-me, por fim, de mim próprio, das voltas constantes em torno de mim, do afã de referir tudo à minha pessoa, de querer reservar qualquer coisa para mim em todas as partes envolvidas. Esquecendo-me de mim mesmo sou completamente livre, Deus absorve-me por inteiro. Os meus problemas deixam de ser importantes, a minha culpa e o meu estado psíquico também Só Ele conta
Aceitar-se a si mesmo é uma graça maravilhosa, mas poder esquecer-se de si mesmo é a graça das graças Ao esquecer-me de mim mesmo, liberto-me de tudo, para que o Criador me habite
Adoração é relação exclusiva com Deus
A atitude de adoração coloca-nos em relação direta com Deus, com a sua obra, com a sua transcendência e, ao mesmo tempo, com a sua proximidade e presença constantes Diante de um pôr do sol, por exemplo, esqueço-me de mim mesmo, porque me deixo absorver pela contemplação Uma pessoa sente-se tão capturada por essa beleza, comovida, absorvida pelas suas cores, que chega ao esquecimento de si mesma
Também nos faz bem deixarmos de ser como que a «referência» de tudo para prestarmos atenção a Deus e aos outros Existe um anseio antigo no nosso interior de nos esquecermos, pura e simplesmente, de uma vez por todas, de nós mesmos, e de nos prostrarmos diante de algo maior do que nós; de nos deixarmos comover completamente por Deus, pela beleza da criação, de uma imagem, de um concerto... Adoração significa inclinar-se perante algo maior. E este algo maior, não o encontramos apenas em Deus, mas em tudo o que é belo, verdadeiro e bom.
Quando deixamos que algo realmente nos comova, no mais profundo do nosso ser, esquecemo-nos de girar sobre nós mesmos Deixamo-nos estar aí, pura e simplesmente E essa realidade, presença ou acontecimento que entrevemos através da atitude de adoração, constitui, em última análise, uma relação profunda com Deus Estou presente, pura e simplesmente É isso que significa a adoração: estar simplesmente diante de Deus e em Deus, mas na atitude de prostração, de devoção, que não pensa em nada a não ser naquilo que observa
A adoração eucarística ajuda a que se desvaneçam as preocupações e problemas que me afligem Se consigo esquecer-me de mim, alcanço a calma Detém-se o vaivém dos meus pensamentos e sentimentos Quando deixamos de girar em torno do nosso umbigo, acabamos por chegar aonde sempre desejamos estar: na presença de Deus. É como sentirmo-nos em casa no fim de uma longa jornada. A adoração é a experiência de nos sentirmos em casa. Quando nos prostramos perante o mistério de Deus, chegámos realmente a casa. Então, a nossa alma tranquiliza-se, notamos que o nosso anseio mais profundo se cumpriu, que finalmente encontrámos algo perante o qual podemos inclinar-nos Na verdade, o homem procura, ao longo de toda a sua vida, Aquele que une todas as suas forças e satisfaz todos os seus anseios e necessidades
Adoramos com o corpo inteiro Quando adoramos a Deus, inclinamo-nos, pomo-nos de joelhos ou sentamo-nos diante d'Ele, oferecendo-lhe a nossa alma e as nossas mãos abertas A adoração
significa que estou completamente focado em Deus, que já não há espaço algum privado para o qual me posso retirar, ensimesmado, para sonhar acordado Há cristãos que rezam com o coração fechado, aprisionando, assim, a alma nos seus sofismas e preocupações Reduzem a sua vida e a sua oração aos seus próprios pensamentos, petições, reivindicações, etc O encontro com Deus na adoração pretende abrir todos os espaços fechados dentro de mim e deixar que neles penetre o amoroso e vivificante olhar de Deus
A adoração não parece ser uma atitude capaz de mudar o mundo Todavia, a adoração, na qual me esqueço de mim mesmo, é, precisamente, o lugar a partir do qual posso observar o mundo com outros olhos Isto torna-se evidente na adoração eucarística, tal como é praticada na tradição cristã Contemplamos a hóstia, o pão transformado no qual vemos o próprio Cristo. Ao contemplar a hóstia, observamos o mundo inteiro com novos olhos. Todo ele está impregnado por Cristo.
A adoração, como gesto primitivo do homem, não caracteriza apenas a nossa relação com Deus, mas também a nossa relação com nós mesmos, com as pessoas e com o mundo É também a atitude de deixar ser Deixo Deus ser Deus, o homem ser homem e a natureza ser natureza Desisto de avaliar ou de mudar tudo Deixando o homem ser como é, permito-lhe crescer, converter-se naquilo que é por natureza Deixando a natureza ser, permito-lhe florescer e converter-se em bênção para mim Assim, a adoração é uma atitude que nos faz falta, precisamente hoje, numa época em que exploramos e entregamos tudo à tirania do dinheiro A adoração é a atitude da libertação interior de nós mesmos e da nossa cobiça de querer usar tudo para nós Se nessa atitude de liberdade saímos ao encontro das pessoas e da criação, não só a viveremos de modo diferente, mas também experimentaremos que tudo floresce à nossa volta