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O Destino de Quon

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CONTOS AO ENTARDECER

Ano 1294 d.C. O mês de agosto sempre foi muito favorável a tufões nos mares do Japão. De qualquer forma, o comandante Kublai Khan, da Armada Mongolia, tinha um objetivo obsessivo: a tomada do Japão.

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Com a família faminta, não viu outra maneira de conseguir algumas pratas para alimentá-los. Família está em primeiro lugar, não importa a sociedade onde se vive. Da proa da embarcação, ele tinha, por um lado, um horizonte de água e nuvens ao longe, num lugar quase onde as vistas não alcançam mais. Atrás de si, num barco de 35 x 9 mts, 56 homens fétidos, bravos guerreiros, mas barulhentos, beberrões, brigões e, como ele, desesperados por algumas pratas. Ladeando e seguindo a embarcação na qual ele se encontrava, a frota era composta por outras dezenas, algumas menores, outras do mesmo tamanho, que seguiam firme, a fim de alcançar terras novas para conquistar. Nada podia ser tão fácil e promissor. Essa frota recebera o nome de Kamicaze.

Essa manhã ele havia avistado um grupo de 3 baleias. Pela sua pouca vivência no meio marítimo, concluiu que elas eram orcas, dos animais mais temidos dos oceanos. As cores preta e branca, bem divididas no corpanzil quase cilíndrico daquele peixe, e os olhos “mascarados” são inconfundíveis na hora de se identificar uma baleia orca. Ele sonhava em sair um dia para pescar com seu tio, tido como Mingzhi Cūn, ou o “sábio da aldeia”, em Chun. Baleias estavam entre os animais que ele sonhava em tirar do mar.

A tarde havia sido tranquila, apesar de, antes do pôr-do-sol, terem avistado uma grande faixa escura no horizonte, sinalizando muita chuva ou, até mesmo, uma grande tempestade. Mas, estava longe, não poderia atingi-los – e o vento estava contrário. Ah, o vento... esse ser que não podemos muito confiar. Isso passou pela cabeça de Quon, mas ele evitou pensar sobre isso.

A noite em alto-mar é linda. Quon sempre gostou de olhar para o céu noturno e admirar aqueles pontinhos brilhantes, que na aldeia

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eles chamavam de Liàngdù Diǎn. Agora, o admirava só, sentado na ponta da proa, e fumando uma erva que seu povo costumava fumar, ao anoitecer. Pensava na família, em sua mulher, a pequena Li Quon, que estava à espera do primeiro filho deles. Mas, agora, tão longe, o que lhe restava era mesmo pensar no que iria fazer, não no que havia deixado para trás. A família, em breve, ele reveria. Mas, o que importava era o que estava por vir, que lhe exigiria coragem, força e lealdade ao comandante Kublai Khan, neto do eterno Rei Genghis Khan: iriam conquistar novas terras e expandir o reinado de Khan, a quem os súditos adoravam. A noite estava bela e parecia prometer o raiar de um dia cheio de vitórias. Pelo que o capitão falou mais cedo, estariam em águas nipônicas no meio do dia seguinte.

Os homens de Khan acordaram cedo, exceto dois deles, que passaram a noite em claro, em vigília. Quon foi um deles. Antes que o sol raiasse, porém, obtiveram liberação para irem descansar por algum tempo. Mas, deveriam estar em pé antes do almoço, servido pouco depois que o sol estivesse no ângulo de 45º em relação ao nível do mar. Em comparação aos dias atuais, isso seria mais ou menos 09h30 da manhã.

O mar estava mais agitado, naquela manhã. A mancha escura que viram no dia anterior não havia sumido no horizonte, pelo contrá-

CONTOS AO ENTARDECER rio, parecia ter aumentado. Mas, pelo pouco que conhecia sobre isso, sabia que ela estava, na verdade, se aproximando deles. Tentou dormir o pouco de tempo que tinha, mesmo com o balanço insistente e irregular do barco, que parecia também aumentar a cada onda.

De toda a tropa de Kublai Khan, que somavam 140 mil homens, não havia um soldado que não tivesse sido bem treinado para todas as batalhas, mas pouco mais de 7 mil estavam com ele, nesta empreitada. O neto de Genghis Khan mostrava-se um homem destemido, do tipo que sempre busca a honra por meio de batalhas consideradas invencíveis. Para Khan, aquela seria uma das mais difíceis que ele já participara. Isso, porque invadiriam o território inimigo, mesmo desconhecendo sua geografia e seu poderio de guerra. Estavam muito longe de casa, portanto, teriam que enfrentar aquela batalha “sozinhos”. Mas, confiava em sua armada. Confiava na astúcia e coragem de cada um daqueles guerreiros que o acompanhavam. Sabia que cada um deles havia deixado sua família, suas esposas, seus filhos, para enfrentar o desconhecido em nome da conquista e de um futuro melhor para todos. E isso, para Kublai, era muito importante também para a expansão da Dinastia Yuan, da qual ele fazia parte. Aliás, este era seu objetivo principal. Sabia que haveria perdas, mas faria tudo – e tinha se preparado para tal – para que seus melhores soldados voltassem para casa. Por alguns segundos, Kublai deixou de pensar sobre a guerra que estava por iniciar, para pensar a respeito da mancha negra que vira no horizonte, a estibordo, no dia anterior. Ela estava maior. Bem maior. Mais próxima. Pegou uma corda que estava no chão do convés e dirigiu-se para a popa da embarcação, deixando-a lá. Poderia precisar dela, quem sabe.

Revezaram-se no almoço. Vinte homens por vez (em alguns barcos da esquadra, esse número mudava, para mais ou para menos,

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MOZART J. FIALHO dependendo do tamanho do navio). Cada grupo tinha que comer rapidamente e lavar seu prato, deixando-o pronto para o grupo seguinte. Assim foi, até que pouco tempo depois, todos já tinham comido e deixado a cozinha limpa. O prato de hoje foi peixe grelhado com macarrão. Vinho, regrado, só à noite. A última noite antes de entrarem para a batalha.

Cada barco de Khan tinha seu capitão. E todos eles, sem exceção, eram os súditos mais leais que ele e o Imperador possuíam. Por gerações, eles acompanharam os Khan, desde que Genghis Kahn, o avô de Kublai, havia conseguido conquistar o norte da China, fato este, aliás, que contribuiu muito com o que veio a se tornar a civilização chinesa. Mesmo que a dinastia Yuan tenha sido relativamente curta – pouco menos de 100 anos –, deixou uma grande impressão no psicológico chinês. A cultura Chinesa perdeu sua vitalidade e se tornou mais introvertida, resultando na tradição de suspeitarem de estrangeiros.

Após a conquista do norte da China, os conselheiros de Kublai os advertiram a respeito do povo Han. Essa etnia originava-se da Ásia Oriental, e alguns não queriam que fossem misturadas à pureza mongol. Então, o conselho sugeriu a Khan que matasse todos aqueles que fossem do povo Han. Mas, o que sucedeu durante o século seguinte, segundo até mesmo com base na decisão de Kublai, foi a imposição de altas taxas sobre aquele povo, tirando-os prata, seda e grãos. Um povo quase dizimado na época. A tempestade, agora, era visível e estava assombrosamente mais próxima. E parece que ia de encontro certeiro com a esquadra mongol. A água fazia os barcos balançarem cada vez mais, e os menores já enfrentavam ondas que alcançavam o meio de seus mastros principais. Do barco principal, Quon ajudava os demais marinheiros, amarrando algumas cordas e soltando outras, a fim de manter o equilíbrio da embarcação. Ao se aproxi-

mar de outro marinheiro que o solicitou, presenciou algo que não sairia mais de sua memória. O vento havia aumentado muito sua força e, sem que os dois percebessem, uma corda de mais ou menos 5 centímetros de espessura e alguns metros de extensão arrebentou-se em sua amarra, sendo liberada com muita força. Então, como um chicote nas mãos de um hábil guerreiro, a ponta da corda bateu com tanta força no pescoço de seu colega marinheiro, que o cortou pela metade, fazendo o sangue jorrar com uma pressão incrível. O sangue sujou todo o rosto de Quon, que jazia boquiaberto e impotente frente àquele corpanzil forte em queda livre para o mar. Não pôde fazer nada.

Alguém o puxou pelo braço, o que o fez voltar à realidade. Ali não era o quintal de sua casa e certamente não era ali que ele queria passar o resto de sua vida e, muito menos, morrer. O puxão ainda salvou-lhe a vida, já que naquele mesmo instante, uma caixa pesada, cheia de ferramentas de ferro, caiu no local, tendo sido jogada como uma caixa de papelão vazia pelo vento. Se alguém tivesse ali no momento, certamente, teria morrido instantaneamente. Se não isso, perdido todas as suas características de guerreiro. É o mesmo que estar morto em vida.

O dia, que já não estava mais claro, parecia estar apenas começando. A tempestade ia ficando cada vez mais forte, o vento cada vez mais rápido e descontrolado, hora girando de bombordo para estibordo, ou o inverso, hora fazendo sentido proa-popa. Tudo o que estava solto no convés se tornava uma armadilha poderosa. A força com que

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MOZART J. FIALHO eram jogados para um lado e para outro, às vezes sendo lançados ao mar como se fossem objetos que o barco não queria em seu interior, tornava o ambiente, já bastante restrito nessas condições, um cenário de destruição e morte. Quon também viu o momento em que Loh, um soldado vizinho na vila (yurte) que morava, fora atingido por um pedaço de madeira (?) – ele não pôde distinguir direito, devido à escuridão e ao próprio caos em que estava – na cabeça, com força suficiente para lhe arrancar o tampão. Mais sangue, mais um corpo caído, menos um guerreiro.

A guerra havia começado. Mas, não como eles haviam imaginado, matando japoneses e se deleitando com seus corpos no chão, perfurados pelas lanças e pelas espadas da armada mongol. A guerra era contra a mais forte das inimigas, a Natureza. Mas, para eles, não havia esse conceito que hoje a humanidade tem a respeito de tufões, furacões e outras ameaças naturais. Eles acreditavam que os deuses deviam estar nervosos por alguma coisa, ou estavam os avisando que algo poderia dar errado, portanto, teriam que retornar ou cessar o avanço. O mais assustador, no entanto, é que os xamãs de todas as ulus (tribos) não haviam falado nada a respeito dessa grande tempestade que enfrentavam.

Num determinado momento, pareceu que todos os dragões sopraram juntos sobre as embarcações. O vento, vindo de cima, fez estragos excepcionais, bem como lançou vários homens (uns ainda vivos, outros não) ao mar, ao fazer a embarcação entornar quase que completamente. Quon segurou-se firme em uma barra do mastro principal, que só não sucumbiu por ser feito de madeira de origem e ter sido muito bem preso às estruturas principais do barco. Num dos poucos instantes em que seu olho esteve aberto, pôde discernir um novo trágico acidente, no qual um dos soldados perde o equilíbrio e bate com as costas contra um arranjo de 100 lanças que estava preso numa das laterais do convés. Ver aquelas lanças atravessarem o corpo do soldado foi também algo horrível, que permaneceria mais um tempo, em sua memória, já repleta de acontecimentos horrendos.

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Gritos. Ouvia muitos gritos de desespero e de socorro em meio à turbulenta tempestade e em meio à degradação violenta pela qual a embarcação estava passando. Quon lembrou-se de sua esposa Li. Tão pequena e frágil na aparência, mas forte como um cavalo e decididamente linda. Quon sentia o cheiro de seu perfume natural, um aroma de flores campestres, misturado com o doce de sua pele entre o branco e o bege. Li possuía uma característica única, no conhecimento de Quon e de toda a vila: seus olhos possuíam cores diferentes. O esquerdo era esverdeado, enquanto que o direito, cinza-azulado. Nunca souberam o que poderia ter feito isso, mas o xamã disse, uma vez, que ela era uma “escolhida” pelos deuses, e seria ainda uma mulher de grande força e reconhecimento. O xamã errou, pois Li morreria durante o parto, assim como o bebê, seis meses depois que Quon saíra em viagem.

De súbito, a realidade batia de novo em Quon. Realidade convertida em um pedaço de madeira que o havia atingido no ombro, retirando-o dos longínquos pensamentos em Li. A mão esquerda imediatamente, por causa da dor, soltou-se do suporte no qual ele se segurava. A outra mão, não suportando o seu próprio peso, pois já estava exausto, não conseguiu segurá-lo. Foi o momento em que Quon reviu tudo em sua vida passada. Lembrou-se do tempo de criança, de quando e como havia conhecido Li e se apaixonado por ela. Lembrou-se de estar sentado, junto a outros meninos, em frente ao xamã da vila, ouvindo suas histórias mais fantásticas e alguma lição de mundo. Quon sentiu o cheiro do caldo de peixe de sua velha mãe. Sentiu fome, talvez, a fome mais forte que já sentira em toda a sua curta vida. Tudo o que sempre amou estava agora escorregando, junto com sua memória, pelo convés virado, rumo ao mar, rumo ao desconhecido. Quon pensava, agora, como seria morrer. Porque, em poucos minutos, seria este o seu destino.

O dia raiou lindo. Águas calmas, vento lento, fraco, nada de ondas ou balanços interminavelmente violentos. Como se nada tivesse acontecido por ali. A não ser a superfície do mar, que contava algo

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MOZART J. FIALHO diferente. Incontáveis pedaços de madeira dos barcos, misturados a milhares de corpos, boiavam sob o sol que saía pra brindar o dia. Também, ouvia-se um ou outro grito de socorro, ao longe, como se fosse num sonho. Quon, lentamente, acordava. Seus olhos abriram-se devagar, com uma dor incômoda, profunda, ao encontrar os primeiros raios. Parecia que acordava de uma noite de pesadelos. O pior de tudo é que não havia sido um pesadelo. Quon estava em meio a um cemitério no meio do mar. No meio do nada. A tempestade havia se adiantado ao inimigo e feito a festa. Ou melhor, a desgraça. A morte veio do céu. Os deuses não deviam estar contentes com a tomada do Japão pelos mongóis. Por isso, enviaram aquele sinal, que não foi respeitado por Kublai Khan, desde a primeira vez que a avistaram no horizonte.

Agora, estavam mortos. Quase todos mortos, com exceção de alguns “agraciados”, entre os quais Quon se via. Um gemido forte chamou sua atenção. Com dificuldade, olhou para trás e avistou alguém tentando se livrar de uma armadilha no meio do mar. Pelas roupas com tons alaranjados, que se sobressaíam aos marrons, ele percebeu que era Kublai Khan. Ele estava preso entre um monte de madeira quebrada e pontiaguda. Esforçou-se, devido aos machucados no corpo, para aproximar-se do comandante na tentativa de salvá-lo. Seu corpo doía, mas sentia essa obrigação. Esforço inútil. Khan, percebendo a aproximação, num brado sufocado e vibrando em dor, mandou Quon afastar-se e proteger-se. Quon, então, pôde ver algo estranho. Havia algo mais na água, além do caos e do já ferido Kublai Khan. Pelo desenho na água, viu que se tratava de um enorme peixe. E ele estava comendo seu comandante vivo! Viu-o quando arrancava um naco da perna, sob o grito desesperado de Khan. Em seguida, antes que o desespero tomasse-lhe conta, viu outros se aproximando. Quon tinha que sair dali. Antes que se virasse, viu seu mestre ser puxado pra baixo e o sangue colorir a água.

Quon, indiferente à dor que sentia em todo o corpo, nadou o mais rápido que pôde, passando por alguns corpos que boiavam como

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CONTOS AO ENTARDECER iscas à espera dos predadores. Alguns rostos eram-lhe conhecidos, de homens que estavam no mesmo barco que ele, que agora jaziam no fundo do mar. Sabe-se lá a quantos metros abaixo da superfície. Agarrou-se a um grande pedaço de madeira, de tal espessura que podia servir como uma jangada média. Ainda teria tempo de ver sua esposa Li, quando chegasse. Essa era sua maior esperança, e por ela, faria o impossível para sair dali vivo. Um pássaro passou por sobre sua cabeça. Baixo. Ele olhou para trás e viu que já se encontrava a uma boa distância dos principais destroços e corpos, mesmo que, ora ou outra, dava de encontro com o corpo de outro guerreiro Khan, certamente, de outro navio. E alguns outros pedaços de madeira, também.

Sua pouca experiência o ensinou que, quando um pássaro, ou mais, era visto em alto-mar, trazia bons sinais dos deuses. Havia terra nas proximidades. Talvez, um ou dois pares de cansativas e perigosas milhas, mas certamente uma grande esperança de sobreviver. Aos poucos, além de um número maior de pássaros, Quon começou a divisar uma linha escura no horizonte. Seu coração começou a bater com mais vontade. Ele sentiu que ali selaria seu destino rumo ao seu povo, ao seu lar, à sua esposa e filho – que nasceria em algumas luas.

Não demorou muito para que Quon pudesse ter uma visão melhor do que estava à sua frente. Terra! Uma ilha, talvez! Mas, terra! Provavelmente, um lugar com gente, com japo... Não, talvez, nem fosse bom ter pessoas naquele local. Ele estava em terras japonesas e claramente não era um deles. Mas, ainda assim, tinha que seguir em frente e alcançar aquele lugar. Melhor gente que aqueles peixões comedores de gente. Arrepiou-se ao pensar e pôs-se a tocar a “jangada” com mais força – que, aliás, já começava a lhe faltar completamente. Esperava ajuda das ondas do mar para dirigi-lo até a praia.

O sol estava a pino, marcando pouco mais da metade do dia. Quente, muito quente. Quon sentia sede, sua boca estava totalmente seca. A respiração ofegava e já dava cortadas súbitas, quando, sem querer, Quon inspirava pelas narinas secas e ardidas. Seus lábios

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MOZART J. FIALHO estavam rachados e brancos do sal da maresia, que castiga qualquer homem à deriva. Em certo momento, ele ouviu uma voz, dizendo a ele para não desistir. Ele estava próximo. A voz era conhecida, e era do xamã de sua yourt. Quon, que já estava com os olhos cerrados por não suportar mais o clarão do sol na água, tentou abri-los ao máximo. As ondas, agora, já começavam a empurrá-lo em direção a algumas rochas. Mais a estibordo, ele pôde divisar uma praia com areia abundante. Contendo a dor, Quon usou o máximo que ainda lhe restava de energia, a fim de direcionar a “jangada” para a praia. As ondas ficavam mais fortes à medida que ele se aproximava das rochas. Era como jogar uma folha num redemoinho de vento. O controle saiu de sua vontade e tudo o que Quon podia fazer era se segurar firme nas bordas laterais do que ele tinha como uma jangada e pedir aos deuses proteção e que salvasse sua vida. E assim ele fez.

Houve uma pancada forte na parte de trás da jangada, tão violenta, que a partiu ao meio e, na força da água, Quon sentiu-se sendo jogado para longe. Foi muito rápido. Ele caiu entre duas pedras, batendo o corpo contra uma delas, mas, com sorte, numa parte com areia. Ali, permaneceu inerte, enquanto a água do mar alcançava suas pernas entre uma onda e outra. Não conseguia ver mais nada. Não conseguia ouvir mais nada.

Ele não sabia precisar o tempo em que ficara desacordado. Mas, agora, estava ali, em uma espécie de taboca, coberta por palhas de coqueiros já secas e velhas. O ambiente só não estava mais escuro por causa dos raios de sol que insistiam em penetrar pelas frestas entre a folhagem. Quon sentiu uma forte dor em seu abdômen e, ao colocar a mão, sentiu que havia uma coisa grudenta como lama, que fora colocada sobre a pele. Era fria. Ele voltou a encostar a cabeça no leito também de palha e refletiu melhor: ele estava ferido, mas vivo, e alguém o tinha socorrido.

Não demorou muito para que duas pessoas entrassem na taboca: um homem alto, negro como a noite, e uma mulher, também alta, es-

CONTOS AO ENTARDECER guia e magra, negra como a noite sem luar. Seus olhos, esbugalhados e penetrantes, aproximaram-se do rosto de Quon, que agora sentia-se acuado e assustado. Os dois olharam um para o outro e disseram algo que Quon não conseguiu decifrar. O negro sorriu e tornou a fitar Quon. A senhora levantou-se e saiu. Quon sabia, de alguma forma, que ele não estava onde achava estar. Quon não estava em águas japonesas. Do lado de fora da taboca, dezenas de tribais aguardavam, silenciosos, algum tipo de pronunciamento.

A mulher que saiu da taboca pegou um colar que estava pendurado em uma espécie de arco e o pôs no pescoço de forma religiosa. Juntou as mãos e as apontou para o céu, que já dava sinais que querer escurecer. Separou as palmas e abriu-as para cima, abaixando-as lentamente em seguida. Cada movimento dela era acompanhado silenciosamente pelo que seriam seus súditos. Enfim, ela pronunciou alguma coisa. E isso fez com que os tribais se delirassem em alegria. Júbilo total. “Hoje, Kahamã nos agraciou com alimento.” Foi o que a anciã disse.

O céu escureceu, dando lugar às estrelas. Pontinhos brilhantes lá em cima, os únicos a testemunhar a Dança do Fogo da tribo dos Yahkar, em algum lugar onde hoje ficam as ilhas Fiji, na Oceania. A noite deles, hoje, era de festa e alimento enviado por Kahamã nas águas do mar.

Conto baseado em história verídica, ocorrida naquele ano de 1294. Chang Quon é um personagem fictício, cujo cenário foi vivido por soldados mongóis, quando Kublai Khan (personagem real) queria tomar o Japão para si. A história de Khan pode ser conferida em vários sites da Internet, bastando digitar seu nome em um procurador.

Postado em 15 de Junho de 2016, por Mozart J. Fialho

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