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Morro da Catraca

CONTOS AO ENTARDECER

Morro da Catraca, segunda-feira, duas da tarde. A rua, apinhada de gente indo e vindo, com seu comércio celebrando suas vendas, com a mulher que puxava a orelha do filho, só porque ele deu uma pequena vacilada ao atravessar a faixa de pedestres, com o “Seu Zé do Picolé” e seu conhecido brado disputando decibéis com os já barulhentos carros e ônibus... A Rua Central soletrava normalidade, um dia a mais no cotidiano dos moradores da favela. Aliás, uma favela que deixara há muito a violência e, com ela, seus principais autores.

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O “Catracão”, como era conhecido o morro naqueles tempos, convivia com a mais triste estatística de mortes por dia no país. Houve meses em que a média de assassinatos chegava a 6,4 por dia. Isso são mais de 180 mortos no final do mês. Gente de todo lado da cidade: adolescentes, adultos, heterossexuais, homossexuais, 3ª idade, brancos, negros e, vez ou outra, crianças. Morriam por motivos diversos, mas, sempre ligados ao tráfico de drogas e, na maioria das vezes, porque não pagavam sua dívidas, especialmente, os adolescentes estudantes. Às vezes, por causa de míseros vinte reais. Eram levados para o “morrinho”, uma espécie de mirante do Morro da Catraca, onde eram executados a tiros ou queimados. A realidade passada do nosso morro é algo de se ter muita vergonha. Ainda bem que tudo isso mudou. Até agora.

Como uma tempestade que chega de repente, a normalidade seria quebrada. Um trovão, que pareceu surgir das profundezas da terra e fez tremer levemente o chão, lançou pessoas ao ar, que caíram já em pedaços. Desse trovão, que foi resultado da explosão de uma bomba caseira, seguiram-se tiros que partiam de todos os lados. O que fiz foi me abaixar e me esconder rapidamente por trás de alguns barris que, por minha sorte, estavam cheios de areia. Dali, eu contemplava o horror. Pessoas caíam pelas balas que as atingiam, em meio a outras que corriam sem qualquer norte, dependendo só da sorte. E, esta, pelo jeito, não estava muito a fim de ficar por ali.

MOZART J. FIALHO

A mulher, que antes puxara a orelha do filho para ele prestar mais atenção ao trânsito, agora clamava por ele, ao lado daquele pequeno corpo, já inerte e banhado pelo seu sangue. Ela, com sua roupa avermelhada pelo que antes corria nas veias de seu filho, berrava e pedia a Deus para trazer seu filhinho de volta. Mas, seu brado já era em vão. Mais um pouco, seria também silenciado por outra bala certeira na cabeça. Seu Zé, o mesmo do picolé, jazia curvado sobre seu carrinho, que o amparou e não o deixou cair no chão. “Meu companheiro, até eu ir dessa vida, meu filho...”, costumava dizer o picolezeiro em relação ao seu carrinho amarelo.

Quando olhei para o lado oposto da rua, vi o rosto mais lindo que Deus já fez. Como se eu estivesse usando uma poderosa lente de aproximação, vi que seus olhos derramavam lágrimas, pelo desespero que ela sentia, naquele instante. Elisa, seu nome. A jovem mulher por quem meu coração batia mais forte. Ela estava agachada, com seu corpo espremido contra um muro, e seus sensíveis braços tentando, logicamente, em vão, protegê-la contra as balas. Num acesso de heroísmo misturado a loucura, creio eu, saí em disparada na direção de Elisa. Eu tinha que resgatá-la, tirá-la daquele lugar, onde morrer era questão de segundos. Tudo à minha volta, desde o momento em que saí correndo por detrás do barril, passava em ultra câmara-lenta. Enquanto corria, eu podia ver tudo o que acontecia, parecia que podia ver até mesmo alguns projéteis atravessando meu caminho, ou acertando o corpo de outrem que também corria em desespero. Eu podia ouvir o estrondo de seus corpos ao baterem contra o solo. Eu podia sentir a carne de cada um deles sendo rasgada e queimada pela bala veloz. Mas, o rosto de Elisa estava ali, cada vez mais perto, mas ainda sem notar que eu corria em sua direção, a fim de salvá-la. Gritei pelo seu nome: - Eliiisaaaaaaaaa... E mais uma vez, e outra. Assim que ela me viu, a uns quinze, vinte metros dela, levantou-se com um sorriso sem graça, mas de alívio, espremendo seu rosto com as duas mãos, em sinal de completo temor. Vi, porém, quando seus olhos se abriram como nunca, sendo recheados por um vermelho amedrontador,

CONTOS AO ENTARDECER e seu grito cessou como se tivessem desligado o interruptor de uma lâmpada. Vi, com meu coração sendo queimado pela desesperança, quando o corpo de Elisa desmontou naquele mesmo canto onde ela se protegia há poucos segundos. A bala de um AK-47 atravessou-lhe o crânio, exatamente naquele instante em que ela iria me abraçar, e acabou com tudo o que havíamos planejado para nossas vidas. Eu e ela, Elisa e eu. Íamos nos casar dentro de uma semana.

De repente, os tiros cessaram. O que se podia ouvir eram gritos, gemidos de dor e, pela primeira vez em um período de 10 minutos (que pareceram 10 anos), as sirenes de ambulâncias e patrulhas policiais. A tranqüilidade era tão reinante no Catraca, que a polícia não mandava mais tantos efetivos. Naquela rua, por exemplo, haviam somente dois policiais, que também foram mortos. Aliás, os primeiros a serem acertados, assim que os tiros começaram.

Eu, agachado ao lado do corpo de minha noiva, não conseguia mais chorar. Minhas lágrimas haviam secado por algum motivo. Mas, a dor que meu coração sustentava era imensa e incapaz de ser descrita. Eu segurava Elisa, ou o que restou dela na Terra, pela sua cabeça, ornamentada por um buraco que permitia atravessar facilmente um cano de ¾ de polegada, de um lado ao outro. Em seus olhos, ainda abertos, pude ver as últimas cenas que ela mesma assistira e sentir a esperança que ela tivera, naqueles últimos e indesejados segundos.

Agora, o único sentimento que me persegue é o da impotência. Não há nada pior nesse mundo do que nos sentirmos e sermos incapazes de resolver um problema, especialmente, se esse problema envolve a morte de quem você ama. A violência vem por nada, ela é gratuita. E não importa o que estejamos fazendo, ou onde estamos. Enquanto somos vulneráveis e volúveis, a violência é astuta: se hoje somos vítimas dela, amanhã poderemos estar defendendo-a. Eu gostaria muito que tudo isso tivesse fim.

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