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Denso

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A Lama do Lerdo

A Lama do Lerdo

CONTOS AO ENTARDECER

Abriu seus olhos e não conseguiu enxergar na escuridão. Por um instante, pensou estar cego. Passou as mãos pelos olhos e pôde ver algumas silhuetas, agora indecifráveis. Aos poucos, recobrando sua consciência e seu estado físico saindo da inércia e da anestesia, percebeu estar acordando de um pesadelo, sentindo uma dor latejante em seu corpo. Vôo 133, com escala em Cuiabá. Mas, a escala ainda não havia sido feita. Nem seria.

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Tentou levantar-se de onde estava, mas, sua perna esquerda latejou com a dor violenta que sentira. Seus gritos ecoaram vívida e solitariamente por entre rochas, corpos, destroços e árvores. Com as mãos, pressionou a perna de osso exposto na altura do joelho. Sangrava muito, além da dor lancinante. Com sofrido esforço, empurrava a poltrona do passageiro-cadáver sobre sua outra perna, prendendo-a com o peso. Não havia como tirar os olhos da cabeça estourada e dos miolos que se punham além do crânio do colega de corredor. Jamais vira aquele senhor em toda a sua vida. E, agora, a única vez que podia contar com uma força extra, o que havia era um corpo dilacerado e inútil ao seu lado e sobre sua perna. Num movimento de giro para pegar um pedaço de ferro ao seu lado, sentiu que a perna esquerda reclamou, resultando na amplificação da dor, que já estava quase insuportável. Gritou e amaldiçoou tudo o que conhecia em sua pacata vida, enquanto deixava a parte superior de seu corpo cair meio que de lado e segurando firmemente com as mãos a altura do joelho esquerdo.

Não podia desistir agora. Tentou mais uma vez, desta, com calma, pegar a barra de ferro ao seu lado. Esticava o corpo e, quanto mais o fazia, mais sentia sua perna latejar em dor fulminante. Não conseguia usar os dois braços, porque um deles dava-lhe apoio para não se cortar nos estilhaços da fuselagem. Esticava-se ao máximo, mesmo com todo o seu corpo e, principalmente, sua perna esquerda, que ardia como se estivesse em fogo. Antes que as lágrimas lhe escorressem, pegou no chão outro pedaço da fuselagem e usou como uma extensão de seu braço: assim, conseguiu trazer a barra de ferro para

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mais próximo, pegando-a.

Usando a barra de ferro como um suporte, conseguiu levantar, sob toda a força que ainda lhe restava, e mesmo que pouco, a poltrona com o cadáver que sangrava pelo crânio. Foi o suficiente para tirar sua perna presa. Agora, não mais precisava ficar ali sentado. Podia conseguir ajuda e ver se havia mais alguém por perto.

Lentamente, agonizante e ainda atordoado, arrastava-se por entre e sobre os destroços e corpos mutilados. Nada ouvia, a não ser os ruídos da mata fechada e de alguns animais noturnos. Não podia divisar qualquer movimento, a não ser o seu próprio. Pelo menos, isso. O que mais causava desespero, no momento, era ter quase a certeza de ter sido o único a sobreviver naquela tragédia.

O odor fétido de carne queimada e sangue pairava no ar e invadia ardentemente suas narinas. Gases, vapor e querosene também se faziam presentes em odor forte e estonteante. Às vezes, arrastando-se como uma serpente machucada por pedra, afastava de seu caminho pedaços de carne humana que jaziam no chão, à espera dos pre-

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CONTOS AO ENTARDECER dadores. Seria também uma vítima, se não conseguisse sair dali tão logo quanto possível.

Sentiu, mais uma vez, a perna arder em fogo, tamanha fora a dor daquele instante. Seu grito ecoou inutilmente pela floresta adentro, ouvido somente pelos seres que ali habitam. Com muito esforço e pouca força, virou seu corpo, ficando de costas para baixo e conseguiu sentar-se, apoiando-se com os braços. Ao olhar para sua perna esquerda, o desespero tomou ainda mais o lugar de sua esperança: um pedaço pontudo da fuselagem cortara a pele e a carne no mesmo local da ferida provocada pela fratura. A dor já era tanta, que no lugar de doer, coçava. Aproximava sua mão do machucado para tentar amenizar aquela agonia, mas, não tinha coragem. Suas lágrimas desciam copiosas, enquanto suas mãos tremiam por não poderem ajudar.

Dos mais de noventa corpos esparramados pelo chão e que muitos se via dali, saíam figuras esfumaçadas, semitransparentes e brilhando fracamente. Aquelas figuras fantasmagóricas levitavam saindo daquelas dezenas de corpos inertes e mutilados. Subiam lentamente até certa altura, para, em seguida, dissolverem-se no ar. A morte rondara e satisfeita fora embora dali, deixando-o só, como testemunha da sua impiedade.

O tempo parecia não passar. A sensação era de que há horas tinha rasgado sua perna, mas, além de ainda sangrar muito na ferida, a marca do arraste de seu corpo no chão desde então não passava de metro e meio. O desespero e a desesperança eram, agora, companheiros íntimos da agonia e da dor que sentia. A saliva descia grossa e avermelhada pelo canto de sua boca. Seu rosto, sujo de terra e sangue, era a mais pura expressão da morte ainda viva. Seus olhos faziam movimentos para todos os lados, como se fossem – e eram – os únicos sentidos ainda com capacidade para ajudar em seu raciocínio. O problema era que ainda estava escuro e nada se via além de poucos metros à frente.

MOZART J. FIALHO

A sede tomou-lhe o organismo ressecado. De onde estava, tentava enxergar algo que se parecesse com uma garrafa. Sabia ser inútil toda aquela tentativa, pois estava fraco demais para continuar além de seu lugar atual. Não mais suportando, deixou-se cair, sem perceber, contudo, que sua cabeça encostara-se no peito de um cadáver atrás de si. Desmaiou.

A primeira claridade da manhã bateu suavemente em suas pálpebras sujas, que se abriram lentas, revelando a vermelhidão dos olhos. O raio de sol, ao contrário dos dias normais em seu sítio, perturbava suas vistas como nunca. O odor de carne e sangue estava ainda mais forte e, sabia ele, se não saísse dali até o final da tarde, estaria em meio a um antro de urubus famintos. Eles não perdoam, devoram tudo o que está apodrecendo.

Aos poucos, sua perna saía da dormência do frio. A dor voltara pior do que no dia anterior e sua respiração já não dava conta de encher seus pulmões. O coração entrou em taquicardia, descontrolado não só pelo seu estado físico, como emocional. Tentou arrastar-se com o máximo de seu esforço, mas, o máximo que conseguia era avançar poucos centímetros a cada tentativa. Mas, tinha que sair dali. Tinha que ter um jeito de sair do meio daquele cemitério de superfície.

Em certo momento, ao esforçar-se para arrastar seu corpo torturado pelos machucados, pôde sentir algo molhado em sua mão. Levantou a cabeça para frente e olhou o que segurava: o pedaço da cabeça de alguém, ainda com um dos olhos saltando para fora da cavidade, a parte superior do nariz e metade esquerda da testa e do crânio. Com o susto, a ânsia de vômito. Tossiu por três vezes, mas não

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CONTOS AO ENTARDECER chegou a deixar escapar. Esfregou sua mão suja na calça, ao mesmo tempo em que sentiu vergonha por ter feito isso. Sentiu-se como que desrespeitando o morto. Conseguiu tirar o pedaço da cabeça de seu caminho e continuou, lenta e agonizantemente, a se arrastar.

Sua pele ardia nos locais onde havia queimadura. Palpite arriscado, diria ser de segundo grau. A dor que sentia na perna, no entanto, era tão mais violenta, que cobria quaisquer outras dores que seu corpo podia sentir.

Mas, dor maior passava a sentir a partir de agora. Não havia ainda pensado em sua família. Suas filhas, sua esposa, seus pais, seus amigos... A esta altura, todos já deviam estar sabendo da tragédia. Como estariam se sentindo? Será que estavam com esperanças de encontrar alguém vivo? Será que conseguiriam encontrar o avião? Será que já sabiam da queda? Dúvidas pairavam em sua cabeça já completamente enleada e, quanto mais pensava nisso, maior era a sensação de que sua família e amigos estavam mesmo sofrendo. Não podiam imaginar, talvez, sequer esperar, que ele estivesse ou fosse encontrado vivo. Ninguém fazia a mínima idéia de que estava, sim, num estado de quase-morto, dadas as condições físicas e psicológicas em que se encontrava ali, no meio daquelas árvores, corpos e pedaços da aeronave, tudo destroçado pelo desastre.

Esperança. E esta, que sempre é a última a morrer? Será que já não teria ido? Daria tudo para que ela substituísse a dor que, agora, espalhara-se pelo corpo todo, deixando-o completamente inerte no chão, sem conseguir mover um só dedo. Sua

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MOZART J. FIALHO respiração, cada vez mais curta, não permitia que seus olhos enxergassem além de alguns palmos à sua frente, muito menos, pedir por socorro. A sede também tomara conta de seu organismo debilitado e a hemorragia aumentara desde sua última parada. Pôde ouvir, no silêncio que ora habitava a floresta, a voz de sua filha mais velha cantando no coral da escola. Vinha de longe, mas, era doce e lhe transmitiu serenidade por alguns instantes. Sua filha mais nova apenas lhe sorria, numa expressão que mais parecia um afago do que um simples sorriso. Sentiu-se confortado com isso. O beijo de sua esposa acariciou-lhe os lábios ressecados, e isso lhe tirou um pouco da sede. As mãos carinhosas de sua mãe afagaram-lhe os cabelos, enquanto as palavras de seu pai o transmitiam coragem. Em sua voz interior, gritou para os amigos, pedindo para que não deixassem nunca de tomar a cerveja de sexta-feira...

Ao longe, ruídos estranhamente conhecidos. Pareciam aproximar-se e, tudo o que pôde perceber, antes de fechar seus olhos, é que se tratava de helicópteros. Helicópteros de resgate... Agora, não adianta muito. E, para o mundo, se fechou.

Postado em 22 Junho 2007 por Mozart J. Fialho

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