Sob os comandos da aristocracia, Arcimboldo copiava bustos costurando-os com vegetais e carne. Suas telas representavam generosas baguetes. Ao mesmo tempo não eram meras retratações da natureza. Rosalie Nardelli afirma que seus retratos refletiam imagens montadas, como um quebra-cabeças. (NARDELLI, 2014, p.65) Mas se tratava de uma construção complexa de bustos a partir de alimentos, principalmente, cuja função os aristocratas determinavam. Tal protagonismo foi também uma forma de expressar a subalternidade dos camponeses. A chave analítica dessa desigualdade residia na apropriação desproporcional dos alimentos entre a nobreza e os camponeses. Arcimboldo sabia representar essa distância. Embora cada imagem composta guardasse significados específicos, o conjunto dos retratos confirmava à nobreza e ao campesinato qual era a ordem social naquela sociedade.
3. A mentalidade cristã e os significados da carne Fechamos parte do primeiro argumento. Até a Baixa Idade Média, a carne (e os demais alimentos em segundo plano) definia parte importante da fronteira entre ricos e pobres. Ao lado dessa leitura, existiu outro tipo de consumo de carne cuja historicidade e justificativa assentavam-se numa representação que se tornou tabu. O canibalismo não foi um costume estranho a muitas culturas. (WELLS, 1969) Existem sinais arqueológicos dessa prática em quase todas as partes do globo. Desse ponto em diante, a formação do imaginário cristão, contrário a muitas práticas consideradas pagãs, toma uma forma vigorosa. Sabe-se que parte volumosa da Bíblia e da liturgia cristã se constituiu da cultura de religiões politeístas e de povos pagãos aos olhos da Igreja Católica. Nesse sentido, é curiosa a estratégia cristã para se diferenciar de outras crenças religiosas, por meio das armas ou da ideologia. O evangelho de João é o mais claro locutor dessa operação e o primeiro a formalizar o mais popular dos ritos cristãos, a transubstanciação. Inicialmente, a oficialização dessa prática dependeu da chancela do Concílio de Trento, em 1215, sendo disseminada para os fieis a partir do ano de 1264, através da festa de Corpus Christ. A rigor, escapando de leituras canônicas e de exegetas, a prática inaugurada na Santa Ceia instituiu características de um canibalismo simbólico, cuja função foi, junto ao batismo, iniciar pessoas no cristianismo e reforçar suas convicções — sua fé — no carisma de Jesus, rotinizado e institucionalizado na Igreja. Cabe lembrar que essa foi uma equação de difícil solução. O patrimônio político de Jesus (qualquer que fosse ele) não foi automaticamente transferido e institucionalizado. Inicialmente, tornou-se necessário construir rituais e uma instituição para reivindicar a autoridade de Jesus e sua natureza mágica. Parte central da doutrina e dos rituais que constituiu a Igreja foi assentada na crença da transubstanciação. Assim, surgiu a convicção de que Jesus nasceu e renasceu, e depois de sua morte terrena transformou-se em alimento para os cristãos. E uma história conhecida e banal, embora sutilmente recuse o canibalismo como parte de sua estrutura e enredo histórico. Talvez João tenha se apropriado de uma prática pagã para incorporá-la ao universo mental dos recém convertidos ao cristianismo. É uma hipótese razoável e bastante explorada, uma vez que a institucionalização do carisma de Jesus necessitava histórias com verdades palpáveis,
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