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1. A carne como artefato cultural
PRIMEIRA PARTE
TRABALHO, TRABALHADORES, CONSUMO E SIGNIFICADOS DA CARNE NO OCIDENTE (XIII-XVIII)
1. A carne como artefato cultural
O objetivo deste capítulo é tão difícil quanto ocioso. Pretendo rastrear sensibilidades que marcaram a história da relação do homem com a carne. Ocorre que o material de pesquisa encontrado e utilizado se mostrou escasso. Ele foi apenas satisfatório para mapear e construir um limitado estado da arte a respeito do tema, o que geralmente é desejável na produção do conhecimento histórico. Por outro lado, a busca por percepções históricas de longa duração sobre os usos da carne no Ocidente possibilitou tornar as fontes consultadas suficientemente úteis para esclarecer os sentidos sociais e imaginários que os homens atribuíram à carne. E isso é importante para compará-los aos tempos atuais, quando a carne se tornou uma mercadoria. Para ajudar no expediente de escrever as páginas a seguir pode-se argumentar que conhecemos de antemão a configuração mercantil da carne. Sabemos que sua disseminação quase industrial data do século XIX, e que sua comercialização sistemática no Ocidente, em mercados locais e urbanos, remonta aos tempos de Elizabeth. Não vejo erro nesta formulação. Mas a mercantilização da carne à qual me refiro, capturou toda produção doméstica e a subordinou ao processamento industrial voltado ao mercado. E a partir deste ponto que tentei reafirmar a importância de alinhar outros modos de apropriação e de uso da carne antes da formação do capitalismo (e com ele a economia de mercado) para contrastar realidades históricas distintas. A utilidade disso poderá ser julgada neste e nos capítulos seguintes. Sabemos que o consumo de carne é antiguíssimo. Os registros arqueológicos da presença humana no planeta dão essa ideia. Na teoria darwiniana, quando nossos ancestrais desceram das árvores, sua dieta exclusivamente vegetariana tendeu a incorporar a carne. Essa história é tão curiosa quanto importante. Nômades, os homens do período anterior a 200 mil anos a.C. passaram a se alimentar de carne. Seu método consistia em aproveitar-se da carcaça de animais mortos que eventualmente encontravam pelo caminho. Eles agiam como abutres. Mas foi esse tipo de coleta que predominou no seu escasso cardápio. Comparativamente aos homens sedentários, os recursos e o planejamento dos nômades eram rudimentares. A evolução para o abate de animais, documentado por arqueólogos e antropólogos, deu-se no período até 40 mil anos a.C.. Esta mudança tornou-se possível com a formação de grupos sociais, ainda nômades. Já a criação de rebanhos foi algo mais recente. Ela pode ser datada do período da "pedra polida", a partir do décimo milênio. O sedentarismo também data dessa época, marcado pela criação da agricultura. (LOPES, 2012) A fauna, a qual o homem foi confrontado a 40 mil anos a.C., tornou-se sua presa. As técnicas e a tecnologia para a caça, toscas aos olhos modernos, permitiram a supremacia humana dentre os outros animais. Por óbvio não era tarefa fácil abater animais com 10 vezes o peso de seu caçador, como cavalos, bisões e mamutes. Mas os instrumentos que prolongaram a perícia dos homens, como as lanças, deram-lhes, cada vez mais, vantagens que compensaram
sua inferioridade física. De maneira pouco romântica, o homem transformou toda a natureza em seu matadouro. O nascimento da agricultura e o domínio sobre as sementes foram realizações extraordinárias. Todavia, não retiraram a carne de cena. Ao contrário, o tempo empregado na agricultura transformou a carne num artigo de luxo, mesmo depois de muitos animais serem domesticados e convertidos na principal fonte e reserva de proteínas. Esta é uma equação difícil de ser mapeada no tempo. Mas ela não impede afirmar que desde então o homem conseguira introduzir a carne em seu mundo. Embora haja maior densidade e detalhamento nessa história, seus traços gerais são suficientes para compreender a interação inicial do homem com a carne e os desdobramentos que nos levaria até a Antiguidade Clássica. Por isso, o que também interessa nesse arranque da civilização são os costumes em relação à carne, e isso nos conduz de volta ao "homem das cavernas" Os registros pictórios, encontrados em diversos lugares do planeta com idade aproximada de 40 mil anos a.C., retratam, principalmente, animais. As principais explicações da arqueologia indicam duas razões para isso. A primeira, expressa a superioridade do homem frente aos animais caçados e mortos para servir de alimento. A complexidade dessa representação reside em narrativas curtas, desenhadas em superfícies lisas no interior de cavernas ou em pedras expostas. Em geral, essas narrativas apresentavam um enredo comum, assentado ou referido ao próprio homem. Significa que, embora as histórias gravadas em pedras espelhassem majoritariamente animais, a intenção manifestada naquela linguagem projetava uma visão do homem sobre si mesmo, expressão de uma concepção mágica sobre o mundo – que pode ser interpretada como religiosa. Nesse caso, a grandiosidade impressa em telas incontestavelmente duráveis pretendia comunicar seu poder naquele contexto, representado na força de bizontes e mamutes, por exemplo. O animal desenhado podia significar uma força apreciada ou temida culturalmente pelo homem (por exemplo, a coincidência do formato do animal com determinada constelação que tivesse alguma finalidade, como um calendário). Mas, ao elogiar a ferocidade, a força, o tamanho e a eventual funcionalidade dos animais, tais homens projetavam seu próprio poder. Não à toa, grande parte dessas pinturas exibia um cenário para o abate. Por isso, a caça deve ser tomada como evento histórico importante no contexto da relação do homem com a natureza e de um maior domínio sobre o fornecimento de carne. Do mesmo modo, a intervenção planejada do homem para conseguir carne, urdindo estratégias de observação e de captura de animais, deve ser interpretado como uma prática cultural sofisticada. Esse é um retrato do matadouro "pré-histórico". A segunda razão repousa na sacralização de animais, algo que dominaria a maioria das culturas do Ocidente até, pelo menos, os tempos de Ovídio. No antigo testamento há relatos inteiros sobre a adoração de animais. Tais narrativas situam essa prática religiosa em torno do século VI a.C.. Ainda na Grécia e Roma antigas, cultos domésticos envolviam sacrifícios, geralmente banquetes, onde a carne era o prato principal. Depois de preparados, os alimentos eram dispostos num altar e devorados como parte de um ritual para conectar-se com as divindades. Em qualquer situação, com pequenas variações, o principal efeito da ingestão de carne, além de satisfazer a fome, residia nalgum tipo de transferência de características dos