Uma história dos trabalhadores nos frigoríficos: regimes fabris e vilas operárias

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5. Dos açougues medievais aos matadouros públicos2 Faz parte desse processo de depreciação dos açougueiros, ou de seu oficio, a sensibilidade social e histórica que começa a mudar por volta dos séculos XVII e XVIII. Primeiramente, as queixas contra a "imundície" dos açougues se avolumaram e ficaram mais sérias. O afamado escritor britânico Thomas Carlyle, cuja percepção política era bastante conservadora, tomou como importante de nota a cadeia de produção da carne instalada em Smithfield, avistada por ele em 1824. Aquela visão o incomodou tanto que ocupou espaço na carta que escreveu ao irmão naquele mesmo ano. Foi assim que Carlyle definiu o mercado de carne de Smithfield, região de Londres. Outro dia passei, por acaso, no mercado de Smithfield (...). Eu subi os degraus de uma porta e olhei em volta, um espaço irregular de aproximadamente trinta hectares de extensão, cercado de velhas casas de tijolo e cruzado de currais de madeira para gado. Que cena! Inumeráveis cabeças de bois gordos, amarrados em longas fileiras ou trotando para diversos dos matadouros que ali havia; e milhares de criadores de gado, vaqueiros, açougueiros, corretores de gado empurrando aqueles infelizes animais; correndo pra lá e pra cá, numa grande confusão, gritando, brigando e xingando em meio à chuva, como a imaginação não pode retratar. (CARLYLE, 2001)

A imagem retratada por Carlyle não deixa de ser impressionante. No fundo de sua observação estava um questionamento sobre a grande confusão estabelecida pela concentração de açougueiros cuja atividade mobilizava um intenso trânsito de gado através do centro de Londres. Entretanto, a forma escolhida por ele para organizar o que chamou de "grande confusão" isentava o capitalismo. E esta opinião não poderia ser diferente no caso de um conservador. A intensa e rápida movimentação daquela matéria-prima acontecia sob o comando dos "criadores de gado, vaqueiros, açougueiros, corretores de gado", enfim, agentes articulados e integrados à indústria da produção da carne. Interessante notar que Carlyle dificilmente enxergaria com detalhes aquela cadeia produtiva. Ele encurtou a distância de onde estava e passeou por entre o mercado de Smithfield com a finalidade de evidenciar o que acreditava ser uma patologia da sociedade moderna. Pode-se contestar sua visão e argumentar que as cenas vistas por ele eram, no máximo, uma variação da normalidade, uma variação da produção capitalista do século XIX. Por outro lado, o registro feito por Carlyle possibilita uma comparação com o que se poderia considerar o mercado nos séculos XV e XVI. Smithfield, fundada no século XIII, acomodava o Hospital São Bartolomeu, santo protetor dos magarefes. Ato contínuo, lá se reuniam diferentes corporações, especialmente as guildas dos açougueiros. Mapas e desenhos do mercado nos séculos XV e XVI sublinhavam positivamente Smithfield. Claro. O contexto era outro. Tratava-se de um lugar especializado em abastecer Londres. Smithfield do período Elisabetano, embora de menor dimensão do que na Inglaterra Vitoriana de Carlyle, Este capítulo incorporou parte do artigo “Dos Açougues aos Frigoríficos: Uma História Social do Trabalho na Produção de Carne, 1750 a 1950”. (BOSI, 2014) 2

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