Uma história dos trabalhadores nos frigoríficos: regimes fabris e vilas operárias

Page 116

pequenos arranjos e ajustes. Onde houve oportunidade para pautar esta mudança, os entrevistados a avaliaram negativamente, incluindo aqueles mais afetos a empresa. Os fios que os amarravam a Sadia foram tecidos antes da introdução e desenvolvimento da cultura das novas relações capitalistas de trabalho flexibilizadas, cuja funcionalidade, do ponto de vista dos entrevistados, se fundou num tipo extremo de impessoalidade que lhes causou grande mal-estar. Chegamos ao ponto de afirmar que a memória desses trabalhadores guarda um saudosismo do tempo trabalhado na Sadia. Ele foi marcado por práticas paternalistas viabilizada e encarnada pelo diretor da empresa que atuava cotidianamente na linha de produção, conversando pessoalmente com os funcionários, ouvindo-os a respeito do trabalho, tratando-os por nomes próprios e, nalguns casos, entrosado com problemas familiares que pode ajudar a resolver com pequenas concessões na jornada de trabalho. Pequenas oficinas e fabriquetas na cidade eram e são acostumadas com essas práticas. Empresas pequenas tendem a operar com grandes níveis de impessoalidade este é um dos elementos importantes que vinculam trabalhadores à ocupação por longa duração e também constitui vigorosos e recíprocos compromissos. Visto bem de perto, tudo isso pode não resistir a análise paciente e criteriosa porque, seja na casa construída na vila operária, comprada conforme regras do mercado financeiro, seja no exercício da ocupação no frigorífico, ambas integram a lógica histórica de acumulação do capital que exige dominação e exploração do trabalho, com comedida ou desmedida coerção. Esta é uma verdade histórica que, quando discutida abertamente com os trabalhadores, não foi negada. Mas, deixados livres às próprias iniciativas de fala, as narrativas se concentraram noutros pontos conectados a experiência partilhada e considerada virtuosa de trabalhar na Sadia e receber o interesse, sincero ou não, do patrão. A casa e a vila compõem esta memória. Cada uma delas guarda uma dimensão importante da história desses trabalhadores

5.4. Quando o trabalho mata Durante pesquisa nos autos criminais da Comarca de Toledo relacionada a projeto sobre suicídios ocorridos na região havia lá um inquérito policial de 1971 aberto para apurar morte de um trabalhador no frigorífico da Sadia. A documentação judicial acerca do trabalho nos frigoríficos, particularmente os de abate de frango, é de natureza trabalhista e tem sido investigada por criteriosos pesquisadores e razoavelmente divulgada. O inquérito de 1971 trouxe informações diferentes porque sua prioridade não foi descrever diretamente o universo dos direitos do trabalho e seus litígios. Mesmo assim, sua forma indisfarçada de tratar uma morte no local de trabalho revelou pontos de vista e práticas do capital sobre os trabalhadores àquela época. Revelou também qual seria o terreno e os limites para os trabalhadores manobrarem seus interesses e compreensão da realidade. Metodologicamente, considerei este documento no contexto dos diferentes relatos que o compuseram e o informaram9. Assim, pude examinar a história propriamente dita do documento e das narrativas nele presentes, particularmente com o interesse e foco na dimensão das relações e das condições de trabalho no frigorífico. A natureza forense do 9

As datas e os nomes dos envolvidos no Inquérito foram alterados com o objetivo de resguardar as respectivas identidades.

115


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
Uma história dos trabalhadores nos frigoríficos: regimes fabris e vilas operárias by Carlos Lucena - Issuu