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4. O açougueiro e o mercado medieval
pobres. Homens e mulheres nessa condição eram úteis ao funcionamento das cidades e ao atendimento das necessidades da nobreza e dos novos ricos. Suas incumbências envolviam lidar com o lixo, eliminar os dejetos, recolher trapos e panos jogados nas ruas, enfim, limpar as sujeiras das classes dominantes. Junto aos esgotos, eles faziam parte da tecnologia do conforto no século XVIII, e por isso eram aturados. (FOUCAULT, 1990, p.94) Por óbvio, a presença de pobres estava restrita aos espaços de segregação onde poderiam trabalhar em favor dos nobres e só. Olhando esse quadro de longe, pode-se dizer que as inquietações com a higiene e a salubridade das cidades não tinham ultrapassado inteiramente os parâmetros do século XIII. Não era esse o caso da carne e seu consumo, ao menos em parte. No campo não havia controle sobre o abate de porcos e de bois, por exemplo. As famílias camponesas os criavam e quando atingiam um peso considerado ideal esses animais eram abatidos. Parte deles se transformava em embutidos e carne condimentada para durar alguns meses. Mas, é bom que se diga, na dieta camponesa a carne não era um alimento frequente. Funcionava mais como uma iguaria. O resto, aliás, a maior parte dos animais abatidos, era vendida no mercado local, na aldeia mais próxima, ou em mercados consolidados e ligados a alguma cidade. Chegava-se lá nessa condição, sem qualquer indicador de qualidade e procedência que não fossem as conferências empíricas, realizadas com o olfato, os olhos e o tato. O mau-cheiro, a cor esverdeada e a textura frouxa ou desfigurada geralmente desfaziam a intenção de comprá-la. Outro modo não havia. Quando a desconfiança aumentou em relação à carne vendida e a distância entre o campo e a cidade diminuiu, mecanismos de fiscalização - mesmo que precários - foram exigidos. O açougueiro entrou em cena. Seria ele o sujeito a assegurar a integridade da carne. Já nas cidades, o abate e o processamento da carne cabiam ao domínio desse ofício. Seu trabalho, praticamente realizado aos olhos de todos, era requisitado e servia como garantia e origem da carne. Outro aspecto também intrigante necessita esclarecimentos. Diz respeito a conexão entre a reforma urbana tentada por volta da baixa Idade Média e o ritmo mais acelerado da disciplinarização do consumo de carne, inclusive os significados de sua transformação em mercadoria.
4. O açougueiro e o mercado medieval1
A Corporação dos Açougueiros edificada em 1527 na cidade de Hildesheim, norte da Alemanha, é uma das mais emblemáticas evidências do esplendor vivido por este ofício. Este prédio tinha sete andares cuja altura chegava aos 26 metros. Sua porta media aproximadamente 2,5 metros, uma largura mais do que suficiente para transportar porcos e gado em direção ao abate. Suas paredes tinham uma espessura de 1,5 metros, fator que garantia uma ótima refrigeração para a carne. Guildas bem estruturadas como a de Hildesheim serviam como mercado de venda de carne. Para aquela época tratava-se de um matadouro sofisticado, com tecnologia de ponta. Lá
1 Parte desse capítulo foi desenvolvido a partir de artigo publicado. (BOSI, 2014)
dentro bois, porcos, ovelhas e cavalos eram abatidos, eviscerados, cortados e preparados para a venda no local ou em outros mercados distantes. Os açougueiros associados na corporação exerciam o controle sobre a produção. A definição das regras sobre a qualidade e os preços da carne também estava sob o domínio das corporações, o que gerava muitos conflitos entre os mestres de ofício e os representantes da municipalidade ou do próprio Rei. Aqui é preciso esclarecer um ponto. Na maioria das vezes, as divergências que opunham as guildas e o Estado não diziam respeito à qualidade da carne. Quem aferia isso eram os açougueiros. Na época em que a guilda de Hildesheim foi erguida os questionamentos acerca dos privilégios - ou da autoridade - dos açougueiros não eram mais do que uma pálida reclamação. Por outro lado, quando as discordâncias aconteciam em torno dos preços de impostos e de taxas o atrito era barulhento e, não raras vezes, estraçalhava as possibilidades de composição dos interesses em jogo. Este tipo de tensão parece ter sido mais presente do que geralmente tendemos a acreditar quando pesquisamos os registros deixados pelas guildas, mesmo porque os privilégios detidos por açougueiros dependiam de algum tipo de confirmação feudal. Os confrontos gerados nesta fronteira política podiam, inclusive, transbordar e atingir níveis incontornáveis, como foi o caso da rebelião de 1413, em Paris (acontecida no contexto da Guerra dos Cem Anos), que tentou evitar a elevação da carga fiscal pelo reinado de Carlos VI. Ela foi liderada por açougueiros, peleiros e curtidores, cujo resultado implicou a expropriação dos pertences dos açougueiros, a revogação de seus privilégios e a demolição dos abatedouros que ficavam localizados próximos à catedral de Notre Dame (ROSS, 1997). Naquele tempo, negociar carne não era uma prática de livre mercado. Para a historiadora Sydney Watts, açougueiros como aqueles que patrocinaram a revolta de 1413 representavam uma força social e econômica que foi arrasada com a destruição de suas lojas, mas que retornaria à tona porque seu trabalho não podia ser substituído e nem completamente controlado pelo Estado (WATTS, 2008). Mas esse tipo de manifestação não era frequente. Ao contrário, registros históricos sobre eles que indicam que podem ser considerados constantes não passavam de desavenças pontuais contra a intromissão do governo local na rotina comercial dos açougueiros. Os magarefes tendiam a concentrar seus abatedouros em locais comuns, como a corporação de Hildesheim, e a empregar o trabalho de aprendizes e jornaleiros para tarefas constituídas numa rudimentar divisão do trabalho. Encerrados no abatedouro, esses trabalhadores se revezavam nas atividades de matar os animais, eviscerá-los, esfolá-los, executar os cortes, preparar a carne para a venda, e por vezes fervê-la para produzir salsichas. Semelhante a outros ofícios e oficinas o trabalho com a carne era organizado e planejado pelo mestre, que manejava o conhecimento acerca do abate, dos tipos de cortes, das ferramentas, enfim, de todo o processo de trabalho (ROSSER, 1997). Havia uma distância social e econômica entre os mestres, de um lado, e os aprendizes e jornaleiros, de outro. Sem o trabalho destes últimos não seria possível aos açougueiros acumular alguma riqueza. De forma convincente, Max Weber argumenta que as corporações de ofício ocidentais, incluída a dos açougueiros, não poderiam se desenvolver senão fora do controle dos senhores de terras. Camponeses com habilidades de carpinteiros e de ferreiro, por exemplo, subalternos ao domínio senhorial viam-se impedidos de praticar o ofício livremente. (WEBER, 2006, p. 141-163) Não se pode datar o começo com precisão, mas é razoável
apontar para o período carolíngio, quando as cidades e os mercados se tornaram mais numerosos e populosos. Portanto, não havia direito público preparado para as corporações. Este fato facilitou às corporações o controle sobre o trabalho e, principalmente, a autoridade relativamente à qualidade do produto antes de ser entregue ao mercado. Sabe-se que tal controle foi menos efetivo do que normalmente se pensa. Em geral, havia concorrência entre oficinas abrigadas ou não numa mesma corporação. E o que sugere Gervase Rosser, ao argumentar que os pequenos melhoramentos na tecnologia referente à produção desenvolvidos numa oficina não eram facilmente apropriadas pelos demais mestres. A principal forma de transferir esse tipo de conhecimento se dava quando um jornaleiro trocava uma oficina por outra, carregando consigo alguma técnica ou informação sobre novos desenhos de ferramentas ou processos de trabalho. (ROSSER, 1997) Aquele não era um mundo conciliado com muitas de suas próprias leis. De volta às relações de trabalho nos açougues medievais, encontramos um quadro mais detalhado a respeito da execução do trabalho. Os aprendizes e jornaleiros realizavam tarefas difíceis e pesadas, como o abate e a limpeza das carcaças, e isto não era simples de se aprender. O método de abate, por exemplo, era tão mais complicado quanto maior fosse o tamanho e a ferocidade do animal. Geralmente um boi deveria ser morto com um machado, mas isso nem sempre acontecia sem transtornos. (MACLACHLAN, 2008) Um golpe mal executado deixava o boi em agonia, o que exigia outros golpes para terminar o sofrimento do animal e finalizar o trabalho. Não era incomum o aprendiz ou o jornaleiro golpeava seguidamente o animal sem qualquer sucesso. Deixado à sorte de muitos golpes acreditava-se que a agonia do boi interferia na textura e no sabor da carne, depreciando seu preço. Tal técnica foi lentamente substituída desde o final do século XVIII, cedendo espaço para o "ritual judeu"- o boi tinha uma das patas traseiras presas e suspensas por correntes, era amarrado e imobilizado pela cabeça para que fosse sangrado no pescoço. (BRANTZ, 2002) Eviscerar e esfolar o animal também eram tarefas ingratas que exigiam força e destreza. Já o corte da carne ficava reservado ao açougueiro, mas também podia ser executado por jornaleiros e aprendizes habilidosos. A jornada de trabalho era longa, principalmente quando o trabalho envolvia a produção de salsichas, e a paga não tornava este ofício imediatamente sedutor. Os aprendizes, como era o costume, trocavam seu trabalho pelo conhecimento, pela expectativa de se tornarem mestres, e por comida e abrigo (não necessariamente nesta ordem). Os jornaleiros recebiam algum dinheiro que podia vir acrescido da alimentação e do pouso, além da possibilidade de tornarem-se açougueiros. Por fim, um mesmo açougueiro com capacidade de empregar trabalhadores não o fazia em grande número, dificilmente ultrapassando três ou quatro. De qualquer modo, fosse um ofício realizado pelos mestres, aprendizes ou jornaleiros, a habilidade era uma requisição imprescindível. Uma faca manuseada com desleixo, desatenção, desgoverno ou com pouco domínio resultava, não raras vezes, em violentos talhos no próprio corpo. Certamente a escolha por São Bartolomeu para assumir o papel de Santo padroeiro do ofício relacionava-se ao fato de ter este apóstolo sido supliciado com o esfolamento da pele de todo o corpo, antes de ser decapitado. Ninguém melhor do que São Bartolomeu para se identificar com as condições de trabalho dos açougueiros. Sua proteção era sempre bem vinda.
A situação dos aprendizes e jornaleiros entrosados com este ofício não diferia do contexto vivido em outros ofícios. Não jantavam a mesa do mestre e de sua família. Não eram tratados com gentileza. Dormiam nas dependências dos abatedouros. Comiam sobras, embora o trabalho com carne lhes permitisse alguma regalia proteica. Enfim, tudo servia para fixar a distância social de seu "patrão": o saber referente ao oficio, a obediência aos comandos do mestre, a dependência do aprendizado, o impedimento de participar das guildas. Mas as portas para escapar dessas condições não eram impossíveis de se destrancar. Novamente é Gervasse Rosser quem afirma que jornaleiros ou aprendizes já "titulados" podiam abrir pequenos abatedouros em nome de seus mestres, uma espécie de filial. Além disso, dois ou mais jornaleiros podiam constituir um tipo de confederação para reunir capital e abrir eles mesmos um abatedouro ou, "onde isto fosse proibido para não mestres, conseguir autorização para um deles comprar o ingresso na corporação de modo que os outros pudessem dividir seus privilégios por procuração". (ROSSER, 1997) Jornaleiros e aprendizes não raramente se organizavam em confrarias ou irmandades religiosas para evitar uma exploração desmedida dos mestres e também para contar com alguma proteção em situações de dificuldade. Tais confrarias recolhiam e administravam recursos financeiros que geralmente tinham emprego certo para socorrer seus associados, mas não é o caso de vermos tais organizações como proto-sindicais, embora elas fossem gestadas em meio à experiência de desigualdade econômica, social e política relativamente aos mestres. Não obstante esta imagem histórica bastante verdadeira, o que predominava na realidade deste ofício não eram mestres ajudados por aprendizes e jornaleiros. Pesavam majoritariamente no panorama histórico pré-industrial deste ofício milhares de açougueiros que trabalhavam sozinhos em suas bancas ou pequenas lojas (localizadas nas grandes cidades) e ocupando, quando muito, um aprendiz. A produção em escala industrial, baseada na divisão do trabalho, não foi um produto deste ofício e nem do seu tempo. Se pudéssemos nos referir a um retrato que mostrasse os principais traços constitutivos da produção e do comércio da carne no período pré-industrial europeu veríamos açougueiros avulsos, trabalhando em pequenas bancas, ora concentradas num mesmo local, ora dispersas pela cidade. Mas, reunidos ou espalhados, estes pequenos abatedouros necessitavam estar próximos do centro urbano, contar com água corrente e dispor de espaço para negociar e manter os rebanhos a serem abatidos. E bastante representativo desta realidade mercados de carne estabelecidos desde a baixa idade média e povoados de pequenas bancas e lojas de açougueiros. (MACLACHLAN, 2007) Mais do que em outros ofícios o conhecimento necessário à lida com a carne permanecia sob o domínio do mestre, com alguma divisão de trabalho e escassa transferência de saberes para jornaleiros e aprendizes. Além disso, as tecnologias e as técnicas relacionadas ao abate, ao esquartejamento e ao preparo da carne para a venda pouco mudaram durante os dez séculos que antecederam o XIX. Ao longo desse tempo os açougueiros sedimentaram seu ofício e seu lugar nas principais cidades da Europa, movimentando grandes quantidades de gado, porcos, ovelhas, e abastecendo de carne a população em condições de comprá-la. Como em qualquer outro ofício havia mestres melhor posicionados economicamente do que seus pares, mas sua importância social se revelava a partir de sua identidade expressa pelo trabalho, e tal identidade era basicamente cultivada e reproduzida nas guildas. (BLACK, 1984)
A rigor, as corporações de ofício não eram associações de natureza estritamente profissional, cujos objetivos se resumiam em regulamentar e fiscalizar o trabalho de modo a controlar o mercado a ele relacionado. Tais finalidades são bastante conhecidas, mas não traduzem completamente a função social e política que muitas corporações se viam investidas. Mais especificamente, pode-se dizer a este respeito que a identidade pela qual os açougueiros se projetavam era cunhada e nutrida na e a partir das corporações. As guildas funcionavam principalmente para chancelar determinadas relações de poder entre os açougueiros e seus subalternos, e entre os primeiros e o restante da sociedade estamental. De um ponto de vista geral, este tipo de relação encontrava respaldo porque estava internalizada profundamente nos próprios açougueiros e naqueles com os quais mantinham contato no cotidiano; e o reconhecimento desta simbologia particular era consensual. Assim, as corporações dos açougueiros cumpriram tanto a função de resguardar a autonomia do ofício aos mestres quanto de disseminar e sancionar (a priori) o respeito social pretendido pelos açougueiros. (BLACK, 1984) Pelo menos um fato importante decorre desta conjuntura histórica. O trabalho exercido pelos açougueiros era autônomo, controlado e organizado pelo próprio executante, o que em larga medida lhe garantia uma posição de independência frente ao complexo, intrincado e emaranhado mundo feudal. Isto repercutia no valor que os mestres atribuíam ao trabalho. Na maioria dos ofícios pode-se dizer que a satisfação advinha do trabalho (do domínio sobre o processo técnico e do prestígio derivado deste), e não da renda ou de alguma crença religiosa assentada no mérito econômico como garantia para a salvação eterna, mesmo que, do ponto de vista social e político, os mestres tivessem que negociar sua presença e seus privilégios com as autoridades situadas acima deles, quaisquer que fossem elas. Mas do ponto de vista econômico parte de seu trabalho não era devido por obrigação aos senhores feudais ou a Coroa do mesmo modo que as famílias camponesas se viam obrigadas a entregar parcela de sua produção aos seus suseranos. Esta zona de autonomia era bem mais ampla do que se costuma pensar. A imagem que Marx consagrou à base técnica da manufatura assentava-se neste monopólio do saber mantido sob a tutela e o controle dos mestres. Vez ou outra os limites de um ofício eram sentidos como ameaças pelas autoridades e testados, sem, contudo, serem corroídos ou cancelados, o que ratifica esta imagem: sua autonomia era um obstáculo também ao capitalismo, uma defesa "contra qualquer intrusão do capital mercantil, a única forma livre de capital" naquele tempo. (MARX, 1988) Enfim, ter efetivo domínio sobre seu trabalho constituía parte fundamental da existência dos mestres e, em menor grau, dos jornaleiros. Este movimento recorrente em toda a idade média europeia demonstra como as "artes" cruzaram séculos com nítida independência numa sociedade em que as relações de produção prevalecentes eram tipicamente feudais e fundavam-se na coerção e na dependência pessoal. Contudo, a partir do XVIII esta estabilidade ficaria cada vez mais comprometida porque a realização desse trabalho, antes absolutamente visível e exposta, passou a ser interpretada como ultrajante e repulsiva. Até então sua existência esteve enraizada e sintonizada com determinada estética e com costumes e padrões de higiene que tornavam sua presença não só tolerada como também normal. A pressão sobre esses costumes e padrões afetaria diretamente os açougueiros e seu trabalho. Junto com as cidades e os costumes, suas práticas seriam duramente atacadas e modificadas.