
7 minute read
2. Apropriação da Carne e Desigualdade Social
animais para o homem (COULANGES, 2002) Enfim, nesse caso as evidências são numerosas. Interpretá-las em favor do tema desse livro é tarefa diferente. O culto ao fogo, tão comum em lares de gregos e de romanos, ligava problemas terrenos a soluções sobrenaturais. Sobre isso, Fustel de Coulanges afirmou que, no tempo de Tulcídides, mantinha-se o fogo constantemente aceso nas casas, sob a crença de que havia nele proteção para a família. Extinto, ele traria grande desgraça para todos. (COULANGES, 2002, p.23-36) Freud acrescentou que a conexão do fogo com o sagrado remonta a épocas antiguíssimas. A interpretação psicanalítica traduziu o fogo, ou melhor, o domínio humano sobre ele - como a primeira grande conquista da civilização a partir do ato masculino de tirarlhe a força com um jato de urina, um dos princípios do prazer não reprimido. Uma linguagem materialista diria, com convicção, que a graça do fogo estaria em seu uso, um dos meios de produção mais antigos que conhecemos. Nesse caso, pode-se pensar o consumo de carne processada no calor do fogo. De fato, todas as interpretações anteriores estão corretas, se olhadas à luz desse pragmatismo material. Ao mesmo tempo, o aprisionamento e domesticação de animais se disseminaram rapidamente. Isso não aconteceu com o objetivo primordial de abastecer seus criadores. A vaca, por exemplo, poderia valer mais pelo leite que produzia. O abate precoce liquidava o processamento artesanal do leite em queijos, manteiga, soro e nata. Nas civilizações baseadas no trigo, os derivados do leite empatavam em importância na composição da dieta. Coisa semelhante acontecia com a lã das ovelhas e os ovos das galinhas. Já os porcos, estes sim, eram criados para o abate. Embora a carne fosse crescentemente incorporada à dieta a partir da criação de rebanhos, a caça não foi abandonada nem se tornou uma prática incomum. Até o século XIX, os direitos à caça eram transversais e confusos na sua relação com as diferentes ordens, castas e classes sociais. Em que pese ser um exemplo tardio - sobre o século XVIII - Edward Thompson ofereceu um rico quadro das práticas de caça na Inglaterra e da criminalização de práticas e costumes fundamentais à sobrevivência dos mais pobres. Como ele mesmo avaliou, os ventos que sopravam eram ruins para os trabalhadores e não traziam nada de bom. (THOMPSON, 1987) Grosso modo, entre o ano 1000 e o período histórico coberto por Thompson, não deve escapar à atenção a distância que separava os interesses da aristocracia e dos plebeus quando caçavam em terras comunais. Os primeiros buscavam diversão e prazer, mais do que alimento. Os segundos se viam obrigados, devido a sua pobreza e escassez de mantimentos, a procurar se abastecerem de carne por meio daquela prática social. Se havia entre eles o gosto pelo entretenimento, não era isso que, basicamente, os movia. Tal distinção se explica pela desigualdade econômica que os separava, a qual possibilitava a privatização de recursos naturais como a terra.
2. Apropriação da Carne e Desigualdade Social
A característica da política que separa trabalhadores e nobreza é estrutural. A condição da maioria dos trabalhadores, do campo e da cidade, nunca esteve próxima da condição vivida pela nobreza. E um tipo de estabilidade que atravessou séculos sem riscos mais sérios. A partir
dessa referência, pode-se pensar o acesso à carne naquele mundo socialmente dividido entre trabalhadores e nobres. De modo geral, a carne não se tornou um artigo de consumo popular, nem frequente nas economias antiga e medieval. Ou assim pensou Georges Düby sobre a Alta Idade Média, até os séculos VIII e IX. Sua visão se concentrou na força de trabalho e nos meios de produção que faziam a economia feudal funcionar. (DÜBY, 2001, p. 85-95) Normalmente, as precárias técnicas agrícolas disponíveis à época, a baixa fertilidade dos solos, a insuficiente quantidade de terras aráveis dentre outros fatores, exerciam pressão sobre os camponeses de modo que sua dedicação ao trabalho se concentrava na agricultura. As plantações não deixavam pasto para grandes rebanhos ou para animais de grande porte. O confinamento era uma técnica desconhecida. Essa interpretação é bastante pacífica. Por tudo isso, a criação de animais, principalmente para o abate, era uma atividade secundária e modesta. Uma família camponesa na França ou na Inglaterra, durante a Alta Idade Média, possuía um ou dois bois, geralmente utilizados na agricultura, puxando arados. Contava com duas ou três ovelhas das quais obtinha leite. Mantinha algumas galinhas e patos, de onde se conseguia ovos e carne para dias muitos especiais. O mais popular dos animais que fornecia carne era o porco. Eles eram abatidos pouco antes dos meses de novembro e dezembro. Sua carne era artesanalmente salgada, defumada, embutida, e assim os camponeses se preparavam para o inverno. (FRANCO JR., 2006, p. 43) Esta descrição é controversa. Há muitas evidências de que o consumo de carne na Europa durante o período medieval nunca foi ordinário. Na Inglaterra, durante a Baixa Idade Média, especificamente no intervalo dos séculos IX e XV, mesmo entre as famílias aristocráticas e o alto clero, carne e peixe foram a principal despesa com alimentos. (MÜLDNER e RICHARDS, 2005, p.40) Naquele contexto histórico, a carne não era um item costumeiro nas mesas dos senhores de terras. Menos ainda nos pratos de camponeses e de artesãos pobres. A nobreza tratava a alimentação com requinte. Camponeses e trabalhadores das cidades sequer tinham uma ideia que se aproximasse dos pratos e banquetes consumidos com certa ostentação entre os pares. O poder da nobreza também se media e se expressava em representações importantes que hierarquizavam os senhores de terras. Nesse ponto, sem ser historicamente específico, Veblen explica que o consumo da nobreza se voltava para um tipo de exibição. Entre nobres, a fartura e a ordenação da comida e de festas muitas vezes funcionavam como uma competição onde condes e barões se vangloriavam de um comportamento perdulário. A isso Vebler chamou de "consumo conspícuo". (VEBLEN, 1987, p.21-34) Hoje veríamos isso como uma prática ociosa. Naquele contexto nada era. Ainda sobre esse assunto, contavam-se muitos manuais de culinária à disposição da nobreza, principalmente os que ensinavam formas bastante criativas de preparo da carne. Esse aspecto, especialmente revelador, permite conhecer quais carnes eram servidas aso senhores de terras, e em que medida a sua preparação confirmava a relação de poder entre a nobreza e os trabalhadores. Significava que a carne formalizava e enrijecia as fronteiras que delimitavam os lugares de cada sujeito naquela sociedade. O porco era a principal fonte de carne e banha para a aristocracia. Exceto os judeus e os mulçumanos, que recusavam esses animais devido a razões religiosas, os porcos domésticos e selvagens predominavam na Europa. Eles eram servidos a partir de grande número de receitas. Os miúdos eram considerados partes muito saborosas, se bem temperados, cozidos
ou assados. Fígado e tripas, por exemplo, ganhavam sofisticadas receitas. Fazia-se dele o presunto, bacon e linguiça bem temperada. Galinhas e gansos eram preparados e servidos com requinte. Geralmente, ambos eram apresentados à mesa em pedaços, desfiados, inteiros recheados de temperos -, especialmente o fígado e as tripas. A carne de ganso não era uma iguaria, embora fosse considerada acima das demais. (ADAMSON, 2004, p.30) Até mesmo animais selvagens, nativos da Europa e acessórios aos camponeses, tinham seu preparo incrementado por rituais de opulência e por mudanças no paladar. A lebre, por exemplo, fez parte da dieta humana na Europa aproximadamente 20 mil anos a.C. Sem ser domesticada, geralmente o seu tempero, desde Grécia e Roma, compunha-se de molho de ervas engrossado com pão e misturado à pimenta e ao próprio sangue do animal. Coelhos, criados em cativeiro, normalmente estavam fora do alcance dos camponeses. A condimentação dessa carne se assemelhava à preparação da lebre. Eles exibiam uma característica peculiar, de terem propriedades terapêuticas contra obesidade, um "mal" que certamente não afligia os trabalhadores naqueles tempos. (ADAMSON, 2004, p.30-36; MÜLDNER, e RICHARDS, 2005). Do outro lado, havia alimentos reservados aos camponeses e artesãos menos pobres. E o caso de cerveja, fermentada de grãos e consumida diariamente, como parte inalienável de sua dieta. Essa característica geralmente levava a nobreza a rejeitar essa bebida. O vinho era mais seletivo porque a produção de uvas se restringia a determinadas regiões. Poucos lugares, como o Languedoc, possibilitavam aos camponeses incluir o vinho em sua ração. (LANDURIE, 1997) No caso da nobreza, fossem adocicados ou temperados, os vinhos acompanhavam pratos requintados, em pequenas quantidades para fins medicinais. Acreditava-se que o vinho ajudava na digestão. Além disso, e de modo geral, especiarias como pimenta, gengibre, cravo, açúcar, raízes e óleos de aroma e de sabor existiam antes dos tempos das grandes navegações. Novamente, endereçavam às famílias nobres. Nada disso integrava o universo dos camponeses. (DEMBISKA, 1999) Pode-se encerrar esse raciocínio examinando uma possível interpretação da obra de Giuseppe Arcimboldo, pintor do século XVI.
Imagem 1 – Outono.(1573) Giuseppe Arcimboldo
Fonte: http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=1683 Domínio Público. Acesso em abr de 2017