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5.3.1. A Vila Operária do Frigorífico Pioneiro/SADIA (1959-1979

sinais tímidos nas entrevistas – embora frequentes – que desorganizaram precisamente os pontos de vista dos entrevistados. A constância desses reclamos – externados de forma breve e intermitente – avaliza pensar que a memória desses trabalhadores não suprimiu lembranças negativas conectadas às experiências de trabalho no frigorífico da SADIA. E, devo ser claro, essa não é uma característica específica desses trabalhadores, senão um traço estruturante de narrativas que articulam uma determinada consciência da exploração do trabalho e da posição subalterna no contexto de relações sociais vividas à quente. O fato de essas lembranças aflorarem sem planejamento, com pouco ou nenhum cuidado, sem premeditação, as torna importantes para compreender o mundo do trabalho naquele frigorífico. Na verdade, no ato da entrevista, tais recordações não são sequer autorizadas. Seu aparecimento desestabiliza o sentido positivo da narrativa pretendido pelo entrevistado, exceto nos casos em que o cansaço resultante de tarefas duras e difíceis é apresentado como prova de uma ética e de uma moral ascéticas. Mas nesse caso não foi possível conferir as raízes desse comportamento que liga certos trabalhadores a algum tipo de recompensa devido ao trabalho realizado com diligência. Nesse ponto, para eles o cansaço ou os pequenos acidentes no trabalho são encarados como naturais, pois nesse ideário a dor e sofrimento atestam um vínculo positivo com o trabalho. Mas este não é um aspecto específico da cultura daqueles trabalhadores.

5.3.1. A Vila Operária do Frigorífico Pioneiro/SADIA (1959-1979)

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As primeiras casas que constituíram a Vila Operária do extinto Frigorífico Pioneiro em Toledo estão identificadas na imagem 5.

Imagem 8 – Frigorífico Pioneiro, 1959, Toledo-PR

Fonte: Museu de Toledo. Frigorífico Pioneiro de Toledo. 1959. 1. Planta produtiva do frigorífico; 2. Casas de madeira; 3. Estrada de acesso; 4. Propriedade rural.

Elas estavam separadas do frigorífico por uma via de acesso a planta produtiva. É possível visualizar nove casas enfileiras, mas certamente havia outras. Entrevistados falaram em mais de dez. Duas razões principais levaram os donos do frigorífico a construírem estas casas. Eles enfrentavam dificuldades para atrair e fixar trabalhadores com razoável conhecimento sobre a ocupação. Não encontraram pessoas bem treinadas e entrosadas com a totalidade do processo produtivo, e isso fez com que buscassem trabalhadores especializados no extremo Sul do país, onde o trabalho industrial com carne datava do início do século XX. Ao mesmo tempo, precisavam superar obstáculos à logística do deslocamento da força de trabalho sediada na cidade ou lugares relativamente distantes do frigorífico. Sob chuva, o trânsito de trabalhadores se tornava praticamente inviável. O absenteísmo também comprometia a produção. Colocar os trabalhadores e suas famílias dentro do domínio do frigorífico foi visto como uma solução eficiente. Cinco anos depois, a SADIA adquiriu o Frigorífico Pioneiro. Como disse, contaram a favor de Atílio Fontana, principalmente, a escassez de recursos financeiros dos acionistas para ampliar a planta produtiva, aumentar a produção e escoar os produtos beneficiados. As divergências internas dos acionistas salientaram posições de vender o frigorífico (o que talvez tenha sido feito sem prejuízo do capital investido) e de continuar o empreendimento com objetivo de expandi-lo. Ao que parece, o desfecho foi intermediário, pois a SADIA adquiriu parte das ações de modo que uma fração dos antigos proprietários permaneceram donos e no comando operacional do frigorífico. O que interessa neste ponto é a constituição de uma vila operária cuja dinâmica é alterada depois que a SADIA compra inteiramente o frigorífico Pioneiro. As casas construídas conjuntamente a planta produtiva desde 1959 foram progressivamente desativadas ou transferidas para área onde a Vila Operária se constituiria. A casa representada na imagem 6, construída em madeira, compôs o grupo inicial de casas de propriedade do frigorífico. Ela sobrevive há 70 anos. Ao seu lado havia outras três quando o registro fotográfico foi realizado em 2017.

Imagem 9 – Casa do Frigorífico Pioneiro, comprado pela SADIA

Fonte: Acervo de Gustavo Schneider. (SCHNEIDER, 2018) Casa de Madeira. Antiga Vila Operária. Atualmente Vila Pioneiro. 2017.

Imagens do frigorífico feitas em torno de 1969 evidenciam isso. De outro lado, a SADIA iniciou processo de assentamento de funcionários interessados em casas localizadas em terreno próximo ao frigorífico, conforme pode-se ver na imagem 7, na disposta na figura retangular ao fundo. Tratou-se de conjunto de casas construído com financiamento do BNH (Banco Nacional de Habitação) e apoio informal do frigorífico. Denominada de Vila Operária, era “um aglomerado de 300 casas em filas verticais e horizontais. No meio, um quadrado onde posteriormente foram construídas uma escola e uma praça. A vila era cercada por um matagal, por terras destinadas ao cultivo e também por outras habitações”. (FANO, 2018, p.77)

Imagem 10 – Vila Operária, 1979, Toledo-PR

Fonte: Museu de Toledo-PR

Em 1979 o conjunto contava com aproximadamente 300 casas, não somente de funcionários da SADIA. A primeira planta baixa elaborada para edificação dessas casas ficou sob responsabilidade da Imobiliária HABITASUL, grupo privado fundado em 1967, sediado no Rio Grande do Sul e especializado no planejamento de conjuntos habitacionais. A imagem 8 representa a planta baixa desenhada por esta empresa para acomodar trabalhadores, principalmente, funcionários da SADIA.

Imagem 11 – Planta Baixa da Vila Operária – Toledo-PR (1977)

Fonte: Acervo de Lucas Fano. (FANO, 2018)

Há dois pontos distintos, embora inseparáveis, que ajudam a entender a importância da Vila Operária para a SADIA em Toledo desde a aquisição do frigorífico Pioneiro: (i) a fixação de força de trabalho e de reserva de trabalhadores nas proximidades da planta produtiva e (ii) especulação imobiliária com a Vila Operária. Oferecer moradia aos trabalhadores é algo bastante funcional para a empresa. Como aspecto geral da política da SADIA, a exemplo do que ficou claro no caso da vila operária do Frirondon, o estabelecimento de vínculos duradouros, de compromissos diversos dos trabalhadores com o frigorífico, à época se mostrava como algo prioritário. A estabilização da força de trabalho não parecia coisa fácil. A habitação se alinhava no horizonte dos trabalhadores com grande peso de modo a contribuir na definição da lealdade, dedicação e identidade com a SADIA. Este foi o traço mais saliente das vilas operárias na história das empresas ao longo do século XX, onde houvesse escassez de trabalhadores, particularmente trabalhadores acostumados à disciplina do trabalho e os especialistas. O segundo ponto diz respeito à função da moradia, para trabalhadores e empresa. As entrevistas realizadas com funcionários aposentados que ingressaram na SADIA de Toledo na década de 1970 se assemelham ao que foi dito por trabalhadores que habitaram no mesmo período a vila operária ligada a Frirondon (vendida depois para Frimesa/Ruaro, 1969-1979, e Swift-Armour, 1979-1989) e Ceval (1989-1996), exposto no capítulo “A Vila Operária do Frigorífico Rondon (1963-1979)”. Olhando panoramicamente experiências inventariadas na historiografia de trabalhadores empregados em empresas com vila operárias, chega-se à conclusão que o ato de morar muito bastante tempo fundamentou entre eles e suas famílias um direito de posse sobre a casa. A aquisição das casas geralmente acontecia por litígio ou acordos de compra e venda ou ainda em desfechos específicos. Tão importante quanto isso

tornou-se a problematização da moradia como direito daqueles trabalhadores ao mesmo tempo em que era formatada pela empresa para ser uma mercadoria. Nesse caso, ela funcionava como elemento que fixava os trabalhadores à empresa. Como componente do capital ela barateava o preço da força de trabalho porque reduzia o absenteísmo, a rotatividade e permitia praticar um salário menor uma vez que a empresa mostrava a casa como uma compensação para os trabalhadores. Além disso, embora a SADIA não fosse proprietária das casas construídas com financiamento do BNH (operado pela Caixa Econômica Federal), a negociação para assentar trabalhadores nas proximidades da planta produtiva (a maior da região à época) poderia resultar em valores líquidos para a empresa. Tudo começou com a promessa feita na gestão municipal de 1962-64 de doação de terreno para o frigorífico Frigobrás (SADIA), ratificada na Lei n° 333, de 7 março de 1964. No dia 27 de outubro de 1976, o imóvel prometido, com área de 580.000m², foi registrado em nome da Frigobrás. No dia 29 de julho de 1977, por meio de Instrumento Particular de Aditamento, expedido pelo Banco de Desenvolvimento do Paraná, o terreno original é desmembrado em duas partes, 434.000m² e 146.800m². Ato contínuo, em 31 de janeiro de 1978, a Frigobrás vendeu a área de 146.800m² para Cooperativa Habitacional de Toledo, onde as casas que compuseram a vila operária foram construídas. (FANO, 2018, p.72-74) Ainda é possível encontrar casas originárias da época, com aproximadamente 40 anos e sem alterações. As imagens 9 e 10 referem-se a duas delas em condições visivelmente diferentes.

Imagem 12 – Casa Vila Operária 1979 Imagem 13 – Casa Vila Operária 1979

Fonte: Acervo Particular Gustavo Schneider (1918) Fonte: Acervo Particular Gustavo Schneider (1918)

A Vila Operária construída a partir de 1979 foi redesenhada ao longo dos últimos 20 anos pelos moradores. Atualmente, há poucas famílias que remanescem da SADIA e do loteamento inicial. As 300 casas edificadas à época compõem hoje a Vila Pioneira, o maior e mais populoso bairro da cidade. Não raro, residentes sem histórico relacionado a SADIA compraram casas desvalorizadas, as botaram abaixo e ergueram outras, maiores, mais confortáveis e alinhadas com os padrões estéticos atuais, ou então reformaram-nas de modo a apagar os antigos traços que homogeneizava a vila. Por sua vez, os trabalhadores ligados a SADIA que ainda moram no bairro (aposentados em número maior do que ativos) explicam que alteraram as plantas de suas casas

com pequenas mudanças para ampliar a área construída acrescentando ou modificando banheiros, quartos, salas, cozinhas e garagens, principalmente garagens. Relatam isso com orgulho. É uma expressão de acerto na vida. A garagem é mostrada como signo de conquista, pois nela se guarda um ou dois carros conseguidos com uma expectativa quase inexistente na década de 1970. É um sinal de vitória, igualmente a casa. Mas há trabalhadores que se mantiveram nas condições vividas nos anos 70, com a casa em seu tamanho costumeiro, sem garagem e sem carro. Não se trata de percursos erráticos. O sucesso narrado em algumas entrevistas parece ter sido interditado por fatores como família numerosa e renda baixa, doenças de familiares, nenhuma ética extremamente positiva do trabalho, nenhuma racionalidade que estimulasse alguma poupança mesmo que possível. Nesse caso, o entusiasmo com sua própria trajetória vinha em cores cansadas e tinha lugar no passado, quando a casa era nova, o corpo era jovem e poucos sinais antecipavam um envelhecimento desinquieto, desenganado, pobre e desgostoso. Esta descrição reflete a situação de Tostão e é oposta ao que foi apresentado por Chico. Por isso mesmo, alinhadas, ambas formam uma escala que não estimula padronizar um perfil de quem trabalhou na Sadia nos anos 70 e 80, principalmente. Os dois falaram de experiências comuns, experiências de classe porque enraizadas no processo de produção como força de trabalho, homens expropriados, criados de mais valia, dentro de um universo conceitual marxista bastante válido para identificar realidades definidas pela exploração e dominação sobre o trabalho. Francisco, na condição de supervisor, assumiu uma posição vista por ele de mediador, vista pelos trabalhadores de chefete. Uma dimensão dessa ambiguidade pode ser decifrada lidando com o lugar ocupado por ele na produção, como trabalhador, e sua posição de pertencimento ao cargo de supervisor e às relações de poder institucionalmente estabelecidas na empresa, particularmente no setor onde trabalhadores estavam sob seu comando. Nesse caso, pode não interessar a veracidade do que um e outro contaram acerca de suas vivências na Sadia e da constituição da vila operária, ou interessar menos do que as perspectivas históricas que cada um imprime as suas narrativas. As virtudes da empresa que ambos destacam são diferentes porque a experiência de trabalho foi vivida distintamente. De modo semelhante, as virtudes da vila operária assumem sentidos diferentes – e também antagônicos – porque um tem na casa uma evidência de seu próprio progresso financeiro e familiar. A ampliação de quartos, cozinha e garagem feita ao longo dos anos equivale simbolicamente a si mesmo. É o que Chico apontou em sua narrativa. Se a vila operária é parte importante da história dos trabalhadores, também o é da empresa. A estabilidade da força de trabalho foi, na leitura da Sadia de Toledo, fator operado por políticas de assistência (planos médico e odontológico, clube recreativo etc.) e pela vila operária durante os anos 80 e meados dos 90, como parte de uma intervenção de tipo paternalista. Não raras vezes, o principal diretor da Sadia foi mencionado pelos entrevistados como alguém interessado no bem-estar dos funcionários e de suas famílias, atendendo pequenos pedidos cotidianos como folgas para resolver casos pessoais. A presença e o diálogo do diretor com todos na linha de produção soldou elos de confianças entre eles. Novamente, do ponto de vista desta análise, não é relevante a veracidade de tal fato, mas a perspectiva que os entrevistados conferem a ele endossando a eficiência daquele tipo de gerência. Esta dinâmica deu lugar a abordagem impessoal, baseada em regras rígidas e administradas pelos setores de gerência (tipicamente panificada) e de recursos humanos, sem espaço para

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