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2. Criar e vender galinhas caipiras

de equipamentos, por exemplo, ressaltam em propagandas que não cessam de aperfeiçoar e oferecer máquinas que comprimem, cada vez mais, postos de trabalho. A esse respeito, a Marel Food System, uma multinacional de origem dinamarquesa que produz máquinas para frigoríficos, recentemente anunciou uma tecnologia que automatiza o corte da carne de frango em tiras e cubos (exigência do mercado japonês), o que diminuirá a presença humana às funções especializadas de operação e manutenção do maquinário. (SAVAGLIA, 2009) A remuneração de toda a cadeia está, assim, aprisionada por uma necessidade crescente de aumento da oferta da mercadoria que realiza os lucros no mercado (a carne de frango) e que também requer um consumo em permanente expansão. Cabe lembrar ainda que no contexto do capitalismo monopolista os frigoríficos não eliminam a queda tendencial da taxa de lucro. Longe disso, a elevação do lucro total se faz, como antes da formação do monopólio, por meio da diminuição do lucro contido em cada quilo de carne produzida e vendida, uma intensificação da produção e da produtividade. Esta é a regra que também determina o funcionamento dos frigoríficos no Brasil. E além dos fatores que fazem o crescimento oligopolizado e monopolizado desse segmento, apontados anteriormente, os trabalhadores aparecem como a parte mais sensível no processo da produção da carne. Eles obviamente permanecem como fonte única da extração de mais valia. Contudo, as características da exploração do trabalho vêm mudando nos últimos 60 anos, por volta de 1970 em diante, e elas precisam ser examinadas em pontos importantes tais como o recrutamento de trabalhadores (facilidades e dificuldades), os conflitos na definição dos ritmos da produção (no tempo de trabalho realizado) e o adoecimento. Ao mesmo tempo em que esses números informam a dimensão desse setor produtivo, geralmente eles são repetidos para ilustrar a dinâmica da acumulação de capital ocorrida no setor agroindustrial no país durante os últimos 40 anos. Eles têm servido também para alimentar um repertório político que ovaciona a importância do setor avícola na pujante economia brasileira. Cabe problematizar a força desses números à luz da história de milhões de trabalhadores que, durante as últimas oito décadas, fizeram a riqueza de granjas, frigoríficos e multinacionais ligadas a agroindústria. Estima-se que 5 milhões de trabalhadores estão atualmente ligados direta ou indiretamente à cadeia produtiva avícola. De modo mais específico interessa-me identificar e discutir as relações de trabalho existentes ao longo da estruturação da cadeia produtiva avícola (numa escala que vai do trabalho nos criatórios aos frigoríficos), enfatizando a presença dos trabalhadores neste processo. A razão dualista que postulava a existência de um Brasil rural e atrasado e outro urbano-industrial moderno perdeu força à medida que muitos críticos insistiram no caráter desigual e combinado do capitalismo no Brasil, mostrando como formas consideradas arcaicas de produção no campo estavam articuladas ao processo de acumulação de capital de modo a apoiar, de diversas formas, os setores da economia tidos como mais dinâmicos e desenvolvidos. Entretanto, pouco se discutiu que esta articulação integrou modos de vida e de trabalho tradicionais destruindo-os como tais.

2. Criar e vender galinhas caipiras

A venda ambulante de aves vivas, particularmente de frangos e galinhas caipiras, perdurou até recentemente. Era uma prática relativamente antiga que encontrava respaldo em

hábitos e costumes igualmente antigos. Havia uma forte desconfiança contra a venda da ave morta, motivada pelo medo de que alguma peste tivesse tirado sua vida. A venda da ave já depenada e eviscerada era incomum. Além disso, contar com uma galinha na panela podia ser considerado um importante evento doméstico. Um almoço de domingo, uma visita ilustre, a comemoração de datas importantes como um batizado, enfim, este não era um prato trivial. Até o final da década de 1970 ainda era possível topar com vendedores de frangos e galinhas caipiras nas ruas de pequenas cidades. Essas aves eram criadas por trabalhadores pobres, donos de pequenos pedaços de chão ou roceiros e meeiros vinculados a grandes fazendeiros. As aves cresciam soltas no terreiro que se estendia ao fundo da casa. Passavam o dia ciscando e recebiam milho no crepúsculo, embaladas por um som que tentava imitar seu cacarejo. Aos finais de semana aqueles trabalhadores socorriam-se na cidade levando seus frangos e galinhas pendurados pelos pés, num varal de madeira, ou fechados num balaio. Frangos caipiras vivos também eram revendidos em armazéns e mercearias, principalmente nas médias e grandes cidades. Aliás, esses estabelecimentos eram abastecidos por pequenos criadores. As poucas granjas de aves para corte, instaladas no país desde os anos 20, forneciam preferencialmente para restaurantes e hotéis. (ARASHIRO, 1989)

Imagem 14 - Vendedores de Aves (Rio de Janeiro, 1895)

Fonte: Foto de Marc Ferrez.

Assim acontecia na região onde nasci, o Alto Paranaíba mineiro. Havia o Divino, um senhor que oferecia frango caipira à porta de casa todos os sábados. Certo dia eu o escutei reclamar, humilde e respeitoso, contra aquelas máquinas inoxidáveis que assam frango. Divino pareceu irritado diante da concorrência dos frangos assados. Mal sabia ele que até lá em casa estávamos nos habituando a comprar o frango assado da lanchonete do Lazinho, todo

domingo. A renda conseguida daquele trabalho parecia ser cada vez mais fundamental para a sobrevivência de trabalhadores como Divino. Sua situação de camponês estava sob pressão há algum tempo à medida que se via forçado a se alternar entre os afazeres em sua chácara (principalmente a hortaliça que plantava e a criação de galinhas), o trabalho de boia-fria nas lavouras de café que se expandiam naquela região e a venda da produção familiar na condição de ambulante. A pouca independência e autonomia que marcara a vida de alguns estava sendo corroída pelo avanço dos latifúndios e da monocultura mecanizada. O mercado de alimentos industrializados vagarosamente tirava o lugar de Divino. Em 1995 gravei uma conversa com alguém bastante representativo dessa experiência histórica de expropriação. Zé da Mata tinha 53 anos à época, pai de três filhos, fundador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Monte Carmelo/MG e animador do núcleo da CEB da comunidade rural da Tijuca. Ele me disse que quando se casou, em 1970, muitos iguais a ele tinham vendido as pequenas terras com alguma esperança de melhorar de vida comprando uma casa na cidade e trabalhando como assalariado. Não foi o caso dele e nem o da maioria dos moradores da Tijuca. Resistiram como puderam às ofertas de agricultores de café vindos do Paraná no final dos anos 70. Seu modo de vida era modesto se comparado aos padrões de consumo urbanos daquela época. Em seu sítio Zé da Mata, ajudado pela esposa, plantava o suficiente para o consumo e ainda fabricava a própria roupa de algodão cru. O excedente produzido era negociado na cidade, inclusive frangos e ovos caipiras, mas nunca se tornou objeto de acumulação. Tentou sair daquela posição uma única vez sem sucesso.

Foi em 1970. Eu mudei pra essa casinha aqui donde tá até hoje. E, nessa luta!, mexendo com roça, pro gasto. Uma vez eu fiz um financiamento pra tocar uma roça no cerrado aqui. Naquela ocasião que roça tinha muita influência por causa do cerrado, deu foi prejuízo. Tive que vender criação pra poder pagar as coisa do banco. Aí eu trabalho só pra despesa, que eu dou conta de tocar [a roça] sozinho. Num ganha nada, mas também num fica devendo ninguém, né?

Nesse universo ainda havia pequenos matadouros e frigoríficos de frangos voltados para mercados locais. Sua existência data dos anos 40, estimulada pelo encarecimento das carnes de boi e de porco no contexto da segunda grande guerra. Normalmente podem ser descritos como unidades de produção familiar, demandando parco capital para funcionar. Sua engenharia foi definida por Osny Arashiro como “muito simples e precária”, formada de “a) depósito ou curral; b) sala de matança; c) sistema de refrigeração; d) sistema de distribuição”. (ASHIRO, 1989, p.154) Conheci um desses pequenos frigoríficos que funcionou até o final dos anos 80. Pertenceu a Afrânio, companheiro nos idos tempos do Partido dos Trabalhadores. A sala de abate tinha funis que recebiam os frangos para a degola. Ao lado ficava um caldeirão onde os frangos eram escaldados. Na mesma sala, em balcões diferentes, eles eram depenados e eviscerados. Finalmente iam para um tanque onde eram limpos e acondicionados para o congelamento (feito em refrigerador comum). Noutra sala que dava para a rua eles eram comercializados. Numa rudimentar divisão do trabalho ficavam Afrânio e o filho mais velho encarregados da produção, e Afrânio, novamente, ajudado pela esposa (que cuidava dos

afazeres da casa), atendendo os clientes. Os três outros filhos, entre 7 e 12 anos, faziam serviços menores além de estudar. Contudo, nos anos 80, a existência de vendedores de galinhas e frangos caipiras como Divino, ou de pequenos frigoríficos como o de Afrânio, era recessiva e não dominante. Ambos sucumbiram à gigantesca cadeia de produção de carne de frango estruturada no Brasil a partir dos anos 70. Naquela década a produção de carne de frango teve um arranque, organizada que foi em escala industrial. De 1970 em diante iniciou-se o deslocamento da maior presença agroindustrial avícola em Minas Gerais e São Paulo para Santa Catarina e Paraná, e com ele aconteceu a instalação de grandes frigoríficos a exemplo da Sadia e Perdigão. Mas o costume que conectava milhões de moradores nas cidades a pequenos armazéns, mercearias e trabalhadores como Divino, não foi fácil e prontamente desativado pela progressiva produção industrial de carne de frango14. Ele foi duramente atacado. Quatro fatores contribuíram sobremaneira para viabilizar tal mudança. O barateamento do preço da carne de frango, novas necessidades e noções de higiene que alteraram a compreensão popular sobre o preconceito contra o consumo do frango abatido, o desenvolvimento de uma logística que permitiu uma distribuição nacional mais adequada (isto é, lucrativa) e o emprego de tecnologias que possibilitaram o congelamento sem efeitos colaterais visíveis. A primeira dessas mudanças decorreu de forte e rápido incremento tecnológico que permitiu a manipulação genética das matrizes de frangos de maneira a aumentar seu peso, abreviar o tempo de engorda e alterar sua constituição física hipertrofiando seu flanco (o “peito do frango”). Como já salientado, entre 1930 e 2009 o peso médio do frango aumentou 67% (de 1,5 quilo para 2,5 quilos). Se analisada em intervalos menores esta evolução fez-se mais nitidamente a partir da década de 1990, quando o peso registrado saltou de 1,9 quilo para 2,25 quilos em 2000, algo em torno de 20%. O aumento alcançado nesses 10 anos equiparouse ao que havia sido conseguido entre 1930 e 1990. O mesmo investimento aconteceu na nutrição e imunização dos frangos. A composição da ração, cada vez mais, privilegiou componentes que aceleraram o crescimento das aves. À ração são misturados diversos antibióticos que travam uma luta incessante contra minúsculos parasitas que não cessam de transmutar-se para resistir e anular os medicamentos. Vacinadas desde o ovo e alimentadas durante 41 dias (ou 45 a depender do tipo de frango) essas novas aves agigantaram-se tão rapidamente que, não raras vezes, sua frágil estrutura óssea e os flancos hipertrofiados tornaram inviável seu deslocamento. Mas se caminhassem normalmente seria um esforço inútil dada a superlotação dos aviários. Completa este quadro uma produção industrial em escala de tipo taylorista / fordista a partir da qual o trabalho nos frigoríficos ficou reduzido a padrões de cortes repetitivos e de fácil apreensão. Tal modelo industrial que sustentou esta mudança a partir dos anos 70 espelhou-se no desenvolvimento monopolista do capital, concentrando, em poucas e grandes empresas, as patentes das inovações tecnológicas, a pesquisa em geral e a própria produção de frangos (no que diz respeito aos frigoríficos). Tudo isso espremeu para baixo o preço da carne de frango relativamente às carnes bovina e suína. Como já foi dito, o preço nacional do quilo

14 Sobre a mudança na sensibilidade do homem frente ao abate em massa consultar Amy Fitzgerald (FITZGERALD, 2010, pp.58-69)

dessa carne no varejo caiu de US$4,05, em 1974, para US$1,2 em 2009, contribuindo para ultrapassar o consumo de outras carnes. A segunda mudança que favoreceu o aumento do consumo de carne de frango abatido deveu-se à generalização e intensificação de novas noções de higiene sobre a carne. A presença do Estado no abate e comércio de frangos fez-se por meio, principalmente, de fiscalização exercida pelo Sistema de Inspeção Federal (SIF), cuja ação pressionou fortemente os pequenos e médios estabelecimentos ajudando os grandes matadouros a empurrá-los para fora do mercado. A isso se associou a necessidade, rapidamente disseminada a partir dos anos 80, de aligeirar o tempo das refeições. Nas médias e grandes cidades o hábito de “comer fora”, imposto pela intensificação das jornadas de trabalho15, fomentou o surgimento de restaurantes populares self-service que se tornaram grandes compradores de carne e passaram a exibir, em suas cubas, filés de frangos ao lado de tipos pouco nobres e mais baratos de carne bovina. Quanto ao consumo doméstico, o frango preparado ou congelado (limpo e pronto para o preparo) mostrou-se mais adequado aos novos hábitos alimentares. A vantagem do frango sobre seu concorrente direto, o boi, foi ajudada ainda por uma sistemática propaganda que divulgava e adulava suas características nutritivas, ressaltando a menor presença de gorduras saturadas como emblema de alimento saudável. Nesse universo protéico a carne de frango foi promovida ao primeiro lugar, apresentada e amplamente reconhecida como a opção mais salutar e barata. Exemplifica bem esse processo o frango defumado (fabricado pela Sadia), que vinha temperado e podia ir direto para o forno, o que reduzia seu tempo de preparo. A mascote da Sadia surgiu inspirada neste produto (imagem 12). Mas não foi o frango a primeira ave que se afirmou em tais condições. Lançado em 1974, o “Peru Sadia”, pré-temperado, tornou-se símbolo desta mudança.

Imagem 15 – Mascote da Sadia

Fonte: Mascote da empresa. Primeira versão de 1971 e imagem atualizada.

A propaganda de carne congelada, semipreparada para o consumo, ajudou a generalizar um costume que parecia melhor adaptado às grandes cidades do Brasil nos anos 60 e 70. Para viabilizar o contexto pretendido a Sadia promoveu duas fortes imagens

15 Esta conjuntura tem sido caracterizada, principalmente, pelo crescente distanciamento entre a residência e o local de trabalho, o aumento do trabalho feminino, jornadas cada vez mais intensificadas e com curtos intervalos para o almoço.

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