Uma história dos trabalhadores nos frigoríficos: regimes fabris e vilas operárias

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animais para o homem (COULANGES, 2002) Enfim, nesse caso as evidências são numerosas. Interpretá-las em favor do tema desse livro é tarefa diferente. O culto ao fogo, tão comum em lares de gregos e de romanos, ligava problemas terrenos a soluções sobrenaturais. Sobre isso, Fustel de Coulanges afirmou que, no tempo de Tulcídides, mantinha-se o fogo constantemente aceso nas casas, sob a crença de que havia nele proteção para a família. Extinto, ele traria grande desgraça para todos. (COULANGES, 2002, p.23-36) Freud acrescentou que a conexão do fogo com o sagrado remonta a épocas antiguíssimas. A interpretação psicanalítica traduziu o fogo, ou melhor, o domínio humano sobre ele - como a primeira grande conquista da civilização a partir do ato masculino de tirarlhe a força com um jato de urina, um dos princípios do prazer não reprimido. Uma linguagem materialista diria, com convicção, que a graça do fogo estaria em seu uso, um dos meios de produção mais antigos que conhecemos. Nesse caso, pode-se pensar o consumo de carne processada no calor do fogo. De fato, todas as interpretações anteriores estão corretas, se olhadas à luz desse pragmatismo material. Ao mesmo tempo, o aprisionamento e domesticação de animais se disseminaram rapidamente. Isso não aconteceu com o objetivo primordial de abastecer seus criadores. A vaca, por exemplo, poderia valer mais pelo leite que produzia. O abate precoce liquidava o processamento artesanal do leite em queijos, manteiga, soro e nata. Nas civilizações baseadas no trigo, os derivados do leite empatavam em importância na composição da dieta. Coisa semelhante acontecia com a lã das ovelhas e os ovos das galinhas. Já os porcos, estes sim, eram criados para o abate. Embora a carne fosse crescentemente incorporada à dieta a partir da criação de rebanhos, a caça não foi abandonada nem se tornou uma prática incomum. Até o século XIX, os direitos à caça eram transversais e confusos na sua relação com as diferentes ordens, castas e classes sociais. Em que pese ser um exemplo tardio - sobre o século XVIII - Edward Thompson ofereceu um rico quadro das práticas de caça na Inglaterra e da criminalização de práticas e costumes fundamentais à sobrevivência dos mais pobres. Como ele mesmo avaliou, os ventos que sopravam eram ruins para os trabalhadores e não traziam nada de bom. (THOMPSON, 1987) Grosso modo, entre o ano 1000 e o período histórico coberto por Thompson, não deve escapar à atenção a distância que separava os interesses da aristocracia e dos plebeus quando caçavam em terras comunais. Os primeiros buscavam diversão e prazer, mais do que alimento. Os segundos se viam obrigados, devido a sua pobreza e escassez de mantimentos, a procurar se abastecerem de carne por meio daquela prática social. Se havia entre eles o gosto pelo entretenimento, não era isso que, basicamente, os movia. Tal distinção se explica pela desigualdade econômica que os separava, a qual possibilitava a privatização de recursos naturais como a terra.

2. Apropriação da Carne e Desigualdade Social A característica da política que separa trabalhadores e nobreza é estrutural. A condição da maioria dos trabalhadores, do campo e da cidade, nunca esteve próxima da condição vivida pela nobreza. E um tipo de estabilidade que atravessou séculos sem riscos mais sérios. A partir

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